E
foram diversas as “inquietações poéticas”. Mas as mais aprimoradas nestes
poetas, foram a “inquietação marítima,” e a “inquietação social” bem definidas
num pequeno/grande ensaio de Gabriel Mariano,(1928-2002) também ele, poeta maior destas ilhas, e pertencente à geração
bem posterior à da «Claridade». O ensaio é intitulado: «Osvaldo Alcântara – o
Caçador de Heranças». – Ponto & Vírgula edições, 1991.
Ora
bem, achei o ensaio extremamente interessante e elucidativo sobre estas duas
inquietações. Daí, ter-me dele valido, para consubstanciar este meu escrito.
Mas
antes ainda dos poetas da geração de «Claridade», tivemos a “inquietação
amorosa” em que o exemplo mais acabado foi o poeta e famoso autor de belas
mornas, Eugénio Tavares. Natural da mais pequena ilha habitada do Arquipélago
de Cabo Verde, a ilha Brava. Eugénio Tavares, a quem muitas vezes chamámos de o
Camões destas ilhas, poeta da última década do séc. XIX. Trata-se sem dúvida, do
mais representativo poeta da “inquietação amorosa”. É que
Eugénio Tavares cantou o Amor de forma vocativa, clamativa, é sentimento sempre
presente nas suas composições. Com grande frequência E. T. apresentou o amor nos seus poemas, como
fonte de grande sofrimento para o sujeito poético, o qual, é totalmente
subjugado por este inquietante e perturbador sentimento. A sua lírica, foi disso
reflexo.
Interessante
é que, Eugénio Tavares considerou o amor maior do que o próprio Deus ,que é já
de per se, imensurável. O exemplo
mais ilustrativo disso encontra-se bem expresso na morna «Força de Cretcheu» em
crioulo da Cabo Verde, Força do Amor, sendo o vocábulo “cretcheu”, numa tradução aproximada,
de aquele ou daquela que se quer muito
cre= querer tcheu= cheio, pleno, muito. Logo uma forma aglutinada do “querer
muito”. Ora bem, o poeta sintetizou nesta composição, o seu entendimento sobre
a grandeza do Amor, sobre os seus males, mas também sobre as delícias causadas
pelo mesmo amor.
Retomando
o já referido trabalho de Gabriel Mariano, cujo título : «Osvaldo Alcântara - O
Caçador de Heranças» foi buscado num poema homónimo de Osvaldo Alcântara. Pois bem, Osvaldo Alcântara é o pseudónimo
poético de Baltazar Lopes da Silva um dos mais renomados intelectuais e dos
mais famosos homens das Letras cabo-verdianas do século XX. Autor do romance
«Chiquinho», romance emblemático da geração do movimento literário «Claridade».
No entender de Gabriel Mariano, Osvaldo Alcântara define-se como poeta «Caçador
de Heranças» pois que, no seu poema homónimo, o sujeito poético justificou o
facto de ter acompanhado o enterro de um capitão das ilhas, não foi por outro
motivo, se não pelo facto de, ele, o sujeito poético, ser um “caçador de
heranças,” ”Morreu hoje o capitão de um
navio das ilhas.// Não foi porque ele era bom / e puxava afectuosamente o fumo
do seu cigarro/ quando falava comigo/ que eu fui ao seu enterro. // Fui ao seu
enterro porque sou caçador de heranças /e queria confessar a minha gratidão /
pela riqueza que ele me deixou, / pela sua dimensão desmesurada do mundo / e
pela sua incorporação no veleiro/ em que todos navegamos.” Heranças
recolhidas, o poeta depois as reelaborará
e renovará - aqui entendidas como metáfora
de palavras sábias - recebidas em vida
do capitão de um navio das ilhas, e que
o poeta transformará em preocupações sociais que irão alimentar e
sustentar quase toda a sua poesia.
Assim,
Osvaldo Alcântara ganhou o título de poeta da “inquietação social”, no dizer de
Gabriel Mariano. Aquele que se
solidariza com o mais desprotegido dos seus semelhantes; que renuncia benesses
em nome dessas «preocupações sociais»; que demonstra disponibilidade para
seguir o trilho da “rebeldia e da libertação” do Homem nas suas várias e
complexas dimensões. Poeta e guia disponível, Osvaldo Alcântara, reitera a
disponibilidade para a luta no verso: «Tudo
é estrela na minha prisão» do poema
«Deslumbramento», e através de duas figuras “prisão” e “estrela” que aqui ganham
a um tempo, uma significação antitética
e uma aproximação oximora, o poeta alinha com os desprotegidos de sorte...
