(Joaquim António Ferreira, Jr.)
- Breves
Memórias de um Bom Amigo -
O
“e-mail” do Pepito a comunicar que o nosso Djoca nos havia deixado não me
chocou nem me surpreendeu. Embora triste com tal notícia, era o anúncio de uma
morte esperada.
Eu tinha
estado com o Djoca no ano passado numa curta visita a Bissau por razões também
pouco agradáveis – 1º aniversário do falecimento da minha Mãe. O seu estado de
saúde (moral e físico) reflectia a vulnerabilidade e a fragilidade do País.
Não
obstante não padecesse de nenhuma doença incurável – hipertensão arterial –
era, como milhares de outros, vítima de um vazio de estado, inexistente serviço
de nada mormente o de saúde.
Só,
envelhecido, alquebrado, algo desiludido e saudoso, mas não passadista, dos bons
velhos tempos dos quais ele era um dos últimos residentes, só tinha alguns
escassos amigos a quem recorrer, e estes, também eles com problemas amplos e
abrangentes, embora de outra índole, nem sempre o podiam satisfazer.
Com
a partida do Djoca vai uma das últimas testemunhas da História vivenciada da
cidade-capital da Guiné-Bissau, dos últimos 50 anos. Bem sei que o nosso também
querido João Galvão no seu já famoso Tatitataia disso já falou.
Mas
reitero que poucos, muito poucos, conheciam Bissau e a sua gente como ele,
Djoca. Ele tinha vivido intensamente, sempre no mesmo sítio – Bissau – o antes,
o pós e a própria Independência. Em cada canto encontrava uma história – ainda
não me converti ao neologismo de inspiração anglófona “estória” – e também uma
História. E em cada esquina uma personagem que com a sua perspicácia e invulgar
sentido de humor lá fazia sair mais uma bem-humorada e mordaz “passada”.
Embora
nascido em Bissorã, muito cedo foi para Bissau tornando-se numa das mais
emblemáticas personalidades (latu sensu) da cidade. Completara no
passado dia 24 (ou 25, já não me lembro bem) de Setembro 70 anos. Era já uma
espécie de ex-libris da cidade. Urbano a cem por cento com uma esporádica
passagem por Nhacra com funções administrativas – uma espécie de Chefe de Posto
que no novo ordenamento territorial teria tido outra designação – que foram
alvo de muito gozo e saborosas tiradas precisamente pela analogia e eventuais
mordomias das mesmas funções na época colonial. Também fizera uma formação em
Portugal de largos meses no domínio das pescas da qual tinha engraçadas e bem
divertidas “passadas”. O Lotes (Carlinhos Almeida) e a Ana (sua mulher) que
então o acolheram que as contem!...
Na
infância e adolescência morávamos (as nossas famílias) em Pidgiguiti e não
Pindgiguiti
como hoje sói dizer-se. Mais precisamente no “Quintal de Alfredo Neves” cheio
de frondosas mangueiras e enquadradas nos seus limites por elegantes e sempre
prenhes coqueiros. Atrás da Casa Gouvêa. Convivíamos com os marinheiros que
faziam do “Quintal” um local para tratar das parafernálias dos navios sobretudo
do remendo das velas. Eram momentos quase diários de galhofas com picardias
sociais a que assistíamos com raras e muito tímidas intervenções mas com muito
deleite. E sabíamos, mas sobretudo ele, o nome de cada um. Do lado de lá da rua
estavam as Oficinas Navais defronte às quais fazíamos a nossa peladinha no
asfalto a que chamávamos foladinha, por razões que parecem óbvias;
peladinhas que eram um forte pretexto, um “leitmotiv” para nos encharcarmos em
seguida em água de côco. Foi onde nasceu o Atlético Club de Foladinha – o único
em que o Djoca jogou. Clube de bairro que não de Pidgiguiti – apenas local de
reunião – pois com gente de vários bairros porque era de facto um clube de
amigos, de existência efémera, porque não tardou em alimentar os grandes de
Bissau de excelentes elementos, desaparecendo de seguida.
Voltando
à minha última ida a Bissau, estava instalado num dos hotéis da ANCAR e o meu
amigo Djoca era sempre o meu primeiro visitante e o último de quem me despedia
ao subir para o quarto.
