Subsídios para a caboverdeanidade [2]:Qual a origem do Arquipélago? Faz parte de África?

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Por nos parecer muito interessante e bastante clarificador da génese geológica das nossas ilhas e da sua localização e identificação no contexto geográfico, assunto “dogmatizado e mitificado” como argumentário para derivas várias, tomamos a liberdade de publicar o texto adiante, com a devida vénia ao autor, a quem agradecemos a valiosa contribuição e felicitamos pela sua capacidade de síntese e clareza de exposição.

Por José Carlos Mucangana

Hoje, todos parecem acreditar e muitos continuam a afirmar, leigos e conceituados especialistas, que o arquipélago se encontra em África.
Jorge Querido (2011, Um demorado olhar sobre Cabo Verde, 342 p., Chiado Editora, Lisboa ou Praia?) escreve peremptoriamente: “Todas ilhas do arquipélago cabo-verdiano, sem excepção, são de origem vulcânica”, esquecendo-se que a ilha de Maio resultou dum movimento tectónico, que trouxe à superfície sedimentos pelágicos depositados a cerca de 2.000 metros de profundidade (Frederico Machado, 1967, Geologia das ilhas de Cabo Verde, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 25 p.). Depois afirma que “as dez ilhas e algumas ilhotas” (oito mais precisamente) “se situam sobre a vertente da plataforma continental africana”. Poucas linhas mais adiante, lembra que “as ilhas estão separadas da costa africana por fundos que, em muitos pontos, ultrapassam largamente os 3.500 metros de profundidade”.

Como é que Jorge Querido, um conceituado especialista na matéria, quer prolongar a plataforma africana ou a sua “vertente” para ocidente destes fundos oceânicos, onde se encontram as dez ilhas e os oito ilhéus do arquipélago? Esses fundos oceânicos separam obviamente o arquipélago do continente a que ele chama “nosso” e o arquipélago está fora do continente de Jorge Querido.
Desde o século XIX, os geólogos nunca consideraram os arquipélagos da Madeira e de Cabo Verde como uma dependência de África, atendendo à grande profundidade dos mares que os separam deste continente (Fig.1). Esta conclusão foi tirada muito antes do aparecimento da teoria tectónica de placas, que só veio confirmá-la e procurar explicá-la.
Os arquipélagos da Madeira, das Canárias e de Cabo Verde são de formação mais antiga do que dos Açores. Mas, vejamos primeiro o que são ilhas vulcânicas. Trata-se de vulcões submarinos, que são muito numerosos, dando relevo aos fundos oceânicos e às planícies abissais. Só alguns crescem e se levantam acima do nível das águas para formar ilhas.

Há ilhas vulcânicas de dois tipos: As do primeiro tipo como os Açores, a Islândia e a ilha de Santa Helena, pertencem a uma dorsal vulcânica médio-oceânica, ou cordilheira de montanhas submarinas, que divide os oceanos em duas bacias. Nesta dorsal a crosta ou litosfera oceânica abre-se, deixando sair lavas basálticas que se vão solidificando para formar nova litosfera oceânica dum lado e doutro da dorsal, ocupando assim o espaço libertado pelo afastamento dos dois novos continentes, um do outro, no nosso caso o Brasil ou a América do Sul a ocidente e a África a oriente. Há ainda outro tipo de ilhas vulcânicas, que resultam da passagem das placas de litosfera oceânica deslizando sobre o manto (Fig. 2), por cima de pontos (na realidade zonas de mais de 100 Km de dimensões horizontais) de acumulação de calor neste manto.

