MESA REDONDA SOBRE O HOMEM CABO-VERDIANO - 7

segunda-feira, 12 de junho de 2017
A língua crioula é um idioma de poupança e de adaptação regional, com a riqueza fonética e a plasticidade de um verdadeiro idioma ou é apenas um «falar útil», bom como instrumento de comunicação, mas incapaz para outras realizações intelectuais?

Presidente: A língua crioula é um idioma de poupança e de adaptação regional, com a riqueza fonética e a plasticidade de um verdadeiro idioma ou é apenas um «falar útil», bom como instrumento de comunicação, mas incapaz para outras realizações intelectuais? Eis o problema agora em discussão.
Baltasar Lopes: Bom. Eu suponho o seguinte: originariamente, o núcleo primitivo da formação do crioulo devia ter um carácter exclusivamente profissional, portanto com este carácter de falar útil. Modernamente, não. O crioulo oferece hoje principalmente aquilo que Deschanel chamava formação, isto é, não estagnou. Apresenta uma capacidade de enriquecimento em vários domínios, em todos os domínios em que uma língua se pode enriquecer. Por exemplo, num dos aspectos: o fonético. Foi Maurice Ramon quem apontou que muita gente supõe que uma língua se enriquece pela sua sintaxe, pelo vocabulário, quando, pelo contrário, a maior tendência de aristocratização de uma língua é a fonética; e então nisto Cabo Verde é uma terra ideal para um dialectólogo e para um romanista. Como todas as línguas, temos na nossa um fundo fonético tradicional, fundo que depois é reconstruído. É claro que hoje – e não é só hoje, a situação vem de há muito – há um contacto bastante assíduo com a cultura europeia veiculada, ou por europeus ou – e isto é o mais importante – por indivíduos naturais das ilhas, indivíduos ilustrados ou pelo menos alfabetizados. De modo que se nota a influência constante da língua mãe. E isto compreende-se porque o crioulo está numa situação diferente da que estiveram o português e, ou qualquer língua românica com o latim. Quando certas línguas se formaram, o latim já não era uma realidade viva, ao passo que nós notamos um dialecto, um idioma, que evolui sob os olhos da língua matriz, sob uma influência constante da tal língua matriz. Há este tal princípio de aristocratização que se nota por toda a parte.
Uma palavra de fundo tradicional é transformada imediatamente na boca do povo por influência das pessoas ilustradas e assume uma fisionomia fonética muito mais fácil do que o português. Para isso contribuíram vários factores que não posso referir aqui (alotropismos, formas divergentes). É rara a palavra que não assuma aqui duas fisionomias fonéticas: a fisionomia tradicional e uma fisionomia muito próxima do português. É claro que a tradicional caracteriza-se principalmente por dois fenómenos fundamentais, um deles decorrente do outro: o primeiro é a atenuação das vogais átonas, donde o encontro violento de consoantes; é então o mecanismo de assimilação que tem na ilha de Santo Antão o seu paraíso. O foneticista que vá à ilha de Santo Antão, e que se interesse pelos fenómenos de assimilação, encontrará lá elementos em abundância, vitalidade na fonética, vitalidade no léxico. Muita gente também supõe que o crioulo tem um léxico na sua maioria de origem africana. Engana-se. Eu suponho poder falar particularmente sobre isso porque me dei a um trabalho de Topsius que parece, ao fim e ao cabo, que vai ser publicado: e nesse trabalho entro no léxico.
A certa altura dei-me ao trabalho de verificar a percentagem de termos que eu tinha a certeza de não serem de origem portuguesa. Percentagem mínima: 3%, se tanto. E no conjunto do léxico é a mesma coisa. É claro que quem não conheça o crioulo desnorteia-se perante as formas fonéticas.
Todos os dias estamos a enriquecer o léxico. Todos nós que ensinamos português no liceu verificamos que o crioulo já oferece aos alunos imensas possibilidades expressionais. Eu já ouvi à saída de exercícios de matemática e até de filosofia os alunos a discutirem sobre o exercício em crioulo.
Júlio Monteiro: Eu já ouvi falarem sobre a «mística dos cruzados».
Baltasar Lopes: É uma língua viva; viva e com grandes possibilidades. Porque está adquirindo cada dia novos recursos expressionais. E claro, há que atender ao seguinte: o crioulo trabalha sobre um sistema irremediavelmente estabelecido: o sistema morfológico. Creio que o primeiro que estabeleceu este ponto de vista foi Tarracher e mais tarde Menier, que disseram: o que serve para definir uma língua e a sua filiação noutra é a estrutura morfológica, mais do que a fonética e mais do que o léxico e mais do que a sintaxe. Reduziu o sistema morfológico do português. Reduziu, simplificando. E não fez descoberta alguma porque isto é uma fatalidade que acompanha todas as línguas quando evoluem em domínios novos: começam sistematicamente a simplificar o seu sistema morfológico que depois compensam com processos periplásticos. E o crioulo apresenta esta coisa curiosa: a sua vitalidade dá-lhe a possibilidade de responder positivamente a um problema posto em 1936 pelo Osório de Oliveira e por mim: «será o crioulo uma língua?» É claro, não é uma língua de civilização, é uma língua regional, com todas as características, todas as possibilidades.
