AFLORAÇÕES DE UM DIÁLOGO SOBRE A SITUAÇÃO DE CABO VERDE

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Já lá vão quase dez anos, José Fortes Lopes lançou um repto ao grupo dos seus ciber-correspondentes mais chegados, em que me incluo, no sentido de uma franca e aberta troca de ideias sobre a situação política e social de Cabo Verde. De então a esta parte, muita água correu debaixo da ponte que iríamos construir entre as nossas idealizações e a nossa vontade comum de pugnar pelo bem da nossa terra.
No contexto de um diálogo entabulado e já arquivado na nossa memória, recupero o que ambos afirmámos a certa altura, por entender que tudo se mantém actual. Disse o José Lopes:
“Efectivamente, há dois observadores da realidade de Cabo Verde: os insiders, residentes, e os outsiders, que incluem a diáspora e os observadores externos ou internacionais. Se por um lado o insider pode ter uma visão micro do que se passa no país, capturando os detalhes, se não estiver armado de bagagem intelectual e espírito crítico suficientes, poderá só ver os detalhes, algumas árvores, mas não toda a floresta. O outsider poderá ter alguma vantagem em ver a fotografia macro, do conjunto, de fora e de longe, sem todavia poder aperceber-se dos detalhes. Nalguns casos a mesma pessoa pode ser insider e outsider. Pode acontecer, como realça o Adriano Miranda Lima, que o outsider se enriqueceu de outras realidades e ganhou assim vantagem sobre um insider umbilical. O ideal é alguém que esteja entre o insider e o outsider, alguém que tenha tido também uma longa vivência fora de Cabo Verde e que agora aí reside”.
A este juízo certeiro e ponderoso, retorqui nos seguintes termos, corroborando o pensamento do meu interlocutor:
“Penso que acertaste em cheio na metáfora da floresta e da árvore. O outsider está para a floresta assim como o insider para a árvore, se bem que o primeiro também pode, à distância, enfocar a árvore junto da qual permanecem os seus familiares ou amigos residentes na terra e de quem recebe inputs constantemente. O outsider não pode é ser excluído do debate nem olhado com suspicácia, quantas vezes acusado por alguns espíritos mesquinhos de se resguardar numa cómoda posição de observador à distância em vez de assentar arraiais na terra natal. Ora, se Cabo Verde é um país diasporense, é inaceitável criar barreiras mentais e artificiais entre os seus filhos em função da maior ou menor lonjura em que vivem. A história do país, se bem analisada e interpretada, só tem de enaltecer o protagonismo da emigração, como amiúde vem lembrando o sociólogo Luiz Andrade Silva, emigrante em França.
Para termos uma noção dos diferentes níveis de focagem em que pode incorrer a observação da realidade, há poucos dias perguntei a um amigo como iam as coisas na terra e a resposta foi que tudo estava bem, fazendo-me ver que, felizmente, sem as cores sombrias com que as notícias públicas pintavam, à data, a situação portuguesa. Estávamos a sofrer os primeiros efeitos da crise de 2008. Ora, aí tínhamos um olhar optimista ou acomodado à aparência da árvore local, com o seu quê de ilusório. Olhar optimista porque a avaliação local pode estar privada de variáveis só perceptíveis à distância e mediante uma maior amplitude da bitola. Olhar acomodado porque a habituação ao real materializado numa circunstância restrita, pode induzir a considerar como natural um quadro de privações menos comum ou menos aceitável numa perspectiva mais alargada.”
Disse a seguir o meu correspondente, e com real fundamento:
“Presentemente, a fotografia macro que Cabo Verde oferece ao outsider é de manchas e nuvens cinzentas a pairar sobre o horizonte: da democracia e do estado de direito, da organização interna do país, dos problemas de auto-suficiência e da sustentabilidade do país, da energia, da água, da segurança, da paz social, etc. É claro que nesta fotografia estão incluídos os avanços indiscutíveis nos últimos 40 anos, e não podia ser diferente.”
