"Quando e por quem terá sido descoberto o arquipélago de Cabo Verde?"
Assim interroga Félix Monteiro,(1907-2002) nesta notável
conferência, aqui transcrita e proferida a 1 de Maio de 1960, no salão nobre da Câmara Municipal
da Praia, inserida nas comemorações do Meio Milénio do achamento das ilhas de
Cabo Verde.
Leia caro leitor, e delicie-se com este verdadeiro labor de pesquisador probo e
de estudioso empenhado, que foi Félix Monteiro, na consulta de documentos, de crónicas e de registos
históricos da época (séc.XV) e respeitantes à descoberta destas ilhas atlânticas.
O Achamento de Cabo Verde
Por Félix Monteiro[i]
Quando e por quem terá sido descoberto o
arquipélago de Cabo Verde?
As fontes conhecidas não permitem chegar a
conclusões seguras, nem quanto ao nome do navegador que primeiro aportou a
estas ilhas, nem quanto à data do seu descobrimento, ou simples achamento.
Os documentos oficiais mais antigos que se
referem ao arquipélago, as cartas régias de 3 de Dezembro de 1460, 19 de
Setembro e 29 de Outubro de 1462, todas de doação ao Infante D. Fernando, irmão
do rei D. Afonso V, testemunham porém que Santiago, Fogo, Maio, Boa Vista e Sal foram descobertas pelo
navegador genovês Antonio de Noli ainda em vida do Infante D. Henrique,
portanto antes de 13 de Novembro de 1460, enquanto que as restantes o foram por
Diogo Afonso, antes de 19 de Setembro de 1462, mas depois da morte de D.
Henrique.
Estes dois navegadores foram, sem dúvida, na
sua qualidade de descobridores do arquipélago, os primeiros capitães-donatários
da ilha de Santiago, a qual, para o efeito, ficou dividida em duas capitanias:
a de Alcatrazes, ao Norte, e a da Ribeira Grande, ao Sul.
Não se conhecem outros documentos oficiais
coevos que possam levar a conclusões diferentes. Pelo contrário: ainda em 1497
Antonio de Noli, já então falecido, continuava sendo oficialmente considerado o
descobridor da ilha de Santiago. Comprova-o a carta régia, de 8 de Abril desse
ano, de doação condicional da capitania da Ribeira Grande a sua filha, e
sucessora, Branca de Aguiar, em que se diz expressamente, a justificar a transmissão,
que «o dito António foi o primeiro que a dita ilha achou e começou de povoar».
A capitania de Alcatrazes, por sua vez, e em
parte pelas mesmas razões, passou, por morte de Diogo Afonso, primeiro para seu
filho João, depois para o seu sobrinho Rodrigo.
Os referidos documentos não registam a data
do descobrimento ou, em certos casos, simples achamento, mas, quanto aos meses
e dias respectivos, tudo leva a crer, como aliás o admitem alguns escritores,
que coincidem com os consagrados pela Igreja aos santos com cujos nomes foram
baptizadas as ilhas.
Assim: Santiago, S. Filipe (hoje Fogo) e Maio
teriam sido achadas, mas nem todas visitadas, no primeiro dia de Maio; S.
Nicolau e Santa Luzia teriam sido descobertas nos dias 6 e 13 de Dezembro, enquanto
que, a Santo Antão e S. Vicente, Diogo Afonso teria chegado nos dias 17 e 22 de
Janeiro, respectivamente, sendo certo que as quatro seriam avistadas, se não no
mesmo dia, pelo menos no princípio de Dezembro, dada a pequena distância a que
ficam umas das outras.
As ilhas da Boa Vista e do Sal primeiro
chamadas de S. Cristóvam e Lhana, talvez tenham sido achadas em 24 de Julho, na
viagem de regresso do Continente Africano.
A carta de 3 de Dezembro de 1460, de doação
das cinco ilhas cujo descobrimento veio a ser oficialmente atribuído a Antonio
de Noli na de 19 de Setembro de 1462, contém informação de que as mesmas já
haviam sido doadas, com todas as rendas, direitos e jurisdições, ao Infante D.
Henrique, ignorando-se contudo, se chegou a ser lavrado o competente diploma de
doação.
Por outro lado, julga-se saber que D.
Henrique, em carta datada da Vila do Infante em 18 de Setembro de 1460, de que
só se conhece uma cópia muito antiga, é certo, mas não coeva, doara a D. Afonso
V a temporalidade das ilhas de Cabo Verde.
Daí admitir-se ser pouco provável que as
ilhas só tenham sido descobertas em 1460, tanto mais que, a partir de 1444, com
a ultrapassagem do cabo Verde, passaram a ser frequentes as viagens nos mares
vizinhos do arquipélago.
Aventou-se mesmo a hipótese de uma das ilhas
ter sido descoberta em 1445 pelo navegador Vicente Dias, que nesse ano tomou
parte na Grande Expedição às ilhas de Arguim, comandada por Lançarote.
