Por achar que o texto corresponde e bem ao que se passa hoje em Portugal em termos de julgamento e de condenação da História - o que é incorrecto, uma vez que a História não se julga - como pretendem alguns ditos activistas oriundos das ex-colónias e doutros países africanos, que escolheram viver em Portugal.
Aqui vai transcrito e com a devida vénia ao seu autor, o jornalista e escritor, Miguel Sousa Tavares.
Eu, estátua,
indefesa e silenciosa
Por Miguel Sousa Tavares*
“Eu,
Diogo Cão, navegador,
Deixei
este padrão ao pé
Do
areal moreno
E
para diante naveguei”
Fernando
Pessoa, in “Mensagem”
Mário Lúcio de Sousa,
natural do Tarrafal, Cabo Verde (onde, da última vez que lá estive, nenhuma
estátua, nenhuma placa, nenhuma simples escultura, evocava o campo de morte
onde tantos resistentes portugueses pagaram pela sua luta contra o fascismo e o
colonialismo), escreveu no “Público” de domingo passado um artigo a defender o
derrube, o “afundamento” ou a “vandalização” das estátuas coloniais portuguesas
em Portugal. Embora identificado pelo jornal como “escritor e músico”, confesso
que a minha ignorância sobre ele era total. Erro meu: a sua biografia ilustra-o
como poeta, escritor (com dois prémios literários portugueses conquistados),
músico, cantor, “cantautor”, “pensador”, pintor, global artist e ex-ministro da
Cultura de Cabo Verde. Um personagem e tanto! Das suas qualidades musicais, a
net pouco mais me revelou que brevíssimos excertos dos vários concertos ao vivo
em que parece ter ocupado o seu último Verão em Portugal, mas nada que o
aproxime sequer dos vários nomes que fizeram da música cabo-verdiana uma
referência mundial. Das suas qualidades literárias, apenas consegui chegar a
dois poemas sofríveis, para não dizer medíocres, e o próprio texto publicado no
jornal, onde, em minha modesta opinião, faz um fraco uso desta extraordinária
língua que lhe deixámos em herança... para além das estátuas. Mas isso é o
menos, o fundamental é o seu argumentário.
Primeiro que tudo, a questão da legitimidade. Mário Lúcio (como
ele gosta de assinar) fala em nome dos “antigos colonizados, seus descendentes,
hoje pessoas nascidas, crescidas, naturalizadas, cidadanizadas, nacionalizadas,
simplesmente portuguesas”. Ora, os de quem ele fala, sim, são portugueses, tal
qual como eu; ele, não. Por mais que este país o acarinhe e premeie, ele
continua a ser, de direito, um estrangeiro, como eu sou em Cabo Verde — embora,
segundo percebi, ele goze daquele estatuto especial de alguns cidadãos dos
PALOP de serem aqui quase tão portugueses como nós, mas, vade retro,
orgulhosamente africanos em África e no Brasil... Assim, a minha pergunta é:
que legitimidade tem um estrangeiro para vir pregar o derrube de estátuas, ou
do que quer que seja, num país que não é o seu? Acaso ele se atreveria a isso
em Inglaterra, em Angola ou no Brasil? Acaso ele me consentiria isso em Cabo
Verde?
Segunda questão, o fundamento. Diz ele que os
“‘novos portugueses’ continuam a ouvir os ecos das ordens de matar e de
castigar, esses que abafam os uivos de dor”. Não vou, obviamente, discutir o
que foi a barbárie da escravatura e o tráfico de 1.400.000 seres humanos, que,
só os portugueses, levaram, acorrentados, de África para o Brasil — e sem os
quais o Brasil que conhecemos não existiria. Mas se os “novos portugueses”
ainda ouvem esses ecos, eu não: não há chicotes nem correntes em minha casa e
não oiço uivos de dor vindos da sanzala dos meus escravos. O meu dever
contemporâneo é contar a história, a verdadeira história (e, sim, ao contrário
do que ele diz, já há em Lisboa um monumento de homenagem às vítimas da
escravatura, mas, por pudor, não há um Museu das Descobertas). E, sobretudo, é
meu dever denunciar novas formas de escravatura, com novos disfarces, sem
chicote nem correntes, como as de que são vítimas os trabalhadores asiáticos na
agricultura intensiva — e de que não se ocupam estes activistas talvez porque
eles não são negros. Porque também me espanta que estes derrubadores de
símbolos de um passado que há muito deixou de existir se remetam a um silêncio
sujo de cumplicidade com as múltiplas formas como os povos dos países africanos
outrora colónias portuguesas hoje são roubados pelos seus dirigentes, à vista
de todos e como nunca foram antes. Não é o caso de Mário Lúcio, natural do
único desses países que tem orgulhado a sua independência, mas o que dizer da
deputada portuguesa Joacine Katar, aqui acolhida como em raros países do mundo,
tão crítica do seu país de acolhimento e tão silenciosa perante a vergonha
continuada que é a governação do seu país de origem e a desgraça do seu povo?
