À História o que é da História...

domingo, 21 de junho de 2020


Tenho lido ultimamente alguns artigos de opinião sobre o tema agora “em moda”, trazido pelos denominados activistas sociais que é o da remoção de estátuas de chamados esclavagistas, racistas, colonialistas e outros epítetos que, com ou sem razão, diariamente nos transmitem pela comunicação social.
Ora bem, antes de iniciar ao que aqui me traz, gostaria de fazer uma questão prévia.
Como qualquer pessoa minimamente escolarizada e humanamente formada, sei e comungo  da opinião de que há muito que a escravatura é algo “consensualmente repugnante” citando o Historiador português Rui Tavares num dos seus artigos. 
Nesse mesmo artigo, o autor, tornando mais abrangente  a questão do terrível flagelo humano do tráfico de escravos e desfazendo alguns mitos no tratamento do assunto, referiu-se à rainha Jinga de Angola e ao célebre Zumbi dos Palmares no Brasil, como possuidores em larga escala, de seres humanos escravizados. No entanto, eles são apresentados historicamente, como heróis anti-escravistas, enquanto, pelos vistos, eram apenas competidores, rivais, dos Holandeses e Portugueses no mesmo negócio. Afinal o “anti-escravismo” da rainha Jinga de Angola e do Zumbi dos Palmares do Brasil, nada tinha a ver com a defesa dos escravizados, sendo tão somente uma guerra de mercadores em que aqueles consideravam uma “concorrência desleal” dos europeus  num terreno em que eles julgavam exclusivamente seus: o mercado de escravos africanos.
Ainda na questão prévia, gostaria de assinalar um outro episódio sobre escravos, este muito mais recente, séc. XXI, passado no Níger, escutei-o recentemente no programa, «Eixo do Mal» semanalmente transmitido num dos canais da televisão portuguesa.
Tratou-se de um testemunho dado por um dos jornalistas do painel desse programa, sobre a sua experiência no Níger, um dos muitos países problemáticos da África actual. Contou ele que fez parte da delegação europeia àquele país africano que vive mergulhado em problemas vários, entre os quais, conflitos com o povo nómada tuareg, entre outros.
Ora bem, o então membro/observador da delegação europeia, explicou a propósito do escravismo, de que tanto se fala agora, que ele conheceu presencialmente, no Níger do século XXI, povoados muitos, cujas populações estão completamente à mercê, escravizadas, subjugadas por outras aldeias que as vão “arrebanhar à força, adolescentes, jovens, homens e mulheres” e levam-nos para campos e aldeias do país, sujeitando-as a trabalho escravo. E são milhões de seres humanos assim tratados.
Igualmente, o Jornalista narrou nesse mesmo programa que se tornou amigo no Níger de um escravo tuareg, de nome Ibrahim que um dia decidiu por iniciativa própria deixar de ser escravo. Estava farto e quis ganhar a dignidade humana a que tinha direito. Conseguiu um lugar na missão da Comissão Europeia e estabeleceu uma relação especial com o jornalista que desconfiou sempre das eventuais repercussões da sua ousadia.
Acabado o trabalho da missão europeia, e regressado a Portugal, ele soube que Ibrahim havia sido detido pelas autoridades nigerinas com o fim de evitar que o “mau exemplo” se propagasse.
Então, o nosso Jornalista temendo o pior, colocou, já em desespero de causa, a fotografia de Ibrahim nas redes sociais, criando um quase movimento, na esperança de que o seu gesto tivesse algum efeito de denúncia e o salvassem.  Soube mais tarde, com muita tristeza e consternação que o amigo tuareg havia sido morto.
Dito isto, e feito o desabafo, descrito no ponto prévio, vamos ao que hoje aqui me trouxe.
Tal como havia dito no início, tenho lido ultimamente alguns artigos de opinião e muita informação em jornais portugueses sobre esta matéria.
Mas para melhor enquadrar o assunto terei de voltar um pouco atrás no tempo. Em 2017, num dos números do Jornal Público do mês de Outubro daquele ano, apareceu uma notícia  e lembro-me que a li meia estupefacta. É que dizia que o Presidente do “SOS Racismo de Portugal” havia feito declarações ao jornal  sugerindo o apeamento da estátua de Padre António Vieira, por ser “esclavagista ou, tal representar.”
