Um texto deveras interessante. Por um
lado, pela forma como trata o tema da “Portugalidade.” Por outro, o título: “Eu
amo a portugalidade,” tornada frase emblemática e inspiradora da matéria aqui
tratada, foi proferida por Onésimo Silveira, então Embaixador de Cabo Verde em
Portugal aquando do almoço de despedida de funções, oferecido pelo autor do texto, Fernando d’Oliveira Neves, na altura, Secretário de Estado dos Assuntos Europeus.
Eu amo a portugalidade
(publicado
no jornal Público de 2/12/2021)
Fernando d’Oliveira Neves - Embaixador jubilado.
É claro que o Império Português foi
colonialista e racista. Mas todas as sociedades, por mais opressoras que sejam,
têm vida para além dessas dimensões. É da tradição diplomática, ou melhor, era,
que, quando um embaixador acreditado num posto terminava a sua missão, o
ministro do país anfitrião lhe oferecia um almoço de despedida. Tal era
possível quando, em cada capital, havia uma dúzia de embaixadores. Hoje, numa
capital como Lisboa esse número ronda a centena. É impossível que todos os
almoços sejam oferecidos pelo ministro. Na sua indisponibilidade, é substituído
por um dos secretários de Estado ou pelo secretário-geral do ministério.
Era eu secretário de Estado dos Assuntos
Europeus, quando me pediram para oferecer o almoço de despedida ao embaixador
de Cabo Verde, Onésimo da Silveira. Nunca o tinha visto e confesso que só li o
respectivo currículo pouco antes de me dirigir para a casa de jantar do Palácio
das Necessidades. No fim do almoço, faço um brinde, com as banalidades usuais,
apenas reforçadas pela forte singularidade das relações entre os dois países e
o facto de saber que o meu convidado era poeta. Quando acabo, o embaixador
Onésimo da Silveira levanta-se, com um pequeno caderno na mão e, antes de
começar a ler, diz “Eu amo a portugalidade”. Fiquei encandeado perante a
surpresa e a profunda sabedoria desta frase maravilhosa. Tive vontade de pintar
a cara de preto, face à banalidade do que dissera. A conjugação do conceito de
portugalidade com o verbo amar enfeitiçou-me e fiquei, encantado, a ouvir a
magia do discurso que o embaixador continuou a ler, levando-nos pelos meandros
mágicos da experiência dessa portugalidade, tão bem cognominada.
Este episódio ficou-me atravessado.
Tentei, reconheço que sem a persistência necessária, obter o texto, sem nunca o
conseguir. Agora, que tantos dislates se ouvem sobre a expansão portuguesa,
esse valor que mais alto se alevantou e calou as musas, tenho-me lembrado
dele.
É claro que o Império Português foi
colonialista e racista e mais outras práticas condenáveis de todas as
sociedades humanas. Dessa ignomínia não restam dúvidas. Apesar de tudo, parece
avisado olhar para cada época em função dos valores então prevalecentes. Vivi o
bastante para ver valores considerados vitais desaparecerem e, felizmente, ver
surgir novos que nunca me tinham passado pela cabeça. Mas todas as sociedades,
por mais opressoras que sejam, têm vida para além dessas dimensões. A expansão
portuguesa foi muito mais que isso. Foi uma das epopeias que mais mudaram a
História, dando aos homens uma nova e real dimensão do mundo em que
viviam.
Até pelo limitado número de portugueses
que a fizeram, provocou uma convivência sem precedentes de pessoas de todas as
partes do mundo, que, no quotidiano, se misturaram, fizeram amizades, riram em
conjunto, beberam e comeram ao pôr do sol dos cantos do mundo por onde andámos
e onde muitos ficaram, trocaram experiências e constataram a relatividade das
suas virtudes, crenças, medos e ambições.
Não é fácil definir a portugalidade.
Talvez o resultado positivo desse intercâmbio seja a criação e perpetuação de
laços afectivos e familiares entre gentes das mais diversas partes do mundo. As
amas índias da Casa Grande poderão ser exemplo. Ou talvez não passe de uma amarga
saudade doce, de uma utopia que, por vezes e por instantes, se transforma em
realidade. Talvez seja mais simples dar exemplos concretos.
Portugalidade é estar na antecâmara do
chefe do Governo de Malaca, a conversar com um chinês, e de repente este dizer:
“Mas o Senhor é português? Eu também. Sou da freguesia de S. Pedro, em
Singapura, e nos dias 13 de cada mês fazemos a procissão de Nossa Senhora de
Fátima”.
Portugalidade é chegar a Jacarta, ao fim
de 25 anos de hostilidade em torno de Timor, ser levado a jantar no centro
histórico da cidade pelo embaixador do Brasil, amante da presença portuguesa na
Indonésia, e ouvi-lo dizer que o canhão que está no meio da praça é um canhão
português, onde as noivas se vão fotografar no dia do casamento, porque é um
símbolo da fertilidade.
Portugalidade é ser-nos dito, no Barém
[Bahrein] e no Kuwait, que os únicos edifícios de pedra que ali existem
anteriores ao século XX são os fortes portugueses que lá resistem.
Portugalidade é ouvir Samora Machel a
olhar para o Índico e dizer do seu orgulho, quando se lembra que Vasco da Gama
ali passou e, logo a seguir, afirmar, num tom meio agastado: “Nós é que
descobrimos o Brasil e agora têm um Presidente que se chama Geisel!”.
Portugalidade é ouvir um goês a
manifestar o orgulho num seu remoto antepassado agraciado com a Cruz de Cristo
pela Rainha D. Maria II e outro a lembrar que o trisavô fora Presidente do
Supremo Tribunal de Justiça.
Portugalidade é ir jantar ao International Hotel do Barém, onde
decorria a semana gastronómica do Texas, e chegar à mesa um empregado indiano,
vestido à cowboy, que nos diz, em bom português, “boa noite” e tem na farda um
dístico onde se lê o seu nome: Bragança.
Portugalidade é verificar que os católicos
de diversos países da Indochina falam um português arcaico a que chamam christian, que é para eles sinónimo de
português, e por isso se dizem portugueses.
Portugalidade é ir ao Portuguese Setllement de Malaca,
encontrar uma mistura inédita de raças, malaios, chineses, indianos, e ouvi-los
a cantar e dançar o Tia Anica de Loulé, em trajes minhotos, e a falar um
português compreensível.
Portugalidade é um liurai timorense
desenterrar e entregar-nos uma bandeira portuguesa e dizer que o pai dele a
tinha enterrado quando Timor foi invadido pela Indonésia, e lhe disse para a
dar aos portugueses quando (não se) eles voltassem.
Portugalidade é ir ao CCB assistir a uma sessão das comemorações dos 500
anos da Descoberta do Brasil e ouvir o embaixador brasileiro, Sinésio Sampaio
Goes, ele também, como historiador, cultor da portugalidade, a apresentar o
chefe da maior tribo de índios do Brasil, os índios tupis, se a memória não me
falha. Vemos entrar um senhor com um aberto ar jovial, envergando um casaco de
tweed e um maravilhoso cocado que lhe caía pelas costas até aos calcanhares, e
ouvi-lo dizer, com ostensivo júbilo e orgulho: “O meu nome é António Cardoso e
o meu avô era de Trás-os-Montes”.
Acabou o Império colonial português e a
opressão de uma nação sobre as outras. Fica na História um admirável património
universal, físico e afectivo. Este último, símbolo notável de humanismo, será a
portugalidade. Que Onésimo da Silveira me ensinou a amar.
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