A Língua portuguesa mais uma vez revista por um dos seus mais cuidadosos estudioso, Nuno Pacheco. Um proveitoso convite à leitura dos professores da Língua comum.
Ler “o que lá está” é também seguir o que lá
não está, deturpando o som das palavras
Nuno Pacheco*
Ainda
em época de exames, a língua portuguesa vem de novo à baila. Tanto mais que o
exame do 12.º ano gerou contundentes críticas, como se vê pelos artigos de
António Carlos Cortez ou de Elisa Costa Pinto, ambos no PÚBLICO. Mas não é de
exames que trata esta crónica, e sim do tema levantado por uma pequena frase do
leitor Alberto E. Diniz, da Figueira da Foz, que em carta ao director do jornal
(publicada no dia 7) dizia serem arrepiantes, em Portugal, “as alterações na
pronúncia, devido à destruição na modulação das vogais, que as nossas crianças
expressam, argumentando elas que apenas estão a ler o que lá está...” Esta
ideia, a de “ler o que lá está”, já motivou uma crónica anterior, velhinha de
cinco anos (“Maravilhas da fonética”, 19/4/15), mas a verdade é que o tema não
só se mantém actual como a situação se agravou.
Porquê?
Pela escrita, precisamente. Há cinco anos citaram-se aqui as Charlas
Linguísticas de Raul Machado, filólogo e primeiro presidente da Sociedade de
Língua Portuguesa, que iniciou em 1958 na RTP um programa dedicado à língua,
compilado mais tarde em livro. Ora logo numa das primeiras emissões (a de
21/1/58) tratou precisamente do tema “Leia o que lá está!” Nesse programa,
criticava professores ou pais que, em tom autoritário, diziam a crianças com dificuldade
de ler uma frase num livro:
“Menino,
leia o que lá está!” Como se dissessem: “O menino é parvo! O menino não sabe
ler!” E dava como exemplo esta frase: “Os homens sentem e pensam.” Uma frase
simples, que toda a gente lerá sem dificuldade. Toda a gente? Sim, toda a gente
que já domina, mesmo que de forma inconsciente, as regras do sistema vocálico
do português europeu. Se uma criança lesse mesmo “o que lá está”, com base no
que aprendera no alfabeto, leria (dizia então o filólogo): Óss hóménnss
sénntémm é pénnsamm. Ou, “em grafia sónica, a seguinte algaraviada: Óç hóménç
çéntéme é pénçame”. Em vez disso, qualquer pessoa lerá “Uz ómãix sêntãi i
pênsão”. No entanto, escrevemos “Os homens sentem e pensam”.
Raul
Machado prosseguia, assim, o seu raciocínio: “O fenómeno linguístico da
pronúncia do nosso idioma encerra dificuldades e complicações de tal monta, que
só com intenso treino e longa aprendizagem se conseguem vencer e dominar. Por
isso, o imperativo ‘Leia o que lá está!’ contém, sem dúvida, uma imposição
muito difícil de cumprir…, muito difícil de cumprir, sobretudo nos bancos da
escola, da escola primária [agora conhecida por ensino básico].” Mas, concluía,
era nessas dificuldades que assentava a “realidade magnífica da língua
nacional”.
Porém,
voltando à carta do citado leitor, as crianças de hoje argumentarão “que apenas
estão a ler o que lá está”. Contraditório? De modo algum, porque não se referem
ao “que lá está” em sentido literal (como, de forma irónica, se lhe referia
Raul Machado) mas sim ao “que lá está” proveniente da escrita e dos sinais que
dela emana para a sua correcta interpretação fonética. E é aqui que surgem os
equívocos actuais, derivados em grande parte da aplicação do chamado Acordo
Ortográfico de 1990 (AO90).
Ressalve-se
que o caminho para a ambiguidade foi já antes aberto pelas reformas ortográficas
anteriores (com a capa de “acordo” ou sem ela). Por exemplo, este conjunto de
palavras homógrafas, mas não homófonas, tinha a distinção sónica assinalada por
acento gráfico na reforma de 1911, sendo depois abolida na de 1945: acôrdo e
acordo (de acordar); fôrma e forma (de formar); sêca e seca (de secar); trôco e
troco (de trocar); sôbre e sobre (de sobrar); côrte e corte (de cortar);
refôrço e reforço (de reforçar); e até entre formas verbais distintas, mas
homógrafas: pregar (de bater um prego) e prègar (dar sermões). Estas distinções
gráficas caíram com a reforma de 1945, deixando a desambiguação para o
contexto. Em contexto, percebia-se que eram diferentes. E fora de contexto?
Ora, que adivinhássemos!
Já com
o AO90 pretende-se que sejam lidas de forma diferente palavras de estrutura
idêntica, mas sem indicar como. E se as distinções gráficas abolidas em 1945
geralmente ocorriam entre substantivos (corte, ô) e flexões verbais (corte, ó),
aqui ocorrem amiúde entre palavras do mesmo género. Substantivos como fator (à)
e favor (â); senhor (e mudo) e setor (è); doação (â) e coação (à), de coagir,
existindo também coação (â), de coar; diretriz (è) e meretriz (e mudo);
adjectivos como correta (è) e forreta (ê); ou até flexões verbais, como adotar
(ò) e adoçar (u). Além disso, tornaram-se ambiguamente homógrafas palavras
antes só homófonas, dando-lhes a mesma forma: ato (de acto) e ato (de atar) ou
ótico (de óptico, da vista) e ótico (do ouvido).
O mais
estranho foi o que sucedeu com palavras como infecção, direcção ou concepção,
que, com a sílaba tónica claramente marcada pelo ditongo nasal ão, só se liam
“infèção”, “dirèção” ou “concèção” devido à presença da consoante dita muda;
sem ela, e escrevendo-se infeção, direção ou conceção, ler-se-á tendencialmente
“inf’ção”, “conc’ção” e “dir’ção”. Por isso, ao lerem “o que lá está”, os
alunos vão seguir o que lá não está — e assim deturpar o som das palavras. Esta
“benesse”, só podemos agradecê-la aos criadores da aberração conhecida por
AO90.
*Jornalista. Público
de 16.07.2020 (nuno.pacheco@publico.pt)
1 comentários:
Enfim, o AO 90 vai continuar a dar pano para muita manga. Em vez de contribuir para limar arestas das angulosidades criadas pelos acordos anteriores, veio baralhar-nos ainda mais. Em minha opinião, nunca se devia ter alterado o princípio de "ler o que está lá". Facilitava a vida a todos, os que ensinam a língua e os que a aprendem.
A confusão que o Malaca Casteleiro nos deixou é tão grande que algumas vezes penso que, lá onde ele estiver, deve andar às turras com o Graça Moura, que foi um dos mais indefectíveis adversários do AO 90. Em matéria ideológica, eu estava nos antípodas do Graça Moura, mas não no que a este AO diz respeito.
Considero que a língua portuguesa já tinha pequenas complicações que chegavam para precisar de mais areia na engrenagem. Complicação é, por exemplo, estar consagrado nos dicionários a existência dos dois géneros para a mesma palavra. E elas são ainda em número suficiente para confundir as pessoas. Uma delas usei-a atrás: antípodas.
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