sábado, 1 de maio de 2021

 

 

"Quando e por quem terá sido descoberto o arquipélago de Cabo Verde?"

Assim interroga Félix Monteiro,(1907-2002) nesta notável conferência, aqui transcrita e proferida a 1 de Maio de 1960, no salão nobre da Câmara Municipal da Praia, inserida nas comemorações do Meio Milénio do achamento das ilhas de Cabo Verde.

Leia caro leitor, e delicie-se com este verdadeiro labor de pesquisador probo e de estudioso empenhado, que foi Félix Monteiro, na consulta de  documentos, de crónicas e de registos históricos da época (séc.XV) e respeitantes à descoberta destas ilhas atlânticas.

 

 

O Achamento de Cabo Verde

Por Félix Monteiro[i]

Quando e por quem terá sido descoberto o arquipélago de Cabo Verde?

As fontes conhecidas não permitem chegar a conclusões seguras, nem quanto ao nome do navegador que primeiro aportou a estas ilhas, nem quanto à data do seu descobrimento, ou simples achamento.

Os documentos oficiais mais antigos que se referem ao arquipélago, as cartas régias de 3 de Dezembro de 1460, 19 de Setembro e 29 de Outubro de 1462, todas de doação ao Infante D. Fernando, irmão do rei D. Afonso V, testemunham porém que Santiago, Fogo, Maio,  Boa Vista e Sal foram descobertas pelo navegador genovês Antonio de Noli ainda em vida do Infante D. Henrique, portanto antes de 13 de Novembro de 1460, enquanto que as restantes o foram por Diogo Afonso, antes de 19 de Setembro de 1462, mas depois da morte de D. Henrique.

Estes dois navegadores foram, sem dúvida, na sua qualidade de descobridores do arquipélago, os primeiros capitães-donatários da ilha de Santiago, a qual, para o efeito, ficou dividida em duas capitanias: a de Alcatrazes, ao Norte, e a da Ribeira Grande, ao Sul.

Não se conhecem outros documentos oficiais coevos que possam levar a conclusões diferentes. Pelo contrário: ainda em 1497 Antonio de Noli, já então falecido, continuava sendo oficialmente considerado o descobridor da ilha de Santiago. Comprova-o a carta régia, de 8 de Abril desse ano, de doação condicional da capitania da Ribeira Grande a sua filha, e sucessora, Branca de Aguiar, em que se diz expressamente, a justificar a transmissão, que «o dito António foi o primeiro que a dita ilha achou e começou de povoar».

A capitania de Alcatrazes, por sua vez, e em parte pelas mesmas razões, passou, por morte de Diogo Afonso, primeiro para seu filho João, depois para o seu sobrinho Rodrigo.

Os referidos documentos não registam a data do descobrimento ou, em certos casos, simples achamento, mas, quanto aos meses e dias respectivos, tudo leva a crer, como aliás o admitem alguns escritores, que coincidem com os consagrados pela Igreja aos santos com cujos nomes foram baptizadas as ilhas.

Assim: Santiago, S. Filipe (hoje Fogo) e Maio teriam sido achadas, mas nem todas visitadas, no primeiro dia de Maio; S. Nicolau e Santa Luzia teriam sido descobertas nos dias 6 e 13 de Dezembro, enquanto que, a Santo Antão e S. Vicente, Diogo Afonso teria chegado nos dias 17 e 22 de Janeiro, respectivamente, sendo certo que as quatro seriam avistadas, se não no mesmo dia, pelo menos no princípio de Dezembro, dada a pequena distância a que ficam umas das outras.

As ilhas da Boa Vista e do Sal primeiro chamadas de S. Cristóvam e Lhana, talvez tenham sido achadas em 24 de Julho, na viagem de regresso do Continente Africano.

A carta de 3 de Dezembro de 1460, de doação das cinco ilhas cujo descobrimento veio a ser oficialmente atribuído a Antonio de Noli na de 19 de Setembro de 1462, contém informação de que as mesmas já haviam sido doadas, com todas as rendas, direitos e jurisdições, ao Infante D. Henrique, ignorando-se contudo, se chegou a ser lavrado o competente diploma de doação.

Por outro lado, julga-se saber que D. Henrique, em carta datada da Vila do Infante em 18 de Setembro de 1460, de que só se conhece uma cópia muito antiga, é certo, mas não coeva, doara a D. Afonso V a temporalidade das ilhas de Cabo Verde.

Daí admitir-se ser pouco provável que as ilhas só tenham sido descobertas em 1460, tanto mais que, a partir de 1444, com a ultrapassagem do cabo Verde, passaram a ser frequentes as viagens nos mares vizinhos do arquipélago.

 

Aventou-se mesmo a hipótese de uma das ilhas ter sido descoberta em 1445 pelo navegador Vicente Dias, que nesse ano tomou parte na Grande Expedição às ilhas de Arguim, comandada por Lançarote.