Num
dos dias em que já terminara o meu programa saímos a passear sem rumo definido,
à deriva. Naturalmente, fomos contornando o Hotel e descendo para o porto, aí
perto, para o cais de Pidgiguiti, ao sabor do vento, para apanhar um pouco de
fresco e matar saudades. Parámos no nosso “Quintal” e localizámos apontando com
alguma nostalgia os locais de comezaina das mangas verdes com sal, às quais,
por vezes, acrescíamos malagueta; do velho limoeiro de “limão francês” – na
altura ninguém os utilizava – que nos fornecia munições para batalhas campais e
algumas diatribes; a goiabeira que dizia pertencer-lhe porque junto à sua casa;
e o parapeito de betão que fazia de cerca, em que descascávamos os cocos retirados
com varas bem compridas brandidas por vezes por duas ou mais pessoas que lhes
davam na queda trajectórias erráticas bem perigosas. O “Quintal” obviamente já
não era o mesmo e grande parte da história era apenas um regresso ao passado
que o tempo não apagara e que naquele momento enfatizava, quiçá, com alguma
imaginação à mistura.
Continuámos
o nosso percurso e paramos defronte das antigas Oficinas Navais e lembrámos dos
bons velhos tempos de “Foladinha”. Das características futebolísticas de cada
um de nós e dos nomes sonantes do futebol mundial a que nos assumíamos ou
éramos apodados. Dos muitos de nós que já nos tinham deixado e de outros dos quais
nunca mais ouvíramos falar.
Djoca
era um bom falador, um narrador inato que temperava as suas passadas” com um
misto de sarcasmo e de ironia que lhes conferiam um incontornável e
irresistível sabor humorístico. E era dotado de uma memória de elefante que lhe
permitia cultivar pormenores que nos criava embaraços em saber se eram do
domínio do real ou do imaginário.
Ao
chegarmos à entrada do Cais de Pidgiguiti, fomos naturalmente transportados
para 3 de Agosto de 1959. Estávamos juntos e juntos tínhamos assistido à
revolta dos estivadores, fez ele questão em me reavivar a memória:
Eram
férias grandes e estávamos na segunda metade do dia. Tinha eu sido enviado pelo
meu Pai para ir buscar um documento nas “Obras Públicas”. Convidara o Djoca, com
quem estava em quase permanência, para me acompanhar. Saídos do “Quintal” vislumbrámos
um aglomerado de pessoas na esquina da Casa Gouvêa (actual Armazéns do Povo)
todas viradas e olhando para o cais. Rapidamente nos juntámos a elas – escassos
trinta quarenta metros nos separavam. Encostámos ambos pachorrentamente na
parede a presenciar no cais de Pidgiguiti um grande rebuliço com pessoas
armadas com catanas e paus de pilão, excitadas e ameaçadoras que ensaiavam
danças guerreiras. No meio uma autoridade marítima (patrão-mor ou cabo do mar?)
esbracejava e berrava.
Passados
muito escassos minutos chega um camião militar de tropas indígenas (assim eram
conhecidas) de onde saltaram soldados equipados com a velha Mauser comandados
pelo Tenente Simões e não Castro que nem sequer tinha chegado a Guiné e que
algumas narrativas protagonizam. Os revoltosos não recuaram um milímetro, bem
pelo contrário, avançaram. Ouviram-se tiros e uma grande debandada das pessoas
que se encontravam no cais correndo em todas as direcções e atirando-se à água.
Nisto vislumbramos o meu Pai que andava à minha procura. Ao chegar perto de nós
e vendo-nos abulicamente instalados, com impropérios arremessou a mão direita para
a minha cara – foi a primeira e última vez que o meu velho fizera esse gesto
para mim. Era apologista de que às crianças (filhos) nunca se devia bater na
cara para não banalizar um gesto que retira dignidade – e, segundo o Djoca, em
jeito de gozo, que eu agira como Floyd Patterson (um famoso pugilista de então)
tal fora a agilidade e a eficácia do meu esquivo.
Recolhidos
ao “Quintal” – cada um foi para a sua casa com portas e janelas trancadas – continuando
a ouvir tiros, embora cada vez mais espaçados. Depois veio o silêncio.
Contudo,
à noite recomeçou a agitação. Eram rajadas de metralhadora das vedetas (ou apenas
uma) que patrulhavam as zonas com holofotes, eventualmente, como intimidação ou
à procura de eventuais fugitivos escondidos nos mangais. Estava uma noite de
breu. A cada rajada a minha Mãe que era manjaca (os marinheiros eram na sua
quase totalidade manjacos) dava um grito, suspirava fundo e fazia preces. Assim
foi toda a noite.
No
dia seguinte nenhum marinheiro esteve no “Quintal” e ficamos apreensivos e em expectativa.
Havia pois, uma grande reunião dos manjacos debaixo de um poilão situado
algures da qual a minha Mãe era espaçadamente informada do seu andamento.
Não
perdêramos nenhum dos nossos amigos marinheiros.
