Caro Leitor: encontrará
neste ensaio de Humberto Cardoso, curiosamente intitulado: «O Erro de António Carreira»
certamente por sugestão do «Erro de Descartes» do neurocientista português António
Damásio uma tese contrariando a de António Carreira, vazada em «Cabo Verde – Formação
e Extinção de uma Sociedade Escravocrata –(1460 -1878)».
Diferentemente,
questiona Humberto Cardoso sobre o tipo de colonização de Cabo Verde e a relação
Senhor/Escravo, que encontraram nas ilhas formas específicas e peculiares de
coexistência económica e social, muito diferentes daquilo que aconteceu no Brasil,
em São Tomé e nos demais países onde existiu de facto, a tal “Casa Grande e Sanzala,”
e que os definiu como sociedades escravocratas. Cabo Verde sem chuvas, sem
recursos naturais e sempre num processo limite de sobrevivência, nunca poderia
ter condições para ser uma sociedade escravocrata nos moldes definidos por Carreira.
O Erro de António Carreira
Humberto Cardoso
(Novo Jornal
de Cabo Verde, Agosto de 1997/Revista Cultura N. 2 – 1998)
Toi
Mulato (....) referia-nos que nhô João Joana lhe contou que no princípio do
mundo, a Terra era uma mulher muito bonita e muito infeliz. Vendo os seus
filhos morrer por falta de comida, saía todas as noites a vaguear e ia chorar
nos cumes das rochas os seus amores perdidos. Ela tinha-se casado com um moço
leviano que nunca lhe aparecia inteiro, mas sim partido em pinguinhos de água.
A Terra ficava sempre com gana do amor incompleto do seu marido. E este saía
pouco depois., a visitar as mães-de-filho que tinha por esse mundo fora.
In
"Chiquinho", Baltazar Lopes
Um olhar por
Cabo Verde e pelo seu povo deixa a impressão forte de se estar perante um
fenómeno extraordinário e único. Cabo Verde parece um lugar onde dois mundos
confluíram para se encontrarem, onde duas raças se esforçaram para se cruzarem
e onde a história é feita mais de histórias de sofrimento do que de alