MESA REDONDA SOBRE O HOMEM CABO-VERDIANO - 5

terça-feira, 6 de junho de 2017


Sendo a sensualidade uma das razões da criação artística, como explicar que falte em Cabo Verde uma arte original ou ela se encontre limitada à poesia e ao bailado? Ou existe mesmo uma arte original em estado de hibernação?

Presidente: É conveniente passarmos à discussão do segundo ponto proposto: «Sendo a sensualidade uma das razões da criação artística, como explicar que falte em Cabo Verde uma arte original ou ela se encontre limitada à poesia e ao bailado? Ou existe mesmo uma arte original em estado de hibernação?»
Baltasar Lopes: Eu deduzo da redacção desta alínea que o Sr. Dr. Lessa estabelece uma correlação positiva entre a sensualidade e a criação artística, não é? Portanto, suponho que considera a sensualidade como um dos traços do cabo-verdiano, não é isso? E esse traço por certo, de origem africana. No meu francês das antologias, lembro-me de ter lido que, contrariamente ao que muita gente supõe, o africano não é portador de uma sexualidade acentuada. Lembro-me até que Gilberto Freire, na Casa Grande e Senzala, fala das relações entre o português e a ameríndia e diz que foram duas sexualidades exaltadas que se encontraram em presença, do lado do português e do lado da ameríndia. E cita até um depoimento de Francisco Adolfo Varnhagen que se referia à gula com que as ameríndias se entregavam ao português levadas por preferência de ordem priápica, encontrando com ele satisfações que não encontravam no ameríndio. É claro que eu suponho que isto tinha a sua explicação porque o homem levava uma vida mais activa de guerra, de caça, de pesca, contrariamente aos lazeres da mulher. E também li que esta é uma das razões que levaram alguns etnógrafos e antropologistas a atribuir esta predominância sexual nas danças, não só africanas mas ameríndias; tais danças teriam um carácter orgiástico e sexual. Ora eu lembro-me de que um dos autores que melhor trataram o assunto foi Croley num livro de 1929, e também Havelock Ellis, que estabelece, pelo contrário, uma correlação negativa. Diz que estas danças, em vez de serem reveladoras de um carácter sexual intenso, são, pelo contrário, expedientes compensatórios. Isto é: procuram nas danças a excitação que o europeu encontra mais ou menos a frio. Ora eu gostaria que o Sr. Dr. Almerindo Lessa me dissesse se acha que a dança da Ribeira da Julião, a que assistiu, revela uma sexualidade exaltada da parte do cabo-verdiano; e se estas informações que eu estou dando para a mesa-redonda, incluindo a opinião de Croley de que a sexualidade se exalta com a civilização, estão desactualizadas? Isto é uma premissa inicial, sobre a sexualidade, para estabelecer uma correlação com a criação artística. E terá verificado quaisquer outros factores?
Almerinda Lessa: O problema de sensualidade fraca do africano tem uma explicação puramente fisiológica. A intensidade sexual física de um negro, por exemplo de um banto, é inferior a de um branco. Há uma falta de sincronismo no comércio sexual, o que cria uma insatisfação, que pode levar à inibição. Creio que a dança, ao contrário do que pensa H. Ellis, que é, na verdade, a primeira autoridade moderna nos estudos de psicologia sexual, representa um expediente ou uma sublimação; ou um acto preliminar de excitação compensatória dessa dessincronização. Eu encontro que, na actividade paralela à vida sexual, a dança e a música que eu vi e ouvi na Ribeira Julião – o «cola São João» – são, nitidamente, atitudes eróticas preliminares de conquista, de posse.
Baltasar Lopes: De conquista sem ideia de compensação?
Almerindo Lessa: O que é ideia de compensação?
Baltasar Lopes: Compensar justamente o desfasamento.
Almerindo Lessa: Exactamente. Preparatório para diminuir o desfasamento e aproximar a cronologia do amor. O indivíduo dilui-se na dança. O negro não tem as possibilidades de outros povos em idênticas circunstâncias. Um dos povos mais evoluídos que eu conheço, em contacto com todas as excitações de natureza social – que é o suíço – tem um comportamento físico sexual o mais próximo possível dos negros bantos e que sublima com o desporto. A fase de desfasamento entre o homem e a mulher da Suíça alemã é tão grande, se não for maior, do que a fase de desfasamento que existe em povos do interior de África. Pelo que a resposta à premissa do Dr Baltasar Lopes, com a exactidão que pretende, é muito difícil, porque, depois das duas últimas guerras foram introduzidos elementos de tal maneira perturbadores em todas as manifestações de natureza sexual que temos de rever todos os dados anteriores. Por exemplo, uma das coisas que me surpreende é a indiferença, ou a coragem (se quiserem que eu diga assim), com que percebo que uma menina em Cabo Verde está disposta a arrostar a circunstância de ser uma menina-mãe.
