JÁ ESTAMOS A PERDER O PORTUGUÊS, ANTES MESMO DE GANHARMOS A LÍNGUA CABOVERDIANA*

quarta-feira, 3 de junho de 2020

O texto que se segue é um comentário do Leitor José E. Cunha, reflexões feitas a propósito do texto: “Crioulo versus português”, aqui publicado em Fevereiro de 2010. Dado que não perdeu actualidade, uma vez que se trata de assunto cada vez mais candente na sociedade actual cabo-verdiana, assim publicado, ganhará maior visibilidade.
 Felicito-a por este espaço.
Começo por discordar do papel que sugere para o Crioulo/Lingua Caboverdiana, mesmo se entendo os receios que estão na base dos argumentos. Não devemos temer a paridade entre as duas línguas (nem que seja para satisfazer os mais ortodoxos, que pretendem fazer desta questão uma espécie de hooliganismo linguístico, transformados em talibans do crioulo), desde que feita no tempo certo, da forma correcta, com a tranquilidade necessária, mas sobretudo com base em experiencias no terreno (e não apenas por smell teórico), estudos mais aprofundados, e instrumentos técnicos e teóricos absolutamente necessários e indispensáveis. Precipitar esta matéria da forma como se pretende, é um erro que só gerações futuras pagarão a factura, mesmo que sinais de emergência apontem para a catástrofe linguística que se perfila já no horizonte. O seu post aponta nesse sentido, com a delicadeza e a elegância que lhe são peculiares, por isso que trago aqui este modestíssimo contributo. Há alguns meses realizou-se na Associação Caboverdeana de Lisboa (ACV) um debate sobre a questão da oficialização da Língua Caboverdiana, e aí foram ditas algumas coisas importantes para este debate, algumas delas já repetidas em outros fóruns, mas que não vejo refutadas, nem analisadas com a profundidade que se impõe, tendo em conta a pertinência do assunto em causa. Para algumas coisas mais incómodas parece que Lisboa ainda fica longe demais. O que significa também, que apesar de tanta conversa, discussão, debates (uns mais democráticos e abertos do que outros) não estamos a aprender nada, como se cada fórum não passasse de uma espécie de válvula de escape das emoções em presença, como se as posições estivessem tão extremadas que nenhuma aprendizagem seja já possível, como se ninguém tivesse nada a prender com ninguém, numa total falta de generosidade, numa irredutibilidade irracional de ‘tudo ou nada’, de ‘ou vai ou racha’, de ‘é assim ou não é nada’, como se os caboverdianos tivessem finalmente descoberto, e aberto, a sua Caixa de Pandora. Eis em 3 pontos do que então se disse na ACV:
1- O reconhecimento unânime de que o Estado de Cabo Verde, ao contrário do que está plasmado na Constituição sobre a questão da língua, nada fez até agora do que a si próprio impôs como passos necessários para a oficialização. Atentemos: não temos um Dicionário Geral da Língua Caboverdiana; não temos um Dicionário Etimológico da Língua Caboverdiana; não temos um Dicionário de Sinónimos da Língua Caboverdiana; não temos uma Enciclopédia (de natureza Etno-Antropológica) da Cultura Caboverdiana; não temos um Instituto da Língua Caboverdiana; não temos técnicos, linguistas, sociolinguistas, historiadores da língua (nacionais e/ou estrangeiros, talvez porque não interessa), a produzirem trabalhos científicos e técnicos, de carácter prático e pedagógico, sobre os diferentes instrumentos possíveis ao nosso alcance, suas vantagens e desvantagens, que não se resumam ao ALUPEC, para que possa haver uma VERDADEIRA ESCOLHA, e não ficarmos por esta envergonhada imposição de um único modelo. Esta omissão do Estado Caboverdiano, para além de grave, criou uma falsa ideia de consentimento tácito, por alguns entendida por explícita, numa determinada direcção, com os equívocos que se conhecem, e com os resultados que saltam à vista.
