AINDA "MESA REDONDA SOBRE O HOMEM CABO-VERDIANO"

sábado, 17 de junho de 2017

Após a “Mesa-Redonda Sobre o Homem Cabo-verdiano”, o Dr. Almerindo Lessa, seu promotor, publicou já em Lisboa, e à guisa de conclusões, 3 artigos no “Diário Popular” a que intitulou “Na Hora di Bai  Meditação Biológica Sobre o Homem de Cabo Verde” que também aqui se publicam com vista a complementar o trabalho.

 NA HORA DI BAI
Primeira meditação biológica
 sobre o homem de cabo verde
Em 1953 foram publicados dois livros fundamentais para a compreensão da cultura ocidental e a interpretação das culturas dos homens de cor. O primeiro editado, conjuntamente, pelos governos de cinco países: da França, da Inglaterra, e das três nações da Benelux, é o chamado «manifesto de Bruxelas» e constitui, além de um ideário, a primeira tentativa séria para uma pedagogia da Europa, numa didáctica supranacional. O segundo, publicado pela U. N. E. S.C. O. intitula-se «A originalidade das culturas» e é subscrito, entre outros, por dois brasileiros − Sérgio Buarque de Hollanda e Castro Leal −, é um ensaio sobre a diversidade e o valor daquelas que neste momento afloram ou refloram em territórios que se consideravam culturalmente esgotados ou improdutivos. É à luz das doutrinas desses dois livros que me proponho meditar sobre a cultura e o homem de Cabo Verde.
A história do arquipélago começa naquela manhã de Maio de 1460, precisamente dia um, em que Diogo Gomes e António da Noli, ao regressarem de Zara para Lisboa, viram, dois dias e uma noite depois, algumas ilhas desconhecidas e numa, delas − que chamaram de Santiago − lançaram ferro e desceram. Vinte e quatro meses depois todas estavam descobertas, e logo por ordem do Infante começou o seu povoamento, com brancos da metrópole e escravos da Guiné; assim se iniciou a mais antiga colónia tropical do Mundo, e começaram os portugueses a criar uma raça nova.
Os observadores futuros da cultura europeia hão-de encontrar que os dois pontos de apoio fundamentais para se poder compreender a política deste século, e sobretudo, destes últimos vinte anos, são uma tentativa para enfeixar os valores comuns da civilização europeia, unindo por cima das fronteiras e dos corpos nacionais, que são intangíveis, os valores necessários à sua grandeza e até à sua simples sobrevivência; e uma tentativa de compreensão dos valores culturais dos homens de cor. Nesta síntese, nesta dualidade, está o dilema da Europa, como na sua falsa apologia está a falência internacional de uma das maiores nações dos nossos dias, daquela cujo povo parece apostado em não querer compreender as diferenças que separam a escravidão da criação e o colonialismo de exploração do colonialismo ideológico.
O manifesto de Bruxelas, é uma apologia, dirigida, sobretudo, aos professores, para que ajudem a unificar os bens comuns da Europa − a situação geográfica, a maturidade política, as fontes económicas ou a vida cultural − que fizeram nascer, apesar dos conflitos de ideias e de interesses, os laços que unem a estrutura física e moral do seu Ocidente, e que são feitos das contribuições que cada país trouxe, em cada uma das suas épocas de criação, para o movimento geral das Ciências, das Artes, e das Letras. Porque o nosso Humanismo é feito tanto pelo Cristianismo como pelas crises de pensamento religioso, tanto pela ciência experimental como pela democracia politica, tanto pela indústria como pela poesia. A nossa força moral vem do nosso sentido de homem, e do que temos da sua liberdade, da sua dignidade e dos limites morais do progresso. Se quiserem que eu diga, por uma forma alegórica, aquilo mesmo que quero dizer, direi que sentimos as responsabilidades que cabem aos descendentes dos homens que construíram o Mundo.
Em plena maturidade o homem ocidental da Europa procura, agora, compreender os valores e as disponibilidades culturais dos povos de cor. E o homem português, que além de ocidental tem a responsabilidade de ter criado um desses tipos de homem – que são os mulatos - não pode faltar a esta chamada.