 Fig. 2. Num corte do globo terrestre (Wikipedia) , pode ver-se que, à volta de uma esfera muito densa, chamada núcleo, vem o manto de 2000 Km de espessura e, por cima deste, à superfície, a litosfera rochosa, que pode ser muito delgada (geralmente 7 a 8 Km de espessura) no fundo dos oceanos ou mais espessa, melhor, menos delgada, com cerca de 30 Km de espessura nos continentes. As dorsais vulcânicas médio-oceânicas dividem a litosfera em placas grandes e pequenas. Estas dorsais expulsam magma basáltico, que faz crescer as placas e as empurra e faz deslizar sobre o manto, umas contra as outras e ainda umas por debaixo das outras, perdendo-se no manto, a chamada subducção. Estes movimentos tectónicos das placas de litosfera rochosas são acompanhados de vulcanismo, nas faixas de tracção, que as separam e fracturam, como nas (1) dorsais médio-oceânicas e nos (2) riftes continentais, exemplo o grande rifte africano e nas faixas de (3) subducção, como a África a passar por debaixo da Europa fechando o Mediterrâneo. Há ainda faixas de compressão como o subcontinente indiano contra a Ásia, levantando os Himalaias e o Tibete. A litosfera oceânica delgada é formada por rochas basálticas de composição química dita básica, ao passo que que a litosfera continental é formada por rochas de composição química preponderantemente ácida, sendo os granitos as rochas plutónicas mais representadas e características dos continentes acompanhados pelas rochas metamórficas.
Estes pontos quentes ou penachos de calor, fundem as rochas do manto e da litosfera oceânica dando origem a Câmaras de magma, que se descarrega periodicamente, rasgando a litosfera oceânica e formando arquipélagos de ilhas alinhadas. Estão neste caso o arquipélago de Hawai, onde o movimento da placa oceânica em relação ao manto é rápido (cerca de 10 cm/ano), os arquipélagos das Canárias, Madeira e Cabo Verde, que se deslocam mais devagar, a menos de 1 ou 2 cm/ano relativamente ao ponto quente correspondente do manto. Todos eles são formados por montanhas submarinas e ilhas alinhadas em cadeias, com o respectivo ponto quente do manto, cuja posição é conhecida ou extrapolada.

Em Cabo Verde há duas cadeias de ilhas alinhadas, a do Norte (Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, esta alongada no sentido do alinhamento, Boa Vista e Sal, que fica fora do alinhamento e a Norte deste e a do Sul (Brava, Fogo Santiago e Maio). Os eixos das duas cadeias fazem um ângulo inferior a 40º, cujo vértice está a 21º 45’ de longitude W e 15º 40’ de latitude N. Neste vértice encontra-se um monte submarino, chamado Monte Cabo Verde (Fig. 1). As ilhas de Maio, Boa Vista e Sal com o parcel de João Valente, entre Maio e Boa Vista a 20 m de profundidade, certamente uma antiga ilha erodida, alinham-se grosseiramente num eixo SSSW-NNNE de fraca curvatura, cortando o ângulo agudo das outras duas cadeias e dando ao conjunto do arquipélago a forma de uma ferradura aberta para o ocidente.
O alinhamento das ilhas em duas cadeias diferentes e uma terceira cadeia de que faz parte o parcel de João Valente indica que o movimento da litosfera oceânica não tem sido uma simples translação, houve rotação e mudança de direcção da translação da placa, quando o continente africano e a Península Arábica embateram com a grande placa euroasiática a Norte. A abertura do Grande Rifte ou sistema de falhas dos lagos da África Oriental também pode ter perturbado este movimento. O terceiro alinhamento das ilhas em arco de círculo pode ser o resultado duma tectónica profunda.
As ilhas de Sal e de Maio são as mais antigas; a sua formação, sem contar os complexos de base e os seus socos, inacessíveis à colheita directa de amostras para datação, iniciou-se há cerca de 17 Ma (milhões de anos). A ilha de Maio não apresenta vulcanismo recente, contrariamente a todas as outras. Está num processo de erosão, que é compensado por um movimento de levantamento vertical (José Ricardo Ramalho, Rui Quartau, Alan Trenhaile, George Helffrich, José Madeira, Sónia S. D. S. Victória e Daniela N. Schmidt, Why have the old Cape Verde islands remained above sea level? Insights from field data and wave erosion modeling,
http//www.webpages.uidaho.edu/dgeist/Chapman/Ramalho_AGU_erosion.pdf).

A formação das outras ilhas datadas não vai além 6 Ma (Santiago, São Nicolau, São Vicente) ou 3 Ma para Santo Antão. A ilha do Fogo com o seu vulcão activo é a mais jovem e está em fase de construção. A idade das ilhas de Boa Vista, Santa Luzia e Brava não são bem conhecidas, só foi extrapolada das ilhas mais próximas (Ricardo Alexandre dos Santos Ramalho, 2011, Building of Cape Verde Islands, Springer Verlag, 207 p.)
Todas estas ilhas estão no cume e no centro de uma elevação arredondada ou abóbada dos fundos submarinos, que é a maior do mundo com mais de 1500 m de altura e um diâmetro lateral de cerca de 1500 Km. A espessura da litosfera oceânica de 7 Km entre as ilhas é normal. Trata.se duma abóbada ou inchamento do próprio manto. A estratigrafia da ilha de Maio indica que o movimento de elevação desta abóbada atingiu 2000 m no fim do Mioceno e início de Oligoceno e que esta elevação foi contemporânea do início da actividade do ponto quente. Ao sul desta elevação encontra-se a planície abissal da Gâmbia e a pequena abóboda da Serra Leoa, ao norte a planície abissal entre Cabo Verde e Madeira, a ocidente as duas planícies abissais unem-se na planície abissal de Cabo Verde, que se prolonga à dorsal médio-atlântica e a oriente a abóboda de Cabo Verde com a sua litosfera oceânica esbarra com o continente africano ou prolonga-se por debaixo deste.