2- Nesse encontro foi afirmado por duas professoras universitárias presentes, o seguinte: uma jovem caboverdiana que esteve em Cabo Verde a leccionar Sociologia até 2009 numa das nossas universidades, afirmou que a principal dificuldade que sentiu junto dos alunos (a grande maioria) foi ao nível da expressão escrita. Não entendia o que lia nos trabalhos e nos testes, tantos eram os erros, de vocabulário, de expressão escrita, e de argumentação; no mesmo sentido argumentou a académica portuguesa, creio que da Universidade Clássica de Lisboa, que afirmou nunca ter encontrado alunos tão mal preparados em Português como ultimamente, a ponto de, pela primeira vez, ter chumbado alunos pelas mesmas razões apresentadas pela colega caboverdiana. Fiquei envergonhado? Não! Nem surpreendido. Ouvira já a amigos, um deles um conhecido intelectual caboverdiano, que assegurava, sem assombro, que ajudava regularmente a corrigir teses, monografias, e trabalhos de fim de curso a alunos universitários. Este estado de coisas não seria preocupante se não estivéssemos a falar de alunos de “nível” académico superior. Se estes não são sinais de alarme, o que é que são? Ou seja, a análise à qualidade do nosso ensino, em particular ao ensino da Língua Portuguesa, como diz e bem V. Exa. também é a nossa língua, é uma tarefa urgente. Se alguém pensar que este tema é lateral à questão da oficialização da Língua Caboverdiana, não é. A não ser que queiramos uma oficialização a brincar, sem tirar daí todas as consequências práticas, ou seja, avançamos para a oficialização e depois logo se verá o que acontece, logo se verá o que fazer com ela. Desenganem-se aqueles que pensam que sou contra a oficialização do caboverdiano (tema risível, já que não conheço nada mais democrático, generalizado, e ‘oficializado’ que a língua caboverdiana a todos os níveis da nossa sociedade), nem contra o ALUPEC, de que sou utilizador crítico. Sou sim contra todas as formas de dogmatismo, contra atitudes precipitadas, contra medidas mal estudadas e mal analisadas, contra o aventureirismo em matéria tão fundamental, contra o deficit de informação sobre alternativas credíveis, e contra a irresponsabilidade de gente que não estará cá no futuro para assumir as responsabilidades dos seus actos presentes.
3- O que então afirmei nesse dia na ACV em tom de síntese, e aqui reafirmo, é que há sinais preocupantes de que JÁ ESTAMOS A PERDER O PORTUGUÊS, ANTES MESMO DE GANHARMOS A LÍNGUA CABOVERDIANA. Os argumentos apresentados naquela reunião, outros aqui por si, outros ainda de forma avulsa em diversos jornais, são por demais evidentes, e concorrem para o que chamei, e chamo, de catástrofe linguística em curso, a curto prazo. A matéria desta discussão está ainda por fazer, e este é um assunto que exige, com urgência, estudos concretos no terreno (a análise às competências de alunos e professores, no domínio da Língua Portuguesa ao longo da cadeia escolar), que não fiquem pelas enganosas estatísticas quantitativas que conhecemos. O seu texto-testemunho, como membro da comunidade educativa, tem o fundamento técnico e a autoridade moral de quem sabe, e conhece, do que fala. Esta é uma realidade que a alguns preocupa sobremaneira, e que é perigoso ignorar, pelos efeitos devastadores de longo prazo, e pelo desastre intelectual e educacional que arrasta gerações. Gostaria de estar tranquilo. Mas não estou. Há demasiada cegueira e intolerância intelectual nesta questão da fixação de um alfabeto para a Língua Caboverdiana, transformada por estes dias numa ridícula feira de vaidades. Por isso reclamo que é urgente uma “autoridade” para a questão da Língua Caboverdiana, instituição que nos forneça, com distanciamento e objectividade, os instrumentos que necessitamos para o desejado salto qualitativo, e a aspirada evolução nesta matéria. um alfabeto aberto, que sirva a língua, que sirva os caboverdianos, que sirva Cabo Verde, que traduza com verdade e sirva com eficácia a cultura caboverdiana.
Melhores cumprimentos.
José E. Cunha