Mas, uma vez isto feito, a limpeza da memória
histórica não estaria terminada. A exaltação do “colonialismo” português,
confundida por estes derrubadores de estátuas com tudo o resto, não poderia,
coerentemente, ficar saciada. Sobrariam ainda, por exemplo, as pinturas e os
livros: “Os Lusíadas”, “A Peregrinação”, “As Décadas da Índia”, o “Esmeraldo de
Situ Orbis”, os relatos da “História Trágico-Marítima”, o “De Angola à
Contracosta”, e tantos, tantos livros mais, que haveria bibliotecas inteiras
para queimar em autos-de-fé. E os escritores que algum dia se deixaram tomar
pelo espanto daqueles que navegavam sem horizonte conhecido: Camões, Pessoa,
Jorge de Sena, Manuel Alegre, Sophia.
Diga-me lá, Mário Lúcio, com a sua visão de global artist: a sua
fúria demolidora começa em que estátua nossa em concreto e acaba em que
específico pergaminho?
Miguel
Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
*in
Expresso, 11/12/2021
3 comentários:
Professor Ondina
Este artigo não me parece ser digno de constar no seu blog.
Uma leitura e uma interpretação cuidadosa certamente não o teria reproduzido. É que a abordagem e o fundamento apresentados pelo autor não são dignos da lusofonia que tanto preza.
Obrigada pelo seu comentário.
Normalmente o «Coral Vermelho» publica textos que estão de acordo com a sua linha editorial e o texto em apreço não foge a isso. Para além do mais, caro leitor, se consultar o texto intitulado: "À História o que é da História" aqui publicado a 23 de Junho de 2020, verificará que contém idênticos reparos a este desmando que grassa por aí, em mentes perturbadas, de mandar "derrubar, vandalizar" estátuas e monumentos, que representam testemunhos, vestígios, históricos de uma época, de uma comunidade humana, com os seus erros e as suas glórias. São registos que não devem ser eliminados com o tal "risco vermelho". Não devem ser apagados factos históricos sob qualquer pretexto.
A História deve ser analisada no seu contexto e não com os instrumentos de hoje. Daí existir nos cursos de História, em Portugal, uma cadeira denominada «História das Mentalidades» exactamente para prevenir e evitar que o futuro Historiador fundamente e julgue o passado com os instrumentos de análise de hoje.
Concluo, agradecendo mais uma vez o seu comentário e citando o político português Francisco Assis que brilhantemente - a propósito da vandalização e a tentativa de derrube de estátuas e de monumentos - escreveu ele: " Quando um grupo de fanáticos precariamente alfabetizados invade e confisca o campo de debate político passa a haver sérios motivos de preocupação". Fim de transcrição. A preocupação torna-se mais grave para aqueles que têm ou, tiveram responsabilidades nos domínios da Cultura e da política.
Surpreende-me que o comentador "anónimo" discorde da publicação neste blogue do texto de Miguel Sousa Tavares. Sobretudo, porque não fundamenta minimamente a sua observação. Se um qualquer governo mundial (talvez um dia se chegue a uma unificação do poder político no planeta) decidir derrubar e varrer da Terra o que, bom ou mau, foi erigido para simbolizar a acção e a presença humanas, nada ficaria para atestar a história da civilização. Esta foi iniciada há cerca 3.000 anos a.C., com a invenção da escrita, e desde então o que existe sobre o planeta é o resultado do que o homem foi capaz de gerar com a sua mente e a sua natureza complexa e enigmática. Julgamentos retrospectivos da acção humana são um autêntico absurdo porque supõem ter de aplicar apreciações éticas fora dos contextos precisos em que ocorreram os acontecimentos. Depois, estando em causa o fenómeno do domínio e violência sobre outros povos e a escravatura, o rigor intelectual obrigaria a que o julgamento começasse desde os primórdios, passando pelas civilizações grega, romana e outras e talvez só parando na Idade das Luzes. Pelo caminho, verificaríamos então que até as primitivas civilizações africanas praticaram a escravatura, e que o comércio escravo organizado em que os portugueses tiveram papel de destaque só foi possível em grande parte porque havia reis e chefes africanos que forneciam o produto humano, mercê da captura de populações vizinhas rivais.
Depois, mesmo na Idade das Luzes, verificamos que Voltaire, o mais celebrado intelectual iluminista e o mais acérrimo defensor dos direitos humanos, contestou a escravatura na América mas foi completamente omisso em relação à que existia no seu próprio país.
Veja-se assim quão relativos são os conceitos morais e quão impossível e inútil é julgar com os critérios da actualidade o comportamento do homem e das sociedades por aquilo que fizeram ou deixaram de fazer ao longo dos tempos.
Considero que a atitude do Sr. Mário Lúcio pecou por irreflexão e insensatez. Aliás, para ser coerente consigo próprio devia, enquanto ministro da Cultura do seu país, ter proposto a demolição das estátuas dos descobridores das nossas ilhas que estão nos seus pedestais, bem como outras figuras da história e da cultura portuguesa, como Camões e Serpa Pinto.
Escuso dizer que concordo em absoluto com a resposta dada pela Dr.ª Ondina Ferreira.
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