Reforça tal hipótese, se é que a não inspirou, o facto de o cartógrafo veneziano Andrea Bianco, que em 1448 passou por Lagos, a caminho da Inglaterra, ter representado, na carta que vinha preparando e ficou concluída nesse ano, uma ilha em parte semelhante, na sua configuração, à de Santiago, situada junto do Continente Africano, talvez a 500 milhas a sudoeste do cabo Verde.

Nessa carta se diz que a ilha é autêntica, naturalmente para não ser confundida com as ilhas lendárias do Atlântico – as Afortunadas, as Hespérides ou Gorgónidas, etc.

Provou-se mais tarde que a caravela de Vicente Dias ainda se encontrava junto do Senegal quando se desgarrou das restantes, e que só esteve separada do grupo durante um dia, tempo insuficiente para se aproximar do arquipélago de Cabo Verde a ponto de avistar qualquer das suas ilhas.

Sabe-se, no entanto, que algumas das caravelas da Grande Expedição de Lançarote fizeram o reconhecimento das ilhas próximas do cabo Verde, habitadas por jalofos. Notícia que, possivelmente, levou alguns escritores a afirmarem que as nossas ilhas, que distam cerca de 500 quilómetros desse cabo, já eram habitadas por jalofos quando foram descobertas pelos portugueses.

Outra hipótese que consta estar sendo analisada com todo o rigor da historiografia moderna, mas essa referente a viagens anteriores à era henriquina, é a da descoberta de Cabo Verde pelos árabes no século XII, seguida, no século XIV, de viagens de navegadores muçulmanos às ilhas do Sal e da Boa Vista, aonde iriam buscar sal.

Na verdade, pretende-se terem sido encontrados, no estrangeiro, documentos que parece levarem a essa conclusão, mas o certo é que até hoje não foram descobertos em Cabo Verde nenhuns vestígios arqueológicos que possam comprovar qualquer ocupação anterior à promovida pelos portugueses em 1461/1462.

O naturalista francês Auguste Chevalier, no entanto, consultou e registou o parecer de um orientalista que admite serem de origem rúnica, ou azenegue, as inscrições rupestres que fotografou no Penedo da Janela, na ilha de Santo Antão, e que julga serem anteriores à ocupação portuguesa.

Por outro lado, Teodoro Monod, da equipa de cientistas do Instituto Francês da África Negra, sustenta que na costa ocidental da África não há vestígios de navegação de alto mar anteriores ao século XV. O que, de certo modo, relativamente aos azenegues, é confirmado pelo testemunho de Cadamosto, segundo o qual «quando viram as primeiras velas, ou navios sobre o mar, creram que fossem pássaros grandes com asas brancas, que voassem».

Estas e outras hipóteses são todas relativamente recentes, visto que, até há cerca de cem anos, e desde a publicação do Relato das Viagens de Cadamosto, em 1507, portanto durante mais de três séculos, foi este navegador veneziano considerado o descobridor das ilhas de Cabo Verde. É que, no seu relato, Cadamosto afirma ter aportado às ilhas de Boa Vista e de Santiago no ano de 1456, o que só em 1844 veio a ser contestado, como veremos a seu tempo.

Outro navegador que também se intitulou de descobridor de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de Santiago, foi Diogo Gomes, a julgar pelo conteúdo de um manuscrito coevo descoberto na Biblioteca de Munich em 1868.

Nesse documento Valentim Fernandes fez constar de facto que a prioridade da descoberta das ilhas teria sido reivindicada por Diogo Gomes, de quem Martinho da Boémia diz ter ouvido o relato da viagem em que, regressando da costa africana a Portugal, acompanhado de António de Noli, «viram ilhas no mar».

Segundo Martinho da Boémia, Diogo Gomes teria contado a história desta maneira:

«Eu e António da Noli deixamos o porto de Zaia e navegamos dois dias e uma noite para Portugal e vimos algumas ilhas no mar, e como a minha caravela era mais veleira do que a outra, abordei eu primeiro a uma daquelas ilhas, e vi areia branca e pareceu-me um bom porto, e ali fundeei e o mesmo fez António, disse-lhe eu que desejava ser o primeiro a desembarcar e assim fiz e não vimos rastos de homens e chamamos a ilha de Santiago por ser descoberta no dia do santo… Depois fomos à ilha da Madeira e querendo ir para Portugal por causa do vento contrário fui parar às ilhas dos Açores, António da Noli esperou na ilha da Madeira e com melhor tempo chegou antes de mim a Portugal e pediu ao rei a capitania da ilha de Santiago que eu tinha descoberto e o rei lha deu, e ele a conservou até a sua morte».