Dialoguei logo com os meus botões, “... De onde este foi buscar tal ideia? De certeza que nunca leu a vida e a obra deste padre jesuíta e muito menos terá lido e conhecido o conteúdo das Cartas e dos Sermões de Pe. A. Vieira. Este tipo de pedido só pode ter vindo de alguém completamente ignorante sobre quem foi este religioso e os combates que travou com a sua pena e a sua voz, em Cartas e em Sermões...”
Assim pensei eu, quando li a notícia sobre a pretensão exarada no Jornal e proferida pelo Presidente da Associação SOS Racismo de Portugal.
É que Vieira foi um defensor dos índios e dos escravos negros contra a  brutalidade e a ganância dos senhores do Brasil, no século XVII.
Logo, só por isso, o que não seria pouco, merecedor de toda a nossa admiração e respeito. Não foi por acaso que os índios Ameríndios chamavam-no: “Padre Grande” na língua deles. Língua que ele aprendeu e que falava fluentemente. 
Volto a repetir, pela defesa da vida dos Índios, valeria toda a nossa admiração. Podia até não ter sido tão acutilante na defesa da vida dos escravos negros porque a escravatura era característica da sociedade brasileira da época e corrente em  outras sociedades, americana, europeia, africana e asiática. 
Padre A. Vieira foi missionário por muitos anos no Brasil, com permanência mais prolongada no Maranhão e na Baía. 
Um dos seus mais célebres Sermões, e «Sermão de Santo António aos Peixes» o santo  protagonista do sermão, insurge-se contra a violência e a brutalidade dos grandes donos de terras, (peixe graúdo, em que se destaca o tubarão) contra (os  peixes pequenos) os seus fracos e maltratados escravos. Numa belíssima alegoria fabulária, em que o Santo critica o comportamento dos Homens, representados metaforicamente em diversas espécies de peixes.
 António Vieira era mestiço, pelo lado do pai. Este era filho de uma negra, e de um alentejano. Logo, Vieira é neto de uma negra. Aliás, basta observar os retratos de Pe. A. Vieira para se lhe notar os seus traços de mestiço. O que ao caso não acrescenta rigorosamente nada. Ele podia ser caucasiano, negro, ou asiático que o que importaria para aqui era o seu comportamento face aos maus tratos infligidos a seres humanos em posição de mais fracos.
Além do mais, para nós, acresce a admiração por  António Vieira pois ele foi um profundo e fino cultor da Língua portuguesa. Em plena época  em que imperava o estilo barroco, séc. XVII, Vieira distinguiu-se nos seus escritos, pelo  uso de uma oratória individualmente trabalhada e que o singularizou de entre os seus pares escritores da época e o alcandorou como o mais acabado exemplo de um estilo rico que elevou a Língua portuguesa, a patamares até aí desconhecidos, no tocante à estilística da Língua.
Assim o estudámos no Liceu e mais tarde o aprofundámos na Universidade.
Interessante é que para nós cabo-verdianos que também estudámos a história da Cidade Velha, a primeira capital deste Arquipélago, sempre nutrimos por este simpático sacerdote, um carinho especial, pois que foi dele o primeiro grande elogio ao cabo-verdiano, quando aqui passou uma temporada, incluído o Natal de 1653, na Cidade Velha, esperando pelo regresso ao Brasil.
É que foi da ilha de Santiago,que Vieira enviou uma carta ao rei D. João IV de Portugal, em que dizia entre outras descrições elogiosas que fez dos religiosos cabo-verdianos, o seguinte: “...Vi clérigos, negros como azeviche; tão doutos, tão zelosos,(...) capazes de fazer inveja aos melhores do Reino.”
Este elogio de Pe. A. Vieira foi repetido à exaustão, ao longo do tempo aqui nas ilhas e por muitas gerações. Citado diversas vezes em discursos públicos por políticos e outros, sempre de forma positiva. Antes e depois da independência de Cabo Verde.
Outro reparo elogioso que Pe. António Vieira nos fez nessa altura e na mesma missiva dirigida ao rei foi que o cabo-verdiano tinha “particular talento para a música,” isto é, possuía dotes para a música.
Dito isto, questiono quem sabe se não terá sido o Padre António Vieira o primeiro – pelo menos dos primeiros – a chamar atenção e a registar de forma escrita (1653) esta particularidade/vocacional artística do ilhéu cabo-verdiano para a música?