Reanalisando, na actualidade, o teor da nossa conversação, é indubitável que o José Lopes pintou bem a floresta mas sem deixar de retratar o perfil de algumas árvores. Na altura, parecia que o comum das pessoas se convencia de que a onda de choque da crise financeira mundial não iria atingir a nossa terra. Mas a pergunta que devia colocar-se, com toda a pertinência, era até quando iriam manter-se os equilíbrios macroeconómicos que vinham sendo conseguidos à custa da providencial ajuda externa, que, verdade seja dita, não fora delapidada ou desviada para fins ilícitos, como aconteceu com alguns países beneficiários. Isto porque se países dotados de recursos naturais e infra-estruturas industriais avançadas estavam a braços com a grave crise do sistema financeiro mundial, como admitir que Cabo Verde poderia sobreviver à mesma sem sentir os seus efeitos gravosos, directa ou indirectamente, e sempre com o risco de reeditar situações dramáticas como em outros tempos da sua história?
Aliás, independentemente de crises conjunturais, o pano de fundo da nossa realidade humano-geográfica é marcado indelevelmente por ciclos naturais que nos aprisionam e tendem a condicionar a nossa existência se não os enfrentarmos com uma atitude desassombrada, realista e em permanente reavaliação das metodologias e dos procedimentos no campo político. O cenário de incerteza, ou a sua iminência, é um espectro que paira sempre sobre o país, a desafiar quem tem a responsabilidade da governação. Por isso, hoje é cada vez mais nítido que uma renovação do tecido partidário, como defende José Lopes, assim como uma profunda reforma do Estado e uma cidadania mais dinâmica e actuante, são condições essenciais para reagirmos aos desafios de um futuro que não se adivinha benfazejo.
Ora, o tecido partidário só pode reformular-se, actualizando-se, mediante um debate ideológico que permita uma mais rigorosa clarificação da identidade de cada força política, em especial as do arco da governação. Para o senso comum, o PAICV e o MpD são as duas forças partidárias que em Cabo Verde representam a dicotomia entre a Esquerda e a Direita, cuja diferença ideológica é, lato sensu, aferida pelo pêndulo entre a promoção das políticas sociais e o grau de liberalização da economia. Mas sucede que os dois partidos têm a sua génese num contexto revolucionário ou de ruptura com as suas incidências, pelo que, decorrido todo um tempo de vida democrática em que a poeira foi assentando, é natural que se imponha agora uma reavaliação e redefinição da sua linha ideológica e da sua prática política, em ordem a uma relativa diferenciação identitária entre ambos, para evitar o juízo popular que vem sendo recorrente: “é tudo a mesma coisa”.
No entanto, reconheça-se que em Cabo Verde, pelas suas limitações, essa dialéctica não tem grande margem para alimentar todas as expectativas, como certamente ninguém ignora. Com efeito, e por exemplo, como pode o mercado assumir rédea larga e livre num país de parcos recursos e em que o atractivo para o investimento se resume praticamente ao sector do turismo? E, por outro lado, como sustentar o estado social sem uma economia razoavelmente consistente e progressiva? Esta constatação pode induzir que, mercê das circunstâncias geoeconómicas, e também das nossas fatalidades naturais, os governos são obrigados a ater-se a um certo pragmatismo na sua acção governativa, mas não parece líquido que tenham de ficar reféns das circunstâncias, incapazes de afirmarem a sua própria identidade na forma de encarar e resolver cada problema concreto.  