*Comentário ao textoCrioulo versus Português? Publicado no blogue “coral-vermelho” em 4 de Fevereiro 2010




2 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Compreendo o ponto de vista do autor deste texto, mas confesso que o panorama linguístico actual nas nossas ilhas não me parece actualmente tão desastroso como é pintado. Costumo ver o programa Nha Terra nha Cretchéu e apercebo-me de que nos últimos anos se vem registando certa melhoria no domínio da língua portuguesa entre a nossa gente.
O que é que vejo? Vejo pessoas a comunicar informalmente em português com mais naturalidade e frequência do que acontecia antes. São funcionários públicos, são privados de várias actividades e ofícios, são estudantes de diferentes níveis escolares (da instrução primária à universitária), são cidadãos comuns. A diferença é, naturalmente, entre as classes com pouca ou nenhuma escolarização (as vendedeiras do mercado ou de rua, os trabalhadores rurais, etc.), em que o recurso é inapelavelmente o crioulo.
Os artigos de opinião que costumo ler também não assinalam erros flagrantes ou clamorosos ao nível da ortografia, da concordância gramatical ou da coerência textual. Claro que neste campo refiro-me sobretudo aos mais jovens, recém-licenciados ou com formação académica avulsa, e não a gerações que, pela sua idade ou formação, nunca se despegaram do trato conveniente à língua portuguesa.
O que eu penso é que não há razão para tamanha preocupação com a oficialização do crioulo ou tentativa de o elevar a um estatuto que nunca teve e, em minha opinião, nunca virá a ter, por mais artifícios ou alavancas que se criem nesse sentido. Aliás, conforme já verti em artigo de opinião, essa relação de proximidade ou similitude concorrencial entre as duas línguas só irá contribuir para lançar mais confusão e até para bloquear as mentes jovens dos nossos estudantes.
O crioulo deve continuar a beneficiar da liberdade que sempre teve para se criar e se diversificar. O crioulo não nasceu por quaisquer virtudes ou vocações extraordinárias do povo das ilhas, mas sim porque o povoamento por portugueses foi escassíssimo e limitado, ainda por cima fragmentado pela condição arquipelágica, e ocasionando, por consequência, o isolacionismo que favoreceu a diferenciação dos seus cambiantes.
Creio que o que alguns pretenderão com o crioulo terá o efeito de uma camisa de forças que, longe de o disciplinar, poderá até conduzir à sua inanição e extinção progressiva. O crioulo só tem sobrevivido porque sempre o deixaram sossegadinho no seu lugar. Faz lembrar a telenovela Gabriela, Cravo e Canela, quando o Nacib deu uns sapatos à moça para, supostamente, beneficiar a sua aparência social. Ora, a rebelde Gabriela, mal se ausentava o seu Nacib, livrava-se dos sapatos para poder ser igual a si mesma, irreverente, natural, selvagem. Enfim, bela.

(Continua o meu comentário)

Adriano Miranda Lima disse...

(Continuação do meu comentário)
Os nossos conterrâneos das classes trabalhadoras emigrantes ou radicadas em Portugal usam o português sem qualquer dificuldade na sua comunicação informal. É um recurso a que se viram forçados para poderem sobreviver no trabalho e em sociedade, mesmo que com pouca escolaridade. Às vezes, até penso que se as fronteiras entre as nossas ilhas e Portugal fossem eliminadas, muita da nossa gente viria para cá à procura de trabalho e isso seria a prazo a sentença de morte para o nosso crioulo.
Por outro lado, a globalização e a expansão galopante da comunicação e da mobilidade social no planeta, irão sentenciar a extinção progressiva das línguas minoritárias e dos dialectos em todo o mundo. É a UNESCO que o diz.
Chez-nous, acredito que os canais televisivos português e brasileiro, além do nosso, claro, estão a exercer, de modo sub-reptício, certo confinamento ao crioulo. Estas coisas levam o seu tempo, mas acredito que os efeitos serão inevitáveis, por mais que os corações românticos queiram resistir ao curso natural dos fenómenos sociológicos.
De resto, não entendo por que os escritores e académicos cabo-verdianos não publiquem as suas obras em crioulo, poesia, romance, ensaios ou teses académicas. Claro que entendo. Eles sabem que ninguém as leria.
Aqui é que radica a tremenda hipocrisia, que faz que uns tantos pseudo-nacionalistas remanescentes ou artistas do mais refinado fingimento continuem a atirar poeira aos olhos do pagode. Sabemos que muitos deles obtiveram ou tentaram obter a nacionalidade portuguesa a seguir à independência. Isto é que me revolta.
E, no entanto, não obstante o meu pensamento racional, sinto um não sei quê de nostalgia ante a perspectiva de o nosso crioulo um dia desaparecer. Com ele iria irremediavelmente a memória da minha avó materna, a mais querida e saudosa, que só exprimia no seu crioulo, não a da avó paterna, que amiúde insistia para eu não falar o crioulo. Como se isso fosse possível quando me reunia com os amigos vizinhos para dar pontapés a uma bola de trapos ou comentar os filmes que passavam no Eden Park.

Adriano

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