O texto que se
segue é uma interessante e abrangente análise sobre o compêndio de História e
Geografia de Cabo Verde destinado ao 6º Ano de escolaridade.
Trata-se de uma edição do Ministério da Educação, 2018. Autores: Carlos Emanuel Sousa Santos, Daniel
de Brito, Francisca Pires e Marina Soares.
José Tomaz Wahnon Carvalho Veiga, autor dos comentários, fez um aturado e crítico levantamento de erros
grosseiros, de omissões e de louvações inadequadas, encontradas no dito compêndio
- note-se: trata-se de um manual didáctico de História e de Geografia para crianças de 11/12
anos.
COMENTÁRIOS SOBRE O LIVRO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA DE CABO
VERDE, 6º ANO
Por José Tomaz Veiga
É impressionante a forma como o MPD
se rendeu ideologicamente ao PAIGC. Primeiro, na década de noventa, apesar de
estar no poder, permitiu que a ideologia paigcvista ficasse intacta, não lhe
deu luta, pelo contrário, permitiu que essa mesma ideologia permeasse todo o
ensino nos níveis básico e secundário. O exemplo mais paradigmático é a forma
como nos livros de ciências, sim ciências, se fazia a apologia do regime
ditatorial, sim ditatorial, que vingou em Cabo Verde nos 15 primeiros anos de
Independência. Encontrou-se uma expressão engraçada para caracterizar esses
anos de repressão e brutalidade “Construção do Estado”. Ao mesmo tempo, nesses
manuais, os anos 90 desapareceram, não existiram, eram um parêntesis na
maravilhosa história da ditadura paicevista, um mero acidente na marcha
gloriosa do paigc/cv, que retomou o curso normal despois de 2001.
Deixámos que isso acontecesse, não tentámos
minimamente desmontar as falácias e a mentira da “construção do Estado”.
Entretanto, o Paigv aproveitou a deixa e investiu nas escolas, pregando a sua
verdade, o angelismo dos combatentes que passaram todos a ser anjos imaculados,
grandes guerreiros, mesmo os que nunca viram uma pistola. Passaram todos a ser
grandes heróis e exemplos para os jovens. Todos passaram a ser grandes e
imaculados heróis.
O segundo acto está a acontecer
agora, sim agora. É só ver o culto dos heróis nacionais, os nossos dirigentes submissos
perante os principais responsáveis da ditadura, sim DITADURA do partido único, a
atribuição de nomes de avenidas e aeroportos ao primeiro presidente da ditadura
do partido único (desconfio que a Guiné Conacry não terá nenhuma rua com o nome
de Sekou Touré….), as consultas à Associação dos Combatentes da Liberdade da
Pátria, um reduto dos paigecistas mais ferrenhos, a ponto de transformar essa
associação paicevista em conselheira sobre assuntos regionais africanos…….entre
outras manifestações que me parecem de subserviência e de lavagem de imagem.
O nosso sistema de ensino está a
ser alvo directo da investida paicevista. E não é por acaso. Quanto mais cedo
se torce o pepino…. Pois, quanto mais cedo se inculcam na cabeça das crianças
em idade escolar os mitos paigcvistas, maior é a garantia da perenidade da sua
superioridade, sim superioridade e hegemonia ideológica neste país, agora e
para sempre…
Vejamos o livro do 6º ano de
História e Geografia de Cabo Verde. Começa na capa, onde aparece uma imagem de Amílcar
Cabral e as bandeiras antiga e actual de Cabo Verde. Onde é que isso já se viu?
Um Manual oficial em que se apresentam duas bandeiras? Chamo a isso SUBMISSÃO.
Amílcar Cabral na capa do manual de história e geografia de Cabo Verde?
Porquê? A história de Cabo Verde é
várias vezes centenária, não começou com o PAIGC nem com Amílcar Cabral. Ao
propor essa capa, estamos a aceitar essa tese absurda de que AC é o pai da
nacionalidade. Podem dizer, se quiserem, que AC é o pai da Independência, mas a
nossa nacionalidade cabo-verdiana foi construída ao longo de centenas de anos e
não esperou por AC e o Paigc para se constituir e manifestar.
A capa do manual dá o tom ao
conteúdo. A história de Cabo Verde começa …. Com a criação do PAIGC e a luta de
libertação nacional (ou de submissão nacional, talvez), na página 34. Nas
páginas anteriores, fala-se de literatura, música, cantigas, festas etc. De história
de Cabo Verde, NADA. Podem dizer que no manual do ano anterior esta parte da
nossa história foi tratada. Pode ser. Mas ao menos uma síntese, um
enquadramento. A descolonização é apresentada praticamente como o ponto de
partida da nossa história. Curiosamente o manual omite qualquer referência à
inexistência do Paigc como organização em Cabo Verde antes do 25 de Abril.