Reforça tal hipótese, se é que a não
inspirou, o facto de o cartógrafo veneziano Andrea Bianco, que em 1448 passou
por Lagos, a caminho da Inglaterra, ter representado, na carta que vinha
preparando e ficou concluída nesse ano, uma ilha em parte semelhante, na sua
configuração, à de Santiago, situada junto do Continente Africano, talvez a 500
milhas a sudoeste do cabo Verde.
Nessa carta se diz que a ilha é autêntica,
naturalmente para não ser confundida com as ilhas lendárias do Atlântico – as
Afortunadas, as Hespérides ou Gorgónidas, etc.
Provou-se mais tarde que a caravela de Vicente
Dias ainda se encontrava junto do Senegal quando se desgarrou das restantes, e
que só esteve separada do grupo durante um dia, tempo insuficiente para se
aproximar do arquipélago de Cabo Verde a ponto de avistar qualquer das suas
ilhas.
Sabe-se, no entanto, que algumas das
caravelas da Grande Expedição de Lançarote fizeram o reconhecimento das ilhas
próximas do cabo Verde, habitadas por jalofos. Notícia que, possivelmente,
levou alguns escritores a afirmarem que as nossas ilhas, que distam cerca de
500 quilómetros desse cabo, já eram habitadas por jalofos quando foram
descobertas pelos portugueses.
Outra hipótese que consta estar sendo
analisada com todo o rigor da historiografia moderna, mas essa referente a
viagens anteriores à era henriquina, é a da descoberta de Cabo Verde pelos
árabes no século XII, seguida, no século XIV, de viagens de navegadores
muçulmanos às ilhas do Sal e da Boa Vista, aonde iriam buscar sal.
Na verdade, pretende-se terem sido
encontrados, no estrangeiro, documentos que parece levarem a essa conclusão,
mas o certo é que até hoje não foram descobertos em Cabo Verde nenhuns
vestígios arqueológicos que possam comprovar qualquer ocupação anterior à
promovida pelos portugueses em 1461/1462.
O naturalista francês Auguste Chevalier, no entanto,
consultou e registou o parecer de um orientalista que admite serem de origem
rúnica, ou azenegue, as inscrições rupestres que fotografou no Penedo da
Janela, na ilha de Santo Antão, e que julga serem anteriores à ocupação
portuguesa.
Por outro lado, Teodoro Monod, da equipa de
cientistas do Instituto Francês da África Negra, sustenta que na costa
ocidental da África não há vestígios de navegação de alto mar anteriores ao
século XV. O que, de certo modo, relativamente aos azenegues, é confirmado pelo
testemunho de Cadamosto, segundo o qual «quando viram as primeiras velas, ou
navios sobre o mar, creram que fossem pássaros grandes com asas brancas, que
voassem».
Estas e outras hipóteses são todas
relativamente recentes, visto que, até há cerca de cem anos, e desde a
publicação do Relato das Viagens de Cadamosto, em 1507, portanto durante mais
de três séculos, foi este navegador veneziano considerado o descobridor das
ilhas de Cabo Verde. É que, no seu relato, Cadamosto afirma ter aportado às
ilhas de Boa Vista e de Santiago no ano de 1456, o que só em 1844 veio a ser
contestado, como veremos a seu tempo.
Outro navegador que também se intitulou de
descobridor de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de Santiago, foi Diogo Gomes, a
julgar pelo conteúdo de um manuscrito coevo descoberto na Biblioteca de Munich
em 1868.
Nesse documento Valentim Fernandes fez
constar de facto que a prioridade da descoberta das ilhas teria sido
reivindicada por Diogo Gomes, de quem Martinho da Boémia diz ter ouvido o relato
da viagem em que, regressando da costa africana a Portugal, acompanhado de
António de Noli, «viram ilhas no mar».
Segundo Martinho da Boémia, Diogo Gomes teria
contado a história desta maneira:
«Eu e António da Noli deixamos o porto de
Zaia e navegamos dois dias e uma noite para Portugal e vimos algumas ilhas no
mar, e como a minha caravela era mais veleira do que a outra, abordei eu
primeiro a uma daquelas ilhas, e vi areia branca e pareceu-me um bom porto, e
ali fundeei e o mesmo fez António, disse-lhe eu que desejava ser o primeiro a desembarcar
e assim fiz e não vimos rastos de homens e chamamos a ilha de Santiago por ser
descoberta no dia do santo… Depois fomos à ilha da Madeira e querendo ir para
Portugal por causa do vento contrário fui parar às ilhas dos Açores, António da
Noli esperou na ilha da Madeira e com melhor tempo chegou antes de mim a
Portugal e pediu ao rei a capitania da ilha de Santiago que eu tinha descoberto
e o rei lha deu, e ele a conservou até a sua morte».