Baltasar Lopes: Suponho que é mais de carácter moral.
Júlio Monteiro: Eu opto para uma explicação biológica.
Almerindo Lessa: Isto serve para demonstrar que no campo da Sociologia surgem a todo o momento situações que nos obrigam a rever premissas anteriores. Eu penso que a sensualidade que não pode realizar-se por motivos sociais ou fisiológicos tem de ser sublimada. E que uma das formas de sublimação pode ser criação artística. De outra forma conduzirá a situações patológicas.
Baltasar Lopes: É um problema que fica em suspenso.
Almerindo Lessa: Assim o creio.
Daniel Tavares: Referiu-se ao bailado da Ribeira de Julião: cola S. João. A palavra está mal empregada. O metropolitano, desconhecendo a origem da palavra e da dança, chama-lhe cola-cola: da ideia de colar. Colar S. João, como colar tal, tal, tal, é falar em voz alta. Colar isto, colar aquilo… É trazida de Santo Antão. O povo dança falando.
Almerindo Lessa: Mas o acto da dança, aquilo que nós observamos, o movimento, o caminhar de um corpo contra outro corpo, é nitidamente uma aproximação carnal.
Daniel Tavares: De acordo. Mas é uma importação nítida de Portugal, da dança do fado e do ritmo da guitarra. E esta dança tem uma tal violência que me não parece que seja sensualidade. É verdade que o cabo-verdiano terá uma sexualidade idêntica à dos outros povos, mas parece-me inábil para falar a uma mulher. É claro que o europeu que vem de fora há-de estranhar o interesse da cabo-verdiana por ele. Compreende-se. Há cá um rifão popular que diz: «quem tiver paciência acaba por ter um filho branco». Ter um filho branco é a expressão máxima de tal aristocratização. É a sua máxima aspiração e esse desejo de ter um filho «aristocrata» pode enganar o indivíduo que cá aparecer. Não que, de facto, a cabo-verdiana seja mais sensível do que a europeia. Quanto à criação artística, nós não temos nada que nos possa levar à criação artística. Há uma arte rudimentar. Há pouco o Dr. Gonçalves falava do tecelão antigo. Ainda conheci vários e bons. Um ganhou um prémio na Exposição de Paris. Mas não há escolas de arte aqui em Cabo Verde. Nunca houve. Agora é que começamos a ter uma professora no liceu.
Júlio Monteiro: Eu queria pôr à consideração da Mesa, e muito especialmente à apreciação do Dr. Lessa, dois pontos ainda relacionados com a discussão e sobre os quais eu tenho uma opinião em desacordo com a do Sr. Dr. Baltasar Lopes, que falou na falta de sexualidade forte da parte do cabo-verdiano…
Baltasar Lopes: Não. Eu não falei na falta de sexualidade. Eu pus apenas uma dúvida. Visto que se tratava de uma premissa, pedi ao Sr. Dr. Lessa o favor de me esclarecer se o facto de nós termos raízes africanas significava ipso facto a existência de uma sexualidade. Eu sei lá se temos ou não temos!
Júlio Monteiro: Muito bem. Sobre as nossas possibilidades sexuais masculinas…
Baltasar Lopes: As nossas, não!