Ancorando-me
de novo, no ensaio de Gabriel Mariano, ele definiu igualmente os poetas Jorge
Barbosa (1902-1971) e Manuel Lopes,(1907-2005) como poetas de “inquietação
marítima” e que a poesia destes dois autores, reflectiu as relações que o ilhéu
cabo-verdiano estabeleceu com o mar. Ora o mar “a cinta que aperta” o
ilhéu, ora o mar “convite para a
terra-Longe”, ora ainda, o mar desassossegado e que intranquilizou o
cabo-verdiano. Enfim, o mar nas suas várias expressões, o mar dotado de sentimentos que o aproximam ou
o afastam da empatia do Homem, este que
o considerou por vezes antropoformizado, como um seu semelhante. Estas seriam
as características, as linhas de força dos poemas de Jorge Barbosa e de Manuel
Lopes, no ensaio de Gabriel Mariano.
E antes de finalizar este meu breve escrito em jeito de homenagem à Semana da Lusofonia e da Cultura na CPLP, direi que acredito que de
algum modo, o mar destes poetas tem equivalência, embora diferente na
abordagem, e naturalmente, na linha de que: “cada um é seus caminhos” -
pegando no belo verso do poema, “Impressão Digital” de António Gedeão (1906
-1997) mas é que encontramos equivalência no mar de que nos deu conta também o
portentoso escritor português Virgílio Ferreira (1916-1996) “...da minha língua vê-se o mar, ouve-se os seus rumores(...) Por isso a voz
do mar foi a da nossa inquietação” e que em Jorge Barbosa, essa “voz do Mar”, é
assim sugerida: “(...) o Mar! / dentro de
nós todos,/ no canto da Morna, / no corpo das raparigas morenas, / nas coxas
ágeis das pretas / no desejo de viagens que fica em sonhos de muita gente!”
Afinal,
de forma interessante, também, outro conhecido poeta português, José Gomes
Ferreira (1899-1985) ligou o mar à Língua portuguesa. Assim a expressou na sua «Poesia VI» e nos versos seguintes:
“(...) gritei a minha descoberta (...)«o
mar fala português»! // Claro que mentia/ pois já sabia / que bem lá no fundo
do seu canto / onde Camões ouviu sirenas / e aves marinhas / o mar falava
apenas / uma espécie de esperanto / com verbos de redes de espuma e
substantivos de sardinhas // Depois
o mar transbordou da palavra (...) // (...) A palavra oceano / trazia outro rumor
verde nos dentes.”
E
termino com estes versos de José Gomes Ferreira, e a pensar que talvez, por via
da simbologia do mar, e nas vozes dos nossos poetas e escritores, encontrámos
também os caminhos que nos trouxeram à lusofonia, através das diversas e das
ricas variantes da nossa Língua comum.
2 comentários:
Excelente, Ondina. Gostaria de ler esse ensaio do Gabriel Mariano que cita e é o mote deste artigo, o eixo aglutinador da sua exposição. A leitura deste texto fez-me revisitar os grandes criadores da nossa poesia e relembrar a rica "herança" que nos deixaram os "capitães das ilhas", os conhecedores privilegiados dos segredos desse mar que nos aprisiona e ao mesmo tempo nos liberta e que abarca a “dimensão desmesurada do mundo”.
Eugénio Tavares tinha razão em considerar o amor maior que Deus, pois que se calhar o amor é fruto de um mistério anterior ao próprio Deus. Mas, assim sendo, recuso-me aceitar que esse amor se restrinja à expressão simbólica do romance entre dois seres humanos, um homem e uma mulher. Será, talvez, o amor universal, o que sustenta o equilíbrio e a harmonia daquilo que é “imensurável” e que, por isso, se tornou a casa de Deus.
Em toda essa herança impalpável mas sentida encontramos o “trilho da rebeldia e da libertação”. E não nos mortificamos porque haverá sempre uma “estrela na nossa prisão”, mas deslumbramentos por qualquer canto de sereia.
Gostei muito da sua análise.
Lapso meu. Quis escrever: "mas sem deslumbramentos" e faltou a preposição.
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