A conferência da U. N. E. S. C. O. procurou analisar a filosofia comum existente na diversidade das culturas e os aspectos espirituais, morais e religiosos que se podem verificar não só nas grandes correntes hindu e chinesa, mas até naqueles povos negros que, até há pouco, se considerou selvagens ou não evoluídos. Diligenciou, sobretudo, analisar aquelas «constantes», como sejam a pátria, a família, a religião ou a cordialidade, que as possam identificar. Quase sempre esses povos tinham sido colocados na obscura alternativa de lutarem para preservar essas fontes culturais, ou de se resignarem, a aceitar os valores estrangeiros. Será o mais nobre documento da história nacional terem os portugueses procurado sempre, desde o seu primeiro contacto e consoante as leis de cada século, respeitar essas raízes.
São bem conhecidas aquelas três frases de culturação: aceitação, adaptação, criação, que segundo a nomenclatura dos sociologistas norte-americanos e brasileiros, se aplicam à história das relações dos povos de cor escura com os povos de cor branca. E assim pode ter sucedido. Mas a revolução que está a apurar-se − e cujas raízes podem ver, os que saibam olhar, nos primeiros despachos dos nossos reis −, a evolução que está a correr, significa o senso geral de que o futuro e o progresso dos homens de cor serão melhor servidos se em vez de lhes impormos os figurinos culturais dos povos brancos, dermos a uns, como o hindu e o chinês, os meios de reconstruirem em condições novos valores comparáveis àqueles que foram os seus padrões de outrora, e a outros − como os da Africa negra − a possibilidade de criarem ou desenvolverem as suas raízes culturais. Simplesmente uma certa política internacional, uma certa demagogia, a confusão que certas «élites» fazem entre raças superiores e inferiores ou entre colonialismo de interesses e colonialismo de ideias, tem prejudicado − com fogo e com ódios − essa evolução natural. A nossa posição tem que ser firme, mas cautelosa, sem permitir que falsos sentimentalismos permitam que povos de cor estraguem, por imaturidade ou deficiência política, aquilo que nós próprios neles queremos proteger. Se os ajudarmos o seu futuro sempre se dirigirá para nós. E é dentro de um assim amplo espírito de compreensão e de respeito que me proponho fazer uma meditação pública sobre o homem cabo-verdiano.
Haverá manifestações que permitam admitir a sua existência? Mais até: a existência de uma cultura, digamos mesmo, de uma civilização cabo-verdiana? Discuti isto com os meus amigos de S. Vicente e nem sempre estivemos de acordo. A alguns meses de distância, sinto um inefável gozo espiritual em recordar que não poucas vezes eles se mostraram mais arreigados do que eu próprio às nossas raízes ocidentais. E Deus sabe como eu sou europeu!
Entendo por civilização o conjunto das manifestações de ordem cultural e espiritual de um povo e de uma época, qualquer que seja o seu grau de progresso ou a sua riqueza. É uma definição científica, que permite afastar o critério restrito de civilização como o significado de um progresso técnico; bem como a ideia de que tal estado seja inseparável de tal progresso. Até porque, como bem demonstrou Henry George no seu estudo sobre «Progresso e Pobreza» pode haver povos cultos genesicamente destituídos do sentido de progresso. Como é o caso dos nossos vizinhos de Goa.
Assim, eu admito a existência de uma civilização cabo-verdiana − com o seu comércio, a sua poesia, o seu bailado, o seu idioma e até, coisa que escapou a Gilberto Freire, as suas artes regionais. Fica apenas em discussão o seu grau, que forças têm impedido o seu desenvolvimento e que culpa têm nessa «indolência». ou nessa suspensão o meio geográfico e o homem.
ALMERINDO LESSA
   - Diário Popular -

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