O movimento lento e complicado da placa oceânica praticamente estacionária em relação ao penacho de calor, ou ponto quente do manto e as rupturas tectónicas e movimentos verticais desta placa, são os dois factores, que combinados podem explicar a origem das ilhas e a forma do arquipélago.

A origem das ilhas não é puramente vulcânica, há intervenção da tectónica profunda e da sedimentação no fundo oceânico; as ilhas não são simplesmente vulcânicas. Além de rochas vulcânicas compreendem rochas sedimentares antigas e depositadas a grandes profundidades (ilha de Maio). Em Santiago, Boavista, Maio, S. Vicente, Brava, encontram-se rochas plutónicas macrocristalinas alcalinas, pobres em sílica, e também gabros. Citemos ainda os carbonatitos de Brava e Fogo para sublinhar a complexidade litológica das ilhas. Faltam porém, em todas as ilhas, as rochas ácidas graníticas e metamórficas características das litosferas continentais (Ramalho 2011). Estas ilhas não têm nada que se assemelhe a um continente. Contrariamente a Madagascar, Cabo Verde não é um pedaço de continente, um pequeno continente, que teria ficado entre África e Brasil, quando o continente primitivo, Gonduana se fracturou e desintegrou, ou que se teria separado tardiamente de África. Também não é um micro-continente, como o Arquipélago do Almirante (República de Seychelles), que se separou de Madagascar com a Índia, para depois se separar desta e que compreende um conjunto de ilhas graníticas. Cabo Verde será talvez um microcontinente, uma pequena placa, que falhou no seu desenvolvimento, ficou incompleta, sem crosta continental e não chegou a ser placa continental.

A tectónica de placas não é tão simples como parece na sua apresentação esquemática. As placas nem sempre deslizam sobre uma astenosfera, ou manto superior, bem lubrificada; a superfície de contacto nem sempre é uniforme mecanicamente (viscosidade, resistência à ruptura) e quimicamente; compreende asperidades variadas, é rugosa; pedaços da litosfera continental inferior podem ser arrastados à superfície da astenosfera como talvez tenha acontecido no arquipélago e sua abóbada oceânica.

As ilhas Canárias estão só a cerca de 100 Km da plataforma ou margem do continente africano. Porém, não pertencem ao continente, nem estão relacionadas com a tectónica norte-africana nem com o grande acidente tectónico activo de Agadir, sensivelmente alinhado com elas (J.C. Carracedo et al., 1998, Hot spot volcanism close to a passive continental margin: the Canary islands Geol. Mag., 135, 5, p. 591-604).

As ilhas de Cabo Verde encontram-se a distâncias de 450 a 600 Km do continente mais próximo que é o africano. Estão mais longe de África do que a Madeira, que os madeirenses nunca pretenderam considerar como fazendo parte do continente africano.

A plataforma ou margem continental da África (Fig. 3) é estreita e só se alarga na África do Sul e no canal de Moçambique (Fig. 4). A sua largura é de 20-25 Km, em média, ao longo da costa Atlântica.
Fig. 3. A plataforma continental prolonga o continente sob as águas do oceano até uma profundidade de 200 m, com larguras variáveis de alguns a poucas dezenas de quilómetros. O continente acaba por um talude íngreme entre 200 m e mais de 3000 m de profundidade (Wikipedia)
Fig. 4. Mapa simplificado do continente africano com a sua plataforma continental geralmente estreita (Wikipedia)

Como é que Jorge Querido desejaria encaixar o arquipélago completo de dez ilhas e oito ilhéus, mais um parcel e um monte submarino na estreita plataforma do “seu” continente e no talude ainda mais estreito desta plataforma? As ilhas grandes não cabem lá, quanto menos o arquipélago! Só as “ilhotas” lá caberiam, com as suas pequenas dimensões; o arquipélago só lá cabe em mitos delirantes ou disparates irreflectidos…

Felizmente os recursos do oceano à volta de Cabo Verde pertencem exclusivamente à República de Cabo Verde. Não pode haver disputa com nenhum país africano, americano ou europeu. Os países da África Ocidental exercem as suas jurisdições nos troços de plataforma continental delimitados ou a delimitar relativamente às suas fronteiras terrestres, o que é o caso da Guiné, por exemplo. Cabo Verde não está, nem nunca esteve em África.