Nesta conformidade, o que pode então diferenciar os partidos políticos? Ou seja, em que medida os principais partidos podem distinguir-se nitidamente no plano ideológico e dentro do contexto económico-social que caracteriza o país? Este é o desafio e caber-lhes-á a devida resposta. Se a diferenciação não é muito plausível na sua substancialidade a ponto de gerar políticas sociais e económicas que no plano ideológico se distingam na sua essência, nas vias, nos métodos e nos objectivos, será sempre de esperar que ao menos o tentem no plano da ética política e da exemplaridade da sua conduta perante o país. Aqui estão dois aspectos que, refinados, contêm matéria para uma base de emulação entre os partidos e, porque não, fundacional de uma doutrina conceptual cujo grau de observância e aplicação poderá configurar a diferença que norteará a adesão do eleitor. Recorrendo a uma imagem alegórica, dir-se-á que as circunstâncias são de uma tal exigência no nosso país que os políticos têm de ser morigerados e rigorosos na sua conduta pública, devendo envergar, no seu quotidiano, o fato-macaco em vez de fato e gravata do último modelo, e, nas suas deslocações, preferir o jeep à mercedes luzidia. Não podem encarar o múnus político como um trampolim para um rendoso tacho futuro. Servir o povo de Cabo Verde deve ser o móbil dos seus anseios, a realização pessoal mais engrandecedora.
E não tenhamos ilusões, tem de se remunerar condignamente, e dentro das possibilidades, quem se disponha a dar a cara e a arrostar os sacrifícios pessoais da governação, porque estes são iniludíveis. A compensação moral, essa, é absolutamente justa e necessária, e exigível, e só pode rever-se na boa prática política e nos seus resultados concretos e visíveis. É sobretudo nestes requisitos, que não apenas no discurso retórico, muitas vezes vazio, que o eleitorado colherá a motivação e o alento cívico, inspirado no exemplo dos governantes, para não se furtar aos actos eleitorais e para fazer as suas escolhas conscienciosamente. Digamos que aqueles princípios devem ser os principais mobilizadores do pensamento ideológico e da prática política, os mandamentos que devem nortear a acção de quem se compromete a servir o país.
Todavia, e retornando à nossa realidade nua e crua, penso que Cabo Verde é um país que não pode descurar uma protecção social mínima, dentro da margem de acção consentida aos governos, pois não é previsível que a iniciativa privada alicerçada no mercado livre consiga ser a mola real da política social. Até porque também não é crível que possa vir a florescer no horizonte mais próximo uma economia liberal capaz de assumir proporções condizentes com as exigências de uma parceria social com suficiente relevo. Apenas a expectativa num maciço investimento externo no turismo poderia abrir um olhar prospectivo nessa direcção, mas não somos ingénuos a ponto de pensar que o turismo será a solução para todos os problemas. Ainda mais, quando o exemplo de algumas facetas negativas do comportamento desse sector em algumas regiões do mundo menos desenvolvido, nos aconselha a pôr um certo travão ao entusiasmo lírico. E a aprender com as experiências alheias, evitando repetir os mesmos erros.
Deste modo, Cabo Verde tem de explorar ao máximo as potencialidades da sua agricultura mediante um judicioso aproveitamento e armazenamento das águas pluviais, prosseguindo a construção de barragens e pequenos diques. Neste particular, é preciso olhar para o exemplo das ilhas Canárias, como o Dr. Arsénio de Pina recomenda constantemente nos seus artigos. Por outro lado, a indústria pesqueira e outras actividades ligadas ao mar são igualmente potencialidades exploráveis. É nestes dois quadros precisos que se encaixam as expectativas mais realistas e de resultados mais controláveis. De resto, o “MANIFESTO PARA UM S. VICENTE MELHOR”, que o nosso Grupo da diáspora publicou em 2010, é uma expressão de medidas possíveis que se recomendam não apenas para a nossa ilha (S. Vicente) como para país como um todo, obviamente onde elas forem aplicáveis.
O nosso diálogo não se esgotou. Prosseguiu o seu curso e, de discussão à flor das ideias à abordagem mais aprofundada dos problemas de Cabo Verde, viria a proporcionar-se a criação do Grupo de Reflexão da diáspora, cuja principal agenda é a Regionalização do país.

Tomar, 16 de Novembro de 2016

                                                                 Adriano Miranda Lima




        





0 comentários:

Enviar um comentário