Legalidade, Legitimidade & Sociedade Civil

domingo, 3 de março de 2013
O Governo tem sido autoritário usando e abusando da sua maioria. Nada tem de ilegal esse comportamento. Não é contudo legítimo ele pensar que ele, e só ele e a sua maioria têm sempre razão e agirem sempre como se assim fosse. A maioria não é o todo, e a democracia tem regras que nem sempre se regem pela aritmética parlamentar.
 
Numa democracia representativa como a nossa, o eleito assume implicitamente um conjunto de compromissos feitos de viva voz   nos comícios, nas entrevistas na comunicação social, nos debates, nas reuniões públicas com as forças vivas da sociedade – ou constantes do seu programa a que se obriga a cumprir. E o dever do cumprimento desses compromissos é tanto maior quanto maior for a ausência de uma sociedade civil autêntica e actuante. O incumprimento, no fundamental, das promessas eleitorais, sem o aparecimento de verdadeiras novas e imprevisíveis circunstâncias impeditivas torna o eleito ilegítimo, porque fraudulento e desonesto.
Igualmente, um presidente da república que jura cumprir a Constituição e ignora-a negligenciando os seus deveres ao promulgar, deixar passar dolosamente – porque previamente avisado para essa eventualidade – leis inconstitucionais para nítido benefício do governo ou do partido que lhe é politicamente próximo, continua a ser legal mas não legítima a sua titularidade por faltar à palavra, por deliberadamente não honrar um juramento.

A legalidade e a legitimidade devem andar de mãos dadas. E embora se sobreponham quase sempre, a fronteira é clara e distinta.
A legitimidade não é pois um problema jurídico mas sim político e comportamental. E desta forma a sua perda – falta de legitimidade – configura formulação de políticas contrárias aos compromissos assumidos e aos interesses mediatos dos eleitores ou um comportamento que não se coaduna com a dignidade da função.

Quando a legitimidade se incompatibiliza com a legalidade a palavra pertencerá à sociedade civil que normalmente exterioriza a sua insatisfação ou mesmo indignação através de manifestações de rua, redes sociais da internet entre outras, enquanto aguarda a chamada às urnas. A legalidade, por sua vez, é um problema dos tribunais que deve merecer tratamento e julgamento imediatos.
A ausência de uma sociedade civil forte no nosso país deve-se, entre outras razões, a omnipresença dos partidos políticos nessas organizações e/ou iniciativas que de modo directo ou indirecto, subtil ou declarado pretende sempre controlá-las, condicionando-as ou orientando-as para os seus propósitos. Isto faz com que qualquer acção ou actividade da sociedade civil “traga”, à partida à colação, uma grande conotação política que popularmente vem sendo medida pelas colorações político-partidárias dos seus promotores. Este preconceito ou desconfiança está de tal forma enraizado no imaginário colectivo que até os próprios promotores procuram escamoteá-lo com a introdução de um ou outro elemento mais “soft” de outra cor mesmo quando este não esteja nos seus propósitos ou não reúna suficientemente as condições inerentes para tomar parte no evento ou na organização. Raramente se tem fugido a este figurino.
 
Ultimamente registaram-se com satisfação movimentações cibernéticas cobrindo áreas tão sensíveis, e daí a sua importância, como a corrupção e a regionalização. Sobre elas circularam petições e subscrições na net. Creio que todos estarão de acordo com os princípios que norteiam e nortearam essas petições.

O que não me parece legítimo (não ilegal) é que se façam circular listas de onde impendem mal disfarçadas “condenações”, por citação em contexto, de pessoas que nunca foram sequer arguidas quanto mais julgadas e muito menos condenadas com trânsito em julgado.
O bom nome de quem quer que seja – amigo ou inimigo, adversário ou correligionário – não pode ser posto em causa perante que pretexto ou propósito for sob pena de incorrermos num julgamento e condenação mediáticos ou populares configurando um atentado ao estado de direito democrático onde impera a presunção de inocência. Não é sensato e não se compagina com o espírito e as boas intenções que normalmente presidem as iniciativas desse género.

Todos os assuntos que digam respeito ao povo cabo-verdiano devem ser discutidos. E não se pode estar, a priori, categoricamente pró ou contra – embora tenhamos os nossos sentimentos – sem os dissecar cumulativamente nos planos social, económico e político, entre outros. Balançar bem os custos, os benefícios e as alternativas. Não com retórica mas com cálculos, propósitos nacionais e honestidade intelectual. E ter sempre presente que temos uma economia com uma forte componente de reciclagem de donativos – dependente de doações e do exterior – o que nos aconselha a não transformar o nosso País numa feira das vaidades, cada um exibindo e guardando a sua capelinha. E neste contexto não podemos ter veleidades de criar estruturas, instituições ou ter qualquer actividade ou iniciativa para depois estender a mão para que nos ajudem a executá-las ou a sustentá-las.

Voltando ao assunto com que iniciei este texto – a “ditadura” da maioria – a oposição política, parlamentar ou não, e os amantes da democracia também têm a sua quota-parte neste estado de coisas. O governo escuda-se na legalidade e compreende-se. Compete à oposição e à sociedade civil fazer ver o governo que na política a legitimidade é uma componente tão relevante quanto a legalidade. Não vale apenas decidir no quadro legal. Este é sempre necessário mas não é suficiente. É igualmente importante que a decisão legal, por acção ou por omissão, seja legítima. Que vá ao encontro das promessas e dos programas eleitorais e seja em benefício da qualidade de vida e dos anseios dos cidadãos.

Mas a principal responsabilidade pela contenção institucional dos excessos do governo é da oposição no seu todo. E neste contexto a maior fatia vai com certeza para os partidos com representação parlamentar com especial relevo para o MpD como partido de alternância governativa. E por este facto é o único que tem, como já disse alguém, o “direito de veto”. Este direito, pertencente aos partidos da alternância governativa, consubstancia-se em assunções claras e declaradas de políticas alternativas, formulando postulados do género:

“Quando for governo vou revogar a lei neste sentido.” “Quando ganhar as eleições, esta lei que hoje aqui foi aprovada por vós, será derrogada por nós, pelo mal que causa aos cabo-verdianos.” “Logo que assumamos o governo esta lei será removida, pelo efeito perverso que à nossa sociedade causa.
 
Meus senhores tenham isso bem presente na feitura de leis, de forma a garantir-lhes alguma perenidade! Leis que não sejam apenas apresentadas com fins imediatos e, por vezes, ostensivamente eleitoralistas”.
 
Isto levaria a maioria a pensar na transitoriedade da sua lei e a procurar, por um lado, uma melhor e mais profunda reflexão na sua elaboração, ponderando os seus efeitos presentes e futuros, por outro lado, promoveria um consenso duradouro para o seu próprio bem e para o do País.

Creio ser ponto assente que este papel é dos legados mais significativos de qualquer oposição que se preze. Isto é, um papel que não se queda, ou não se esgota em criticar e em opor-se sempre que a situação os mereça mas é sobretudo, o de convidar o governo de forma permanente, a meditar sobre a passageira e transitória legalidade detida e que um “amanhã” virá mais cedo do que se possa conjecturar.
 
O que o MpD não pode continuar a fazer é declarar-se apenas contra, mesmo argumentando brilhantemente das razões que o levam a fazê-lo sem assumir claramente a sua posição de veto, isto é, a alternativa como partido da alternância, sem qualquer complexo de dar “dicas” à situação o que a população aprecia, regista  e agradece.
A.Ferreira

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