Costuma-se dizer que as famílias “normais” ou “felizes” não têm histórias… Creio que o dito, longe está de ser total e verdadeiro. De facto, na minha perspectiva, todas as famílias têm histórias. Histórias vividas, partilhadas, omissas e por fim rememoradas em momentos, em passagens de vida por vezes especiais. Das histórias familiares, pois com certeza que umas são mais felizes, outras menos felizes e ainda algumas de muito infortúnio; haverá algumas “especiais” e que se calhar, por isso mesmo merecem ser contadas.
Assim aconteceu com a família Duarte Fonseca, da qual sou membro pelo lado materno e sobre a qual pretendo – é mesmo pretensão da minha parte e que isso seja tomado à letra – traçar alguns episódios da sua história passada e vivida sobretudo na ilha de S. Vicente.
Ora bem, era meu avô materno Torquato Gomes Fonseca, natural de Mindelo e nascido a 26 de Fevereiro de 1881. Filho de José Pedro Gomes da Fonseca e de Tereza de Jesus Fonseca, ambos naturais da Ilha de Santo Antão. Foi escolarizado no Seminário-Liceu de S. Nicolau, e na vida adulta foi maçónico e republicano. Funcionário Público, tendo desempenhado diversos cargos dos quais destaco o de Presidente, de Vice-Presidente e de Vogal da Câmara Municipal de S. Vicente, Director dos Correios de Cabo Verde, Vogal Permanente do Conselho da Instrução Pública de Cabo Verde, vogal do Conselho da Biblioteca Municipal de Mindelo, entre outras funções algumas graciosa e civicamente desempenhadas. Igualmente, instruiu então muitos jovens comerciantes e empregados de escritórios comerciais de S. Vicente com aulas de contabilidade e de escrita comercial que ministrava. Charadista em tempos livres, colaborou no Almanaque Luso – Brasileiro com hieróglifos comprimidos, cruzadas e salto a cavalo, passatempos que mais tarde alguns netos (eu incluída) lhe herdámos o gosto. Neste particular, o meu irmão mais velho foi quem aprendeu a resolver os “hieróglifos comprimidos” e os “saltos de cavalo” com o avô.
Casou-se em 1909 com a minha avó Leopoldina Cristina Duarte, natural da ilha de São Vicente, nascida a 9 de Agosto de 1884. Filha de Pedro José Duarte, natural da ilha de São Nicolau e de Izabel Christina Duarte Christino, natural da ilha de Santo Antão, família de muita inclinação à monarquia então vigente em Portugal.
O pai da minha avó Dina, Pedro José Duarte era proprietário e comerciante, vindo de S. Nicolau e que se estabelecera a partir de 1880 em Mindelo para aí criar e educar os filhos. Augusto de Deus Duarte, Belmiro de Deus Duarte, Francisco de Deus Duarte, Isabel Cristina Duarte, Leopoldina Cristina Duarte, Mariana Cristina Duarte, Eugénia Cristina Duarte, Rosely Cristina Duarte e Alda Cristina Duarte, esta última nascida em 1890, e a que permaneceu solteira. (ao que parece, queria seguir a vida religiosa. Suspeito que por uma causa amorosa mal sucedida e nunca divulgada. Aliás, muito comum à época) Foi sempre tratada e nomeada carinhosamente pela família de: “a querida Aldinha” que quando eu era miúda julgava que fosse esse o nome dela. Querida tia, era ela e por sinal minha madrinha de baptismo, que se realizou na Igreja de S. Sebastião da Pedreira em Lisboa pois era a igreja que servia o Bairro Azul, onde vivi os dois primeiros anos de vida, com os meus pais e os manos mais velhos (1946-1948).
A avó Dina e as irmãs tiveram mestras em casa que lhes ensinaram e lhes ministravam as disciplinas da Instrução Primária, também bordado, francês e piano, muito usado entre as famílias então ditas de “bem.” O pai delas queria que as filhas fossem mulheres instruídas, para isso recrutava e pagava as ditas mestras ou professoras particulares que se deslocavam a casa dele para aí ministrarem a formação às seis filhas.
Um aparte: o instrumento musical, o piano e o aprender a tocá-lo, cedo fizeram parte da mobília e do estar social dos lares mindelenses mais abonados.
Retomando, os rapazes frequentaram Seminário, tendo um deles – Francisco de Deus Duarte, meu tio-avô – sido ordenado padre.
Conta-se entre os familiares mais próximos, que a avó Dina, para além de ter sido uma mãe educadora exemplar, foi igualmente uma senhora culta e benquista por todos os familiares e amigos próximos de tal forma o fora que na sua morte, ocorrida em Lisboa em 1938, os primos/sobrinhos Manuel Ribeiro de Almeida (Leça Ribeiro) e Raul Ribeiro lhe traçaram o seguinte perfil, que passo a transcrever e que foi notícia no jornal «Notícias de Cabo Verde», no seu número 178, de 1 de Novembro de 1938: «Sucumbiu em Lisboa no dia 31 de Outubro findo, à acção da doença de que foi tratar-se, a Exma. Sra. D. Leopoldina Duarte Fonseca, acarinhada esposa do nosso prezado amigo e ilustre funcionário dos Correios e Telégrafos, Sr. Torquato Gomes Fonseca. O seu dilecto esposo, a sua numerosa prole e toda a família ficaram inconsoláveis com o passamento da bondosa e distinta senhora. Educadora como as melhores mães de Cabo Verde, era um encanto observar a forma primorosa como dirigia a instrução dos seus filhos de quem constituiu uma verdadeira dinastia de excelentes estudantes.
Mas D. Leopoldina Duarte Fonseca foi também filha amantíssima, irmã, esposa e parente virtuosa e prestante.
Avaliamos, pois, a imensa dor que a sua falta irreparável vai causar aos membros extremosos do seu lar. À sua carinhosa família, em especial ao Sr. Torquato G. Fonseca, aos seus filhos, aos nossos directores, seus primos e às suas tias apresentamos a expressão muito sentida das nossas condolências.» (Fim de transcrição). Assim era o perfil da avó Dina para os familiares e para os amigos.
Voltando um pouco atrás na narração, vale dizer que idêntico processo de transposição de ilha sucedera com José Pedro Gomes da Fonseca e Tereza de Jesus Fonseca, meus bisavós, pais de Torquato, que se mudaram de Santo Antão para a ilha de S. Vicente onde nasceram os filhos: Torquato Gomes Fonseca (1881-1954) e João Gomes Fonseca (1882-1940?). Existiu também uma filha, irmã do meu avô, de nome Francisca de Jesus Fonseca, tia Chica, que bem jovem pôs termos à vida e dela pouco se falou na família. Os dois rapazes, Torquato e João, após a frequência do Seminário-Liceu em S. Nicolau entraram para o funcionalismo público e nele fizeram carreira.
O enlace de Torquato Fonseca e de Leopoldina Duarte efectuou-se em 1909, em S. Vicente, terra de nascimento dos nubentes que viveram na cidade do Mindelo, numa casa espaçosa e com um grande quintal – objecto de boa memória da minha mãe e dos irmãos, pois sítio de jogos, de brincadeiras de uma infância cuidada – e na antiga então rua “Júdice Becker”, perto da Praça Nova, até à morte da avó Leopoldina em 1938, vítima de doença renal grave. Falo do quintal pois ele fez parte das memórias mais queridas da minha mãe e dos irmãos que das fotografias guardadas da família, muitas foram tiradas nesse espaço de inúmeras brincadeiras da infância e adolescência e onde havia um frondoso tamarindeiro e um famoso tanque.
Do matrimónio, nasceram oito filhos: José, Celina, Sérgio, Humberto, Maria da Paz, Dina, Jorge e Henrique. Interessante é que o filho mais velho é registado com o nome comum dos dois avós, sendo o materno, Pedro José e o paterno José Pedro. A filha Dina morreu ainda de tenra idade, vítima de doença. É a partir deles que se segue a descendência dos Duarte Fonseca.
Mas mais do que espelhar um pouco esta “árvore genealógica” o que queria registar, recordando, são pequenas histórias de família.
De entre os episódios da família mindelense contados com muita graciosidade e com a arte de bem narrar da minha mãe, reconto dois.
A primeira, liga-se à passagem em S. Vicente – no périplo pelas colónias portuguesas de África – do príncipe herdeiro da coroa portuguesa, Luís Filipe, filho do rei D. Carlos, em 1908, que na noite em que o “brigue” esteve fundeado no Porto Grande, ofereceu um baile em que foram convidadas algumas jovens das então consideradas as melhores famílias de Mindelo. A minha avó Leopoldina, nessa altura já estava bem comprometida com o seu Torquato, foi uma das convidadas. Bem, a família dela contente e possivelmente honrada com tal convite, pois que eram de simpatias monárquicas sabidas, autorizou a jovem a participar do baile. De roupa nova e aperaltada lá foi a filha e outras tantas amigas ao grande baile no barco real. O príncipe, num gesto gentil, pois que o fez pessoalmente, ofereceu no final da festa, uma cigarrilha de cinta dourada a cada uma das moças convidadas para o baile.
Deve ser esclarecido que o namorado da Dina, o Kate – assim eram os diminutivos por que eram conhecidos os meus avós – não gostou mesmo nada de ver a sua namorada, ou mesmo noiva prometida, a participar de um baile em que o par não seria ele. Enciumado e mais, nada contente, pois para além de tudo, ele pertencia ao núcleo de cabo-verdianos que aspirava o advento da república e nada gostava da realeza; zangou-se com a sua Dina e por mais de uma semana não lhe enviou cartas, nem bilhetes como se usava na época entre namorados. Parece que tal situação terá divertido a avó que se apercebeu, pela primeira vez de uma cena real de ciúmes por parte do noivo. Mais tarde, já casados, eis que um dia, ao mexer em caixas com papéis, o meu avô descobre a cigarrilha – que lhe trouxe à memória o episódio – que entretanto fora cuidadosamente embrulhada e guardada pela minha avó como recordação do baile. De novo uma cena de ciúmes e de amuo entre o casal. Ora, moral da história, dizia a avó numa demonstração de como o casal se entendia bem, que todas as cenas de ciúmes que o avô lhe fizera durante os anos de casados, se resumiram a essas duas e ambas tiveram como causa o baile e a cigarrilha de cinta dourada oferecida pelo “malogrado príncipe Luís Filipe,” como ela dizia pois que o regicídio havia de acontecer pouco tempo depois da visita do Príncipe às então colónias portuguesas africanas.
Outra historieta já presenciada por minha mãe foi quando, os filhos, os mais velhos – na altura: José, (1910 -2004) Celina, (1911-1992) Sérgio (1913 -1994) e Humberto, (1916 -1983) Maria da Paz (1919) era bem pequena ainda, 3 anos de idade – descobriram que o pai era “maçom”. E tudo aconteceu em 1922, quando Torquato Fonseca se preparava para participar no Congresso internacional maçónico (secreto evidentemente) que se realizou, ou não, nesse ano na cidade do Porto. Ele integraria a representação portuguesa ao congresso. Suponho que ele já possuía, à época, o grau de oficial. Ora, a minha mãe teria na altura 11 anos e já ajudava a mãe dela nas lides da casa. Coube-lhe ir colocar um casaco do pai acabado de ser passado e brunido, no guarda-fato. Possivelmente as coisas que seriam necessárias para a viagem ao Porto já estariam à vista dentro do mesmo guarda-fato. Estranheza da filha quando ao abrir a porta do móvel, vê o avental e mais os outros símbolos próprios da sociedade secreta. Vai daí, chama aos gritos, os irmãos, crianças todos, para irem ver a “descoberta” feita desses estranhos pertences do pai. Este, na hora ausente de casa no trabalho, não teve conhecimento do caso. A mãe Dina tomou conta da ocorrência. Ter-lhes-ia explicado que eles ficavam expressamente proibidos de qualquer comentário sobre o incidente a quem quer fosse e que ela prometia em contrapartida, nada contar ao pai deles sobre o que haviam feito.
Foi assim que a minha mãe soube que o pai era membro e activo da maçonaria luso-cabo-verdiana, da “Loja Almirante Reis” de Mindelo que era filiada no “Grande Oriente Lusitano”. Também o irmão João Gomes Fonseca era “maçon.”
Nota curiosa: Aqui há alguns anos descobri em documentos lidos, que o avô paterno do meu marido, Jaime Alberto Ferreira (1887-1925) foi igualmente maçónico, membro de uma das lojas de Mindelo e que os nossos dois avós terão estado juntos, ou não – pois não confirmei se a tal delegação de que eles seriam parte, lá esteve – no tal congresso do Porto. Igualmente, um tio-avô do meu marido foi outro destacado membro da maçonaria luso-cabo-verdiana. De seu nome, António Augusto Martins, mais conhecido por Fidjito Martins e por sinal, membro da mesma loja a que pertencia o meu avô.
Interessante foi saber que o avô Torquato chegou a ser “grande oficial” e o representante máximo em Cabo Verde. Antes de morrer passou a chefia a Carlos Rocha conhecido e tratado por Carlos Pudjim na cidade do Mindelo.
Sobre a actividade da maçonaria exercida em Cabo Verde, para além dos aspectos considerados negativos no tocante à animosidade, recíproca aliás, entre a franco-maçonaria, a Igreja, e a perseguição movida pelo regime vigente (O Estado Novo) após a 1ª República portuguesa cuja liderança estivera a cargo de altos membros da maçonaria portuguesa; ressalvados estes aspectos e acrescidos por outro lado, pelo facto de lhes ser atribuído poderes esotéricos e extra -humanos – a maior parte, criada e efabulada no imaginário popular – para além disso, a confraria maçónica crioula, em certos momentos de crises e de fomes, ao tempo muito frequentes nestas ilhas, foi autêntica benemérita. Auxiliada pela congénere lusa, concorria com o governo, na assistência aos desvalidos, por vezes com quantitativos em géneros alimentícios e pecuniários bem superiores aos donativos oficiais. Igualmente, protegia as viúvas e os filhos dos membros falecidos, pagando-lhes os estudos e, por vezes, custeando até a subsistência alimentar ao agregado privado do chefe de família.
Essa actividade assistencial das lojas maçónicas crioulas, filadas no Grande Oriente Lusitano, foi para mim uma descoberta boa, ao pensar que o meu avô materno pertenceu ao núcleo dos seus membros mais activos.
Afinal são historietas de família, boas e más que por vezes nos levam a descobrir alguns “rastos” da memória mais colectiva que emolduraram uma época e fazem-nos também entender algum passado destas ilhas.
Nota final: Apesar de, por um lado, ter tentado com este texto, fazer um exercício de aproximação à realidade passada da família Duarte Fonseca, com destaque para o avô Kate. Por outro lado, gostaria de considerar também que terá havido da minha parte e naturalmente, muita subjectividade de perspectiva na sua abordagem.
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