Quando se teve conhecimento da existência
desse manuscrito, de que o escritor Henry Major reproduziu alguns trechos no
livro que escreveu sobre o Infante D. Henrique, julgou-se resolvido o problema
da descoberta destas ilhas. Para muitos, confirmava-se que o arquipélago foi descoberto
no primeiro dia de Maio de 1460, como se depreende das primeiras cartas de
doação das ilhas, do mesmo passo que se provava ser falso o relato de Cadamosto
na parte relativa a Cabo Verde.
Vários historiadores, porém, contestam hoje a
reivindicação de Diogo Gomes, alegando que lhe seria fácil provar, na altura
própria, terem sido ele e António de Noli, conjuntamente, os descobridores de
Cabo Verde, e não apenas este, como se fez constar nos documentos oficiais.
Bastaria, para isso, invocar o testemunho da
tripulação das caravelas respectivas. Para mais, dada a sua qualidade de
português, e sendo pessoa da confiança do Infante D. Henrique, de quem havia
sido moço de câmara, teria conseguido fazer rectificar a doação a favor de
António de Noli, se é que este, no seu relato, omitiu o nome de Diogo Gomes.
O assunto tem apaixonado os historiadores
contemporâneos, sendo, porém, mais numerosa a falange que contesta a
reivindicação de Diogo Gomes.
Assim, enquanto que uns apontam a sua
modéstia, a sua simplicidade e sobretudo o seu desinteresse, outros alegam que
as capitanias de Santiago, por certo «mais fatigantes que rendosas», ao tempo,
não o teriam tentado, motivo por que teria preferido, como recompensa, o
almoxarifado de Sintra.
Também há os que, pura e simplesmente,
consideram o relato respectivo cheio de inexactidões e falsidades.
Compreende-se, pois, que, no pedestal do
monumento a Diogo Gomes, inaugurado nesta cidade em 1957, se tenha escrito
prudentemente que este navegador foi um dos que primeiro visitaram estas ilhas.
Esse monumento, por mero acaso, foi
implantado num miradouro sobranceiro à Calçada de acesso à cidade, a que
possivelmente se deu o nome de Diogo Gomes quando este célebre navegador passou
a ser considerado o descobridor de Cabo Verde. Na placa respectiva se diz que
foi ele quem descobriu esta ilha, no primeiro dia de Maio de 1460.
Temos assim representada, na toponímia local,
a controvérsia ainda reinante entre historiadores portugueses.
É curioso verificar-se que a incerteza dos
nossos historiadores no que concerne à descoberta de Cabo Verde não é
compartilhada pelos seus colegas italianos, que não hesitam em afirmar
categoricamente que as ilhas foram descobertas em 1456 pelo navegador veneziano
Aloísio Cadamosto. Coerentes com o seu ponto de vista, os italianos até
comemoraram em 1956 o V centenário de Cabo Verde, a julgar pela notícia da
publicação, pela Biblioteca Nacional Marciana de Veneza, entre outros, de um
volume da sua colecção «Navegadores Venezianos Quatrocentistas e Quinhentistas».
Referindo-se a essa obra, o ilustre
Secretário-Geral da Sociedade de Geografia de Lisboa esclareceu, no número de
Outubro a Dezembro de 1957, do Boletim respectivo, que «desta feita – palavras
textuais – trata-se de comemorar o V Centenário da Exploração Atlântica de
Alvise da Mosto (Cadamosto), ou seja, no dizer, entre nós discutido, dos
historiadores italianos, da Descoberta do Arquipélago de Cabo Verde por aquele
notabilíssimo navegador seu compatriota».
Cadamosto, efectivamente, reivindicou para si
a glória de ser o descobridor destas ilhas, mas o relato das suas viagens não
pode, de forma alguma, ser tomado a sério na parte respeitante a Cabo Verde.
Vale a pena contar a história a começar do
princípio, já que Cadamosto está sendo reabilitado afanosamente.
1 comentários:
Li este texto de Félix Monteiro com particular interesse porque nunca dele tivera conhecimento, mas sobretudo pela importância que reveste o seu conteúdo. Eu tinha 16 anos quando Félix Monteiro proferiu esta conferência e estava no 5º ano do liceu. É natural que a minha pouca idade na altura não me tenha permitido tomar conhecimento do texto da conferência. Mas também não me recordo se o assunto foi alguma vez mencionado nas aulas de história, como, em meu entendimento, devia ter sido. Mas provavelmente não foi porque naquele tempo o ensino pouco ou nada ultrapassava o conteúdo dos livros oficiais e adoptados. Pois, este texto encheu-me as medidas pelo seu conteúdo historiográfico e pela sua qualidade literária e pela clareza e objectividade da narrativa.
Obrigado, Ondina, a si e ao blogue. Vou guardar este texto porque é uma preciosidade. E parabéns ao Félix Monteiro, lá onde esteja.
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