Júlio Monteiro: O Dr. Lessa referiu à facilidade com que lhe disseram que a menina de S. Vicente está disposta a ser menina-mãe e afirmou que se tratava talvez de um problema de ordem moral. Permito-me discordar desses dois pontos. Pelas funções que exerço, contacto de perto com a nossa natalidade e posso dizer-lhes que pude verificar, e isso me penaliza imenso, que grande número de crianças nascidas em S. Vicente são filhos ilegítimos e desses a quase totalidade é constituída por filhos de pais incógnitos. Disso pode, à primeira vista, parecer que a mulher de S. Vicente se entrega com muita facilidade e que, de facto, há da parte da menina uma quebra moral que lhe permita ser menina-mãe com igual facilidade. Eu suponho que o problema, visto assim, será visto de uma forma primária. E penso assim pela seguinte razão: volto a lembrar que estas ilhas eram desertas; e que a sua população está sujeita a crises cíclicas e que estas crises destroem grande parte da população. Ora o que é que sucede, em meu entender? Sucede que a natureza defende-se, cada vez que é atacada. Não será a natureza a defender-se promovendo tal reprodução para manter viva e sempre presente a espécie humana nestas ilhas? A mulher cabo-verdiana não é tão fácil como parece. Há ilhas em que a lactação tem um período de anos, durante os quais a mulher não tem contacto sexual com o homem. Eu não posso considerar que mulheres com este temperamento sejam mulheres desordenadas no ponto de vista sexual ou moral. O cabo-verdiano, sim. Muda de mulher para mulher, pela facilidade do número (há mais mulheres do que homens) e porque ainda está preso a uma raiz maléfica do passado – a escravatura. Mas eu suponho que o fará ainda por uma imposição que está fora dele, por uma lei biológica. Pedia ao Sr. Dr. Lessa que pensasse sobre este problema.
Almerindo Lessa: Em primeiro lugar, queria frisar que não levantei por forma alguma o problema da desonestidade da mulher cabo-verdiana. Isso posto de parte, direi ao Sr. Dr. Júlio Monteiro que é, na verdade, uma lei geral de Biologia que sempre que há uma hecatombe ou uma queda no número de indivíduos de qualquer região há em seguida um aumento de natalidade. Não se conseguiu ainda encontrar uma explicação fisiológica, mas é um facto histórico que depois de todas as guerras aumenta a natalidade masculina. O que também se deve verificar em Cabo Verde – as fomes são como as guerras – visto que estas ilhas têm um dos maiores índices de masculinidade conhecidos. Não temos para isso uma explicação, a não ser a explicação poética de ser a natureza-mãe procurando corrigir…
Daniel Tavares: Quando nas outras ilhas, por exemplo, em Santo Antão, qualquer pessoa fracassa (a mulher que dá em droga, o homem que se comporta mal, et cetera) procura-se por todas as formas deitá-la para fora, mandá-la para S. Vicente. Não se pode, portanto, fazer uma ideia do cabo-verdiano pelo que se vê em S. Vicente.
Almerindo Lessa: É uma lei geral que se verifica em todos os grandes portos.
Daniel Tavares: Além disso, nas casas de S. Vicente (eu sei isso como médico) encontra-se num quarto, deitadas lado a lado, onze, catorze e mais pessoas em promiscuidade: pais, filhos, parentes. Portanto: as péssimas condições económicas, a superpovoação de S. Vicente e a população que vem expulsa das outras ilhas explicam certos factos.
Almerindo Lessa: É necessário introduzir nesse raciocínio mais um factor. Na cidade do Porto, que eu conheço bem – é a minha terra – existem milhares de casas onde a situação de promiscuidade é semelhante, e lá o número de meninas mães é muito mais pequeno, creio eu. Há duas razões, a meu ver: uma, é que é muito mais fácil o abortamento numa grande cidade europeia do que aqui em S. Vicente; a outra, que volto a pressentir, é haver lá, possivelmente, uma maior resistência moral em receber em sociedade uma menina-mãe do que aqui em S. Vicente onde verifico um ambiente mais compreensivo que possivelmente lhe cria uma maior facilidade. Quanto ao resto, quanto à possibilidade de uma rapariga cair, aqui ou em qualquer grande porto de mar, afigura-se-me igual.
António Gonçalves: Eu creio que nesta pergunta há uma questão concreta acerca de arte e nós afastamo-nos lamentavelmente dela, para discutirmos a mulher cabo-verdiana e os seus problemas. Eu tenho a impressão de que o que vale a pena discutir é aquela pergunta: Sendo a sensualidade uma das razões da criação artística, como explicar que falte em Cabo Verde uma arte original?
Tenho a impressão de que a pergunta restringe efectivamente as origens da Arte à sensualidade. Assim…
Almerindo Lessa: Foi uma das razões. Porque as outras admito eu que existem.
Baltasar Lopes: Eu até falei numa correlação.
António Gonçalves: Em primeiro lugar, é indispensável discutir-se que espécie de sensualidade. Nas raízes da origem da Arte deverá existir essa sensualidade, digamos orgânica. Agora para que ela se torne origem da Arte, é indispensável promover sublimação. Há o artista casto, eu creio mesmo que há doutrinas várias a esse respeito, mas, por via de regra, o grande artista foge às vicissitudes do amor. Estou a lembrar-me de uma conferência de Le Vigier, que ouvi na Faculdade de Letras, onde dizia que De La Croix fugia do amor como o diabo da cruz.