Se os brasileiros que aí há bastante tempo intentaram a tese da língua brasileira, em vez de terem a expressão idiomática que têm, muito aproximada do português, apesar das peculiaridades de fala brasileira, tivessem a simplificação que nós temos, a diferenciação que nós temos, podiam perfeitamente fazer uma língua. E note-se que era uma curiosíssima experiência, porque seria uma língua românica criada nos tempos modernos a par do português. Quanto às possibilidades de expressão literária, suponho que essas são pequenas.
Eu não li, mas alguém me disse que numa certa altura se fez uma espécie de competição para saber quais eram as melhores traduções das endeixas da «Bárbara Escrava», e que entre as melhores foram consideradas uma do galego (o que não admira, porque, como disse Lapa, são dois povos que andam a falar às escondidas a mesma língua) e outra do Eugénio Tavares, de facto uma esplêndida tradução. Como é esplêndida a sua tradução da «Enjeitadinha», de João de Deus.
Tem possibilidades. Como Sr. Doutor sabe, é mais fácil o começo de uma expressão literária em verso, em poesia, do que em prosa. No entanto, também em prosa há um bom ensaio de prosificação do crioulo, de Pedro Cardoso, e eu lembro-me – não sei se você se lembra ó Henrique! – ainda você era estudante, por volta de 1939, que me mostrou uns papéis do Virgílio Barbosa falando até das efemérides locais e de motivos de política local. Uma maravilha! O crioulo servindo, mas nitidamente, para isso.
É uma língua viva, não é um simples falar – não se compara, ao que eu posso deduzir dos textos que pude conhecer, por exemplo, com o crioulo de São Tomé; não se compara com outros falares, como os falares da Guiana. É uma língua suficiente. Tem mais vitalidade do que o crioulo de Macau.
Deve ser a criação românica neo-europeia de origem portuguesa mais viva e com mais futuro, mais futuro literário. É claro que esse futuro está condicionado por outros factores, por outras subjacências. Mas que em si, intrinsecamente, tem condições, tem futuro, tem. Serve de língua franca.
Suponho que quando se refere a ele como falar útil alude a ser um instrumento de comunicação. De facto, desempenha essa função de língua franca.  O crioulo que se fala na Guiné é parecidíssimo com o de Santiago e está cheio de termos de vocabulário principalmente mandinga. Serve de instrumento geral de comunicação, não só na Guiné, mas até com o indígena da Guiné francesa. Exerce lá esta função. Saiu do seu habitat, não está, como cá, submetido a um mecanismo de aristocratização, de nobilização, de enriquecimento, mas conserva sempre a fidelidade das suas raízes, principalmente no sistema gramatical, morfológico.
Almerindo Lessa: Queria dizer ao Sr. Dr. Baltasar Lopes a razão que me levou a pôr esta questão. Eu já conhecia algumas das crónicas radiofónicas em que contestou um ou outro pormenor da crítica de Gilberto Freire a propósito do crioulo e tinha lido na Claridade o seu magnifico trabalho sobre «Uma experiência românica nos trópicos». Mas eu queria provocá-lo, porque o meu juízo também fora provocado por uma opinião inserta num estudo acerca dos termos médicos do crioulo cabo-verdiano: «a terminologia dos filhos de Cabo Verde mostra-se mais pobre do que o léxico similar plebeu das ilhas adjacentes».
Baltasar Lopes: Isso é que não é verdade. Pode dizer que isso não é verdade. É como o caso de tristeosa. O vocabulário básico do crioulo não é menos rico do que o falar básico de qualquer outro indivíduo da metrópole. Pelo contrário. E a explicação talvez resida no contacto que houve antigamente entre o clérigo e o iletrado. Talvez por razões eclesiásticas. O teor de vida das ilhas era um pouco diferente, se bem que ainda hoje exista esse contacto. Qualquer de nós é bilingue. Eu falo o crioulo de S. Nicolau como qualquer rústico. Além disso, aparecem termos cultos na boca do povo.
Há bastante tempo, fui a S. Nicolau. Desembarquei no Tarrafal e foi meu companheiro de viagem um rapaz chamado Cesário, lá do Cabeçalinho. A certa altura chegámos a um ponto chamado «os Galegos». O lugar é um bocado escuro, um bocado soterrado, e sabe qual é o nome que ele deu aquele ermo? «neste clipse», neste eclipse. Está a ver a imaginação topológica, a riqueza, a fertilidade de transposição metafórica.
Além disso, ainda lá se emprega o termo no sentido de situação difícil. Disseram-me também que em Santo Antão, para designar uma situação difícil, em que o indivíduo está como o burro de Buridan, se diz «cis e caris»; entre Cila Caríbdis!
O vocabulário é talvez, pelo contrário, a nossa maior riqueza. Para a linguagem coloquial, para a linguagem de todos os dias, o crioulo tem tudo.
Augusto Miranda: Há uma diferença. É que o português é mais poderoso, mais enérgico e de maior influência sobre o espírito sóbrio do crioulo.
Baltasar Lopes: É curioso. Isso faz-me lembrar aquela explicação de Gilberto Freyre, embora sem fundamento, sobre a sínfise prosodial, brasileira: o dá-me e o mi-dá; o brasileiro mais doce e o português mais duro, mais zangado. São sobrevivências culturais.


In CABO VERDE – Boletim de Propaganda e Informação, Nº 102 – Março de 1958

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