Hoje,
apesar de toda a especulação e natural aproveitamento no passado, sem querer
diminuir a importância e gravidade da ocorrência, sabe-se que se tratou de uma
questão meramente laboral e que, com o cruzamento de dados oficiais e
oficiosos, o número de mortos situou-se entre sete a nove pessoas. De tudo isto
falamos no nosso regresso ao passado em Fevereiro do ano transacto pela simples
circunstância de estarmos no “local do crime”.
Fomos
conversando, e conversa puxa conversa, lá me lembrou ele dos longínquos anos 60
quando me convidou para ser seu explicador. É claro que não podia sequer pensar
em recusar. E o nosso Djoca lá se muniu dos livros e cadernos para fazer o 2º
ano dos liceus. Diga-se, em abono da verdade, que a sua literacia era bastante
superior às suas habilitações literárias.
O
nosso “negócio” durou muito pouco. Nem sei se chegou a duas semanas. Ele
delirava
a lembrar-me a cena. Tínhamos chegado aos sólidos geométricos. Depois de umas
explicações, pus-lhe entre as mãos uma caixa de fósforos e pedi-lhe que me identificasse
o sólido e me dissesse de quantas faces, vértices e arestas era composto.
Trocou-mos
todos. Lá voltei a explicar-lhe e a fazer-lhe as mesmas perguntas. Voltou a enganar-se.
E na minha intolerância e impaciência não me passou pala cabeça que o erro
podia estar em mim que não me explicara bem e, num gesto de abuso de confiança
com alguma camaradagem à mistura, disse-lhe: “Tu és burro ou quê?...”
Pousou
de imediato a caixa de fósforos, pôs-se de pé e em tom desafiador, disse-me (em
crioulo): “A explicação acabou aqui. Falta de respeito não! “Lantâ pabia nu na fende
‘m otru cadêra gosse!... Catchôr d’mangu!” E pôs-se em guarda debruçado sobre mim
com os punhos cerrados.
É
claro que não deu em nada. Lá me expliquei com qualquer coisa e dissipei a
tensão.
Nunca
mais houve explicação. E nem a nossa amizade se arrefeceu por um instante que
seja. E todas as vezes que falamos em estudos ele lembra-se da cena e conta-a
com pormenores e humor que só ele sabia fazer. Não se pense que ele alguma vez
se encolheu por via disso. Altivo e “atrevido” como eu carinhosamente o
provocava nunca deixou de ombrear connosco e tomar parte das discussões de
igual para igual.
Mesmo
que eu quisesse não poderia contar as inúmeras peripécias que com o Djoca vivi
ou delas tenha tido conhecimento.
Não
resisto contudo a contar uma pelo insólito da situação e pela excentricidade revelada
do nosso querido Amigo: O nosso Djoca resolve casar e convida para padrinho o
Lotes, o nosso Carlinhos Almeida, fazendo dele ao mesmo tempo seu procurador. O
Lotes, generoso como sempre não se perguntou, e sendo procurador pensou que por
qualquer motivo o Djoca estaria impedido de estar presente.
No
dia do casamento, tudo preparado para a cerimónia e enquanto esta se processava
o nosso amigo Djoca de calções passeava de moto de modo ostensivo pela cidade tendo
tido o descaramento de antes passar pelo Lotes avisando-o da hora do evento e pedindo-lhe
para não se esquecer. É claro que o Lotes ficara furioso mas já nada podia fazer
e a Aida, a nubente, não merecia, pois era um amor de pessoa.
Anos
depois, poucos, a morte prematura e repentina da Aida, marcaria de forma indelével
a vida do Djoca que nunca mais foi a mesma pessoa apesar da sua aparente permanente
boa disposição. Quem o acompanhou de perto sabe bem disso. O casal não chegou a
ter filhos. Mas o Djoca tinha, que eu saiba, duas meninas e um rapaz. Este último no estrangeiro.
Não
obstante ser ‘Ferreira’ como eu, nenhum laço familiar nos ligava. Apenas uma profunda
amizade. Era sim, primo-irmão do lado paterno do médico ginecologista e obstetra
Rui António Ferreira, falecido há cerca de 3 anos em Coimbra e, do lado materno,
do deposto primeiro-ministro Carlos Gomes, Jr..
Muito
mais podia falar do nosso querido Djoca mas as limitações de um texto desta natureza
não deixam espaço para o fazer…
Ficam
a imensa saudade e a memória de um Bom Amigo. E como disse o Pepito no seu e-mail
“a vida, mais pequenina, continua”.
Que
descanse em paz!
A.
Ferreira
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