Baltasar Lopes: Uma coisa parecida com o que Gosset chamaria ascese artística.
António Gonçalves: Portanto esta sensualidade é uma sensualidade artística. O que há de inconveniente nestas perguntas é que são um conjunto de problemas sobre os quais nós temos caminhado um pouco no vácuo.
Não se têm precisado os termos das perguntas que o Sr. Dr. Almerindo Lessa põe.
Almerindo Lessa: Eu volto a esclarecer, exactamente, qual foi a raiz da minha pergunta. Das leituras, e de algum convívio que tenho com os povos africanos, eu sei que os críticos da escultura e da pintura estão desde 1912, particularmente interessados em justificar que existe uma raiz de sensualidade sexual na criação da Arte Negra. Já o disse atrás. Sendo assim, existindo uma raiz afra na população cabo-verdiana e não tendo eu encontrado aqui uma arte regional popular, atrevi-me a perguntar como, existindo tal raiz, não existe também uma criação artística daquele género?
            António Gonçalves: Incontestavelmente as aparências do cabo-verdiano são de um ente sensual. Poderá ser que esta sensualidade provenha de uma certa indisciplina social. Agora falta-lhe realmente essa arte regional. Talvez tenha intervindo no acentuamento do aspecto da sensualidade do bailado cabo-verdiano a ociosidade.
            Baltasar Lopes: Não me parece isso. Numa morna, em dois pares colados, há mais sensibilidade do que sexualidade.
            António Gonçalves: Há! Há! Bem, o melhor é ficarmos nesta questão: o cabo-verdiano, pelo menos aparentemente, é sensual, e, todavia, não apresenta esta criação artística. Procura-se onde é que está a origem da ausência desta Arte. É muito natural que não exista imaginação capaz de a elaborar, por uma falta de convívio com a Natureza, que proveria talvez o aspecto ascético, da aridez, da sua paisagem. Uma paisagem que efectivamente prende a atenção de alguns raffinés (certos estrangeiros que aqui vêm ficam encantados com o jogo das linhas da paisagem cabo-verdiana), mas não desperta, efectivamente, a imaginação do nosso homem.
            Baltasar Lopes: Seria curioso, talvez, estabelecer um paralelismo entre as manifestações de arte popular de Cabo Verde com as de certas regiões da África negra ou, por exemplo, do Alentejo, cuja paisagem geográfica é parecida.
            António Gonçalves: Para que a sensibilidade se transforme em Arte é necessário que seja profunda. E neste ponto, creio que o cabo-verdiano peca. A sua sensibilidade é muitas vezes exuberante, mas fácil e superficial; é um instável na sua sensibilidade. E dela provem uma certa falta de criação artística. É claro, que estamos apenas a apresentar sugestões. Porque uma das características da mentalidade cabo-verdiana é que está no princípio. Sòmente agora começa a tomar consciência de si própria. A análise do problema é ainda incompleta. Mas ficam as sugestões.
            Eu tenho a impressão de que o cabo-verdiano não lhe falta o sentido do mistério (pelo menos aparentemente); tem o sentido da Arte, do mistério, do culto, daquilo que tem de procurar atrás das formas. E tem, efectivamente, sensibilidade e o dom de realizar formas. Algumas indústrias populares revelam uma habilidade manual extraordinária. Basta que alguém lhe apresente um modelo, que ele imita o modelo. Tem o sentido de formas do artista, tem a mão do artista.
            Augusto Miranda: Eu não acredito. Somos incultos. Precisamos de cultura.
            Baltasar Lopes: É imaturidade.
            António Gonçalves:Do outro lado uma natureza que o não leva às formas artísticas e uma sensibilidade instável e superficial e com apenas cem anos de evolução.
            Baltasar Lopes: E isso é que é preciso ver-se. Note-se que 4 ou 5 séculos que nós temos é pouco, é nada. É o caso que acontece com o Brasil, que é um país novo, apesar de ter 4 séculos.
            Almerindo Lessa: Um país em puberdade social.
            Baltasar Lopes: Absolutamente. E é uma das razões. Podemos acrescentar um pormenor. Dentro das nossas possibilidades de literatura, só recentemente surgiram as hipóteses para o assentamento de uma literatura cabo-verdiana.

In CABO VERDE – Boletim de Propaganda e Informação, Nº 100 – Janeiro de 1958

0 comentários:

Enviar um comentário