Algumas pessoas diziam-se do Paigc, mas sem qualquer implantação ou impacto em
Cabo Verde. A única referência feita é a de que a luta armada não teve lugar em
Cabo Verde devido ao aspecto geográfico de Cabo Verde (página 39). Na verdade,
o Paigv até pensou enviar uma equipa para lançar a luta de guerrilha em Cabo
verde, na esteira das teorias do Foco de Che Guevara, mas teve o bom senso de pôr
de lado essa iniciativa. A verdade é que o Paigc não tinha peso nenhum em Cabo
Verde aquando o 25 de Abril, mas isso não é dito, para poder manter a auréola
dos combatentes que libertaram a Guiné e Cabo Verde.
Na página 40 procura-se dar ainda
maior relevo à luta na Guiné dizendo, no capítulo Em Síntese que ..”o Paigc
desencadeou a luta armada de libertação, travada durante
duas décadas…. “Duas décadas, vinte anos! É só fazer as contas. Que nome se dá a isso?
Desinformação, falsidade, não vejo outro.
De seguida são dedicadas 13 páginas
ao PAIGC e à primeira República, seguidas de 5 páginas sobre a segunda
Repúblicas. O tratamento é totalmente desequilibrado, totalmente enfeudado. E a
forma como a segunda República é introduzida é um absurdo completo e sobretudo
uma falsidade impressionante. As teses revisionistas do Paicv são retomadas
ipsis verbis.
Pergunta-se, qual é a lógica disso?
Porque razão se acha necessário descrever com todo o detalhe os símbolos da
primeira república, mas não se acha minimamente necessário dizer aos jovens
deste país qual foi a verdadeira natureza deste regime! Nem uma palavra sobre a
ditadura, a repressão, os abusos, e a tirania do partido único. NADA! E no
entanto, o manual estende-se alegremente sobre os grandes heróis que nos deram
a liberdade (amordaçados, torturados, vigiados, impossibilitados de expressar
opiniões livremente…etc). Nem uma palavra sobre as execuções sumárias que o
grande Paigc fez na Guiné logo que tomou o poder, sob responsabilidade de
Aristides Pereira, Luis Cabral e seus companheiros de liberdade. Nem as
execuções sumárias de centenas de guineenses aquando do assassinato de AC.
Curiosamente, quando se fala do assassinato de AC (página 36) , nem uma palavra
sobre o facto dos conspiradores serem do …Paigc, a força, luz e guia do nosso
povo, etc.
De facto, este manual é um desastre
completo. Falsifica a história de Cabo Verde, como se a nossa história tivesse
começado em 1956 com a criação do Paigc (esta data de criação do Paigc é
contestada de forma fundamentada por Daniel Santos no seu livro, até aí os autores
estão cegos pela sua preferência ideológica).
É como se os 15 anos de ditadura e totalitarismo paigcvista não tivessem
existido em Cabo Verde. E estamos a falar de manuais produzidos pelo actual
Governo de Cabo Verde. Shame on us! Falsifica a nossa história recente por
omissão. Nem uma palavra sobre a criação do partido que derrubou, sim derrubou
o Paicv; atribui a abertura política à boa vontade do paicv, omitindo
completamente a força da movimentação popular que esteve realmente na origem
deste processo, entre outras falsificações, distorções e omissões.
Vejamos alguns exemplos das
distorções, falsificações e omissões que o Manual apresenta.
Na página 35, Fundação do Paigc. Há
dúvidas legítimas sobre a data referida.
Página 36 – Definição de luta
armada. Quantas lutas armadas foram feitas para outros fins que não a conquista
da independência?
Página 36 – Assassinato de AC.
Omissão dos autores do assassinato que eram membros do Paigc. Nem uma palavra
sobre a repressão e o fuzilamento de centenas de guineenses que eram do Paigc.
É claro que dizer isso iria esmorecer um pouco a coroa de glória do Paigc, por
isso, prefere-se mentir por omissão a dizer a verdade.
Página 37 – diz-se que a “independência de
Cabo Verde foi o resultado de um processo longo, marcado pela luta armada,
liderada por Amílcar Cabral e pela Revolução dos cravos…” . Para a mente de uma
criança de 11 anos, a ideia que fica é que houve luta armada em Cabo Verde, o
que é, evidentemente, falso. Aliás, o Paigc praticamente não existia em Cabo
Verde como organização minimamente estruturada, mas isso não se pode dizer
porque faz mossa ao prestígio dos combatentes.