Daí, não admirar o quão chocada fiquei com o que se está passar com essa gente dita activista, contra este homem religioso que desafiou o seu tempo na defesa dos mais fracos e oprimidos com as armas que possuía e que por causa disso –  como a sua voz e a sua pena incomodavam os donos de escravos negros e que queriam fazer o mesmo aos índios – o padre foi denunciado à Inquisição, pelos senhores do Brasil, como praticante  herético e foi mandado de volta  para o reino, Portugal, como prisioneiro da Inquisição, para responder perante o Tribunal da Santa Inquisição. Ainda esteve nos cárceres dessa temível organização católica de má memória – a Inquisição. Sofreu injustamente, segundo os seus biógrafos.
 Aqueles que o defenderam, o próprio  rei D. João IV, respeitavam-no pelo seu talento, saber e práticas humanistas. Daí, o terem-no considerado inocente das acusações que sobre ele penderam, que mais não eram do que vinganças ardilosas pelos maiorais do Brasil. As cartas frequentes ao rei e aos que tinham poder em Portugal, queixando-se dos desmandos dos grandes da então Colónia portuguesa, eram provas da sua constante preocupação com a vida dos oprimidos.
A história regista que o julgamento de Pe. António Vieira foi tortuoso e de provas muito dífíceis para a sentença.
Libertado, ei-lo em Roma – diz-se que a mando do rei para que Vieira, assim escapasse à ira dos Inquisidores fanáticos – como parte da Legação portuguesa da Santa Sé.
Aí permaneceu por algum tempo e ganhou a confiança e a admiração do Papa dada a sua sapiência e a excelência de algumas homilias proferidas durante a estada na Santa Sé.
E agora, em 2020 gente ignorante, vandalizou a estátua do Padre António Vieira, erigida pela Câmara Municipal de Lisboa, fazendo pichagens com acusações injustas.
É caso para recomendar a esses ditos fanáticos de derrube de estátuas, que leiam  que hoje em dia com muita facilidade, através da “net” se consultam os documentos sobre Pe. A. Vieira, indo até à Torre do Tombo em Lisboa. Que leiam alguns Sermões. Eu recomendaria como suficiente para o início, dois, a saber: o «Sermão da Sexagésima» e o já aqui referido «Sermão de Santo António aos Peixes». De caminho, leiam também algumas das muitas Cartas dirigidas ao rei D. João IV. Tenho a certeza que no fim, já formulariam outro e diferente juízo deste Homem que foi grande – humanamente e culturalmente –   não deixando de ser um homem do seu tempo falou, escreveu e defendeu o seu semelhante, sem olhar à raça, à cor ou à camada social de pertença.
De uma coisa lhes posso garantir, sairiam das leituras feitas muito mais cultos e apetrechados para analisar e julgar Vieira no seu tempo, entre os seus contemporâneos e, se calhar o considerar muito progressista.
É que a cultura, a ilustração, ajudam e muito!
 Apraz-me para o caso, citar e partilhar o que escreveu Francisco Assis num dos seus artigos, publicados no jornal «Público»: “Quando um grupo de fanáticos precariamente alfabetizados invade e confisca o campo de debate público, passa a haver sérios motivos de preocupação.”
Já agora, acrescentaria que não é por acaso que existe nos Cursos de História em Portugal, uma cadeira denominada “História das Mentalidades”. Exactamente para prevenir e evitar que o futuro Historiador fundamente e julgue o passado com os instrumentos de análise de hoje.
 Como remate deste escrito, menciono o Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa que classificou o acto de vandalismo feito à estátua de Padre António Vieira, de forma inequívoca, sem margens para dúvidas: “...trata-se de uma grande imbecilidade”.
 Ousada e estribada numa ignorância atrevida, concluo eu.






1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Este Texto devia ser lido pela chusma de ignorantes e imbecis que hoje invade as redes sociais para poluir mentes e instigar ao ódio e ao primarismo dos comportamentos.
Obrigado, Ondina, e as minhas mais vibrantes felicitações.
Pena é eu não poder vir com a frequência desejada a este e outros blogues que dignificam verdadeiramente a sua função de veículo de informação, formação e cultura.

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