Quando se teve conhecimento da existência desse manuscrito, de que o escritor Henry Major reproduziu alguns trechos no livro que escreveu sobre o Infante D. Henrique, julgou-se resolvido o problema da descoberta destas ilhas. Para muitos, confirmava-se que o arquipélago foi descoberto no primeiro dia de Maio de 1460, como se depreende das primeiras cartas de doação das ilhas, do mesmo passo que se provava ser falso o relato de Cadamosto na parte relativa a Cabo Verde.

Vários historiadores, porém, contestam hoje a reivindicação de Diogo Gomes, alegando que lhe seria fácil provar, na altura própria, terem sido ele e António de Noli, conjuntamente, os descobridores de Cabo Verde, e não apenas este, como se fez constar nos documentos oficiais.

Bastaria, para isso, invocar o testemunho da tripulação das caravelas respectivas. Para mais, dada a sua qualidade de português, e sendo pessoa da confiança do Infante D. Henrique, de quem havia sido moço de câmara, teria conseguido fazer rectificar a doação a favor de António de Noli, se é que este, no seu relato, omitiu o nome de Diogo Gomes.

O assunto tem apaixonado os historiadores contemporâneos, sendo, porém, mais numerosa a falange que contesta a reivindicação de Diogo Gomes.

Assim, enquanto que uns apontam a sua modéstia, a sua simplicidade e sobretudo o seu desinteresse, outros alegam que as capitanias de Santiago, por certo «mais fatigantes que rendosas», ao tempo, não o teriam tentado, motivo por que teria preferido, como recompensa, o almoxarifado de Sintra.

Também há os que, pura e simplesmente, consideram o relato respectivo cheio de inexactidões e falsidades.

Compreende-se, pois, que, no pedestal do monumento a Diogo Gomes, inaugurado nesta cidade em 1957, se tenha escrito prudentemente que este navegador foi um dos que primeiro visitaram estas ilhas.

Esse monumento, por mero acaso, foi implantado num miradouro sobranceiro à Calçada de acesso à cidade, a que possivelmente se deu o nome de Diogo Gomes quando este célebre navegador passou a ser considerado o descobridor de Cabo Verde. Na placa respectiva se diz que foi ele quem descobriu esta ilha, no primeiro dia de Maio de 1460.

Temos assim representada, na toponímia local, a controvérsia ainda reinante entre historiadores portugueses.

É curioso verificar-se que a incerteza dos nossos historiadores no que concerne à descoberta de Cabo Verde não é compartilhada pelos seus colegas italianos, que não hesitam em afirmar categoricamente que as ilhas foram descobertas em 1456 pelo navegador veneziano Aloísio Cadamosto. Coerentes com o seu ponto de vista, os italianos até comemoraram em 1956 o V centenário de Cabo Verde, a julgar pela notícia da publicação, pela Biblioteca Nacional Marciana de Veneza, entre outros, de um volume da sua colecção «Navegadores Venezianos Quatrocentistas e Quinhentistas».

Referindo-se a essa obra, o ilustre Secretário-Geral da Sociedade de Geografia de Lisboa esclareceu, no número de Outubro a Dezembro de 1957, do Boletim respectivo, que «desta feita – palavras textuais – trata-se de comemorar o V Centenário da Exploração Atlântica de Alvise da Mosto (Cadamosto), ou seja, no dizer, entre nós discutido, dos historiadores italianos, da Descoberta do Arquipélago de Cabo Verde por aquele notabilíssimo navegador seu compatriota».

Cadamosto, efectivamente, reivindicou para si a glória de ser o descobridor destas ilhas, mas o relato das suas viagens não pode, de forma alguma, ser tomado a sério na parte respeitante a Cabo Verde.

Vale a pena contar a história a começar do princípio, já que Cadamosto está sendo reabilitado afanosamente.



[i] In CABO VERDE – Boletim de Propaganda e Informação – Junho de 1960

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Li este texto de Félix Monteiro com particular interesse porque nunca dele tivera conhecimento, mas sobretudo pela importância que reveste o seu conteúdo. Eu tinha 16 anos quando Félix Monteiro proferiu esta conferência e estava no 5º ano do liceu. É natural que a minha pouca idade na altura não me tenha permitido tomar conhecimento do texto da conferência. Mas também não me recordo se o assunto foi alguma vez mencionado nas aulas de história, como, em meu entendimento, devia ter sido. Mas provavelmente não foi porque naquele tempo o ensino pouco ou nada ultrapassava o conteúdo dos livros oficiais e adoptados. Pois, este texto encheu-me as medidas pelo seu conteúdo historiográfico e pela sua qualidade literária e pela clareza e objectividade da narrativa.
Obrigado, Ondina, a si e ao blogue. Vou guardar este texto porque é uma preciosidade. E parabéns ao Félix Monteiro, lá onde esteja.

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