Nas páginas 42 e 43 discorre-se
sobre a LOPE, passa-se sobre brasas sobre as razões que levaram à não aprovação
da Constituição em 3 meses, como previsto, aproveita-se para definir de forma
errada a República (se fosse a definição indicada na página 42, então Cabo
Verde não era uma República porque em 1975 não elegeu livremente e por voto
secreto nenhum chefe de Estado), corre ainda mais depressa sobre o famoso
artigo 4º da Constituição de 1980, e nada diz sobre a natureza do regime. Não
diz que foi uma ditadura do partido único e dos seus dirigentes, não diz que
não havia liberdade de imprensa, nem liberdade de criar partidos, nem liberdade
de exprimir opiniões livremente, não diz que existia uma polícia política que
vigiava os cidadãos, não diz que os tribunais eram dominados por juízes camaradas
e que os juízes eram membros do paigc/cv e não havia independência da justiça,
etc. A ideia que um jovem de 11 anos fica ao ler o manual é que estava tudo
muito bem, a primeira república era uma maravilha.
Na página seguinte fala-se da União
Guiné-Cabo Verde de uma forma totalmente acrítica. Nem uma única referência às
críticas a este conceito, nem uma palavra sobre as dúvidas dos próprios dirigentes
do Paigc (Abílio Duarte, Osvaldo Lopes da Silva, e muitos outros). A unidade Guiné
Cabo Verde nunca teve qualquer suporte histórico, sanguíneo, geográfico ou
demográfico. Foi um expediente político, genial, é certo, para associar Cabo
Verde à luta na Guiné e garantir a presença de um punhado de quadros cabo-verdianos
indispensáveis ao prosseguimento da luta armada. Se as razões apresentadas fossem de facto reais, como se explica que em
5 anos tudo tenha ido por água abaixo e com tanta facilidade? Nem uma
palavra sobre as enormes tensões entre guineenses e cabo-verdianos dentro do
Paigc, que culminaram com o assassinato de Cabral e que estão na origem do
golpe de Estado de Nino. A forma como se fala do golpe na mesma página é como
se o golpe tivesse surgido do nada. Nada se diz sobre as críticas dos guineenses
ao facto de a constituição da GB prever pena de morte mas a de CV não, nem à
ocupação dos principais lugares de chefia por cabo-verdianos, nem ao facto de
Aristides Pereira o chefe máximo do Paigc residir na Praia como Presidente de
Cabo Verde, mas supervisionar do alto a Guiné como chefe do Paigc, e do facto
de o presidente da Guiné ser um Cabo-verdiano (Luis Cabral). Nada, apenas que
houve golpe. A criança de 11 anos fica esclarecida.
Na página seguinte colocam-se as
fotos dos três principais responsáveis do Estado da primeira República com
grande destaque. Mas já quando se trata dos principais responsáveis iniciais da
segunda república, as fotos não têm a mesma projecção e o Presidente da Assembleia
Nacional… desaparece, não existe, não tem cara.
Toda uma página (46) é dedicada ao
hino antigo. Metade da página é dedicada à explicação da bandeira.
Em contraste, apenas dois
parágrafos são dedicados a explicar o significado da bandeira nacional actual
(a bandeira do Estado de Cabo Verde).
Página 47 e seguintes sobre a
segunda república. Ao ler esta parte não se encontra nenhuma referência ao MpD
como o movimento que conduziu o processo de contestação do qual resultaram as primeiras
eleições livres. Ninguém fica a conhecer os principais dirigentes do MpD, nem a
importância da movimentação popular que obrigou o Paicv a ceder. Fala-se em
atitude reformista do Paicv, mas isso é pura inverdade. Em Fevereiro de 1990 o
Paicv, fazendo a leitura do que estava para vir e da pressão interna já
existente na altura, declarou-se disponível para algumas reformas que NÃO
ENVOLVIAM A ACEITAÇÃO DE PARTIDOS POLÍTICOS, mas apenas associações cívicas ou
como se quisessem chamar, nem previa
eleições pluripartidárias nos cinco anos seguintes. Foi a pressão do MpD e
a movimentação popular que este liderou que obrigou o Paicv a aceitar a realização
de eleições na data em que ocorreram. O aluno de 11 anos ficará sem saber que
as coisas se passaram desta maneira, porque a cortina de fumo que se lança é
demasiado espessa.
O que se passa com este manual não
é mais do que a ponta do iceberg, como aliás recentemente denunciou Armindo
Ferreira.
E é o Governo do MpD que produz
esta magnífica peça de desinformação de crianças de 11 e 12 anos.
Estamos de parabéns.
0 comentários:
Enviar um comentário