Com efeito e resumidamente, o estudo da sua geologia, geoquímica e geofísica só tem comprovado que o arquipélago de Cabo Verde, como os arquipélagos da Madeira e das Canárias, faz parte do Oceano Atlântico, pertence à litosfera oceânica, não faz parte de continente nenhum. Está fora do continente africano e da sua estreita plataforma e separado desta por profundidades superiores a 3.500 m, como atinadamente lembrou Jorge Querido.
O mesmo se pode dizer das ilhas e arquipélagos do Oceano Índico. A grande ilha de Madagascar é um pedaço de continente ou um pequeno continente, que se separou da África, mais precisamente de Moçambique, a seguir à Austrália e ao Subcontinente Indiano. É de origem tectónica, com vulcanismo e rochas vulcânicas na sua periferia onde houve ruptura do grande continente pré-existente, o continente Gonduana. O arquipélago do Almirante é um pedaço de continente ainda mais pequeno. A formação dos Arquipélagos das Mascarenhas e do Comoro está ligada a pontos quentes do manto.
Está assim bem estudado e documentado, que as dez ilhas, oito ilhéus, um parcel e um monte submarino do arquipélago, pertencem ao Oceano Atlântico.
Contrariamente à linguística, o estudo da geologia do arquipélago não foi descurado, nem politizado pelos investigadores cabo-verdianos e portugueses, que trabalham em equipa e se apoiam mutuamente.
Foi recentemente publicado o livro acima referido (Ramalho, 2011), que reúne e interpreta os conhecimentos adquiridos até à data sobre a formação deste arquipélago oceânico. Mas a formação das ilhas e do arquipélago ainda não foi bem compreendida; as investigações continuam. Tampouco ainda não foi bem estudada a tectónica da África Ocidental, que aparenta estabilidade, mas apresenta uma sismicidade notável com movimentos horizontais entre compartimentos separados por falhas e movimentos verticais, com as rias da Guiné a afundarem-se enquanto se eleva o Futa Djalon. Serão estudos apaixonantes a fazer pelas novas gerações de geólogos cabo-verdianos, dispostos a esquecerem os mitos e porem-se a trabalhar para acertar o relógio cabo-verdiano, como já diziam os Claridosos (Jorge Barbosa, 1936, citado por Arnaldo França, em Baltasar Lopes, 2010, Escritos Filológicos e Outros Ensaios, Praia, 365 p.), ou melhor, no caso da geologia, mantê-lo acertado e, quem sabe, adiantá-lo. Tudo depende deles.

Extraído de Artiletra Nº 128/129 de Abril/Maio de 2015

1 comentários:

A. Ferreira disse...

Uma abordagem clássica, em termos geológicos, da origem das nossas ilhas que nem por isso – ou talvez por isso mesmo – deixa de ser excelente e elucidativa.
O autor delega nas próximas gerações de geólogos cabo-verdianos, seguramente, apoiadas em metodologias e ferramentas de investigação mais avançadas, o aprofundamento da questão.
Apenas dois breves ajustamentos: o 1º é relativo ao facto de assinalar a complexidade da geologia de Cabo Verde com a presença de carbonatitos – uma rocha magmática, ou ígnea, pouco comum – apenas nas ilhas de Fogo e Brava. Talvez seja um esquecimento, uma vez que também em Santiago, mais precisamente na ribeira da Barca e Tarrafal (Norte de Monte Graciosa) há também presença de carbonatitos. Na “Geologia de Santiago” de A. Serralheiro entre o que ele classificou de calcarenitos, foram depois identificados nos locais que referi, por L. Celestino de Sousa e Silva, carbonatitos.
Um outro ajustamento, diz respeito a ausência de eventuais conflitos com países vizinhos. Aqui o autor não teve em conta que a ZEE (zona económica exclusiva) estende-se a um raio de 200 milhas marítimas e o espaço (450 a 600 Km) que separa Cabo Verde dos seus vizinhos continentais é uma distância bem inferior a 2 X 200 milhas marítimas – 200 para cada país. Haverá e há, portanto, zonas de sobreposição que poderiam ser de potenciais conflitos.
Não deixo, contudo, de felicitar o articulista pelo seu oportuno e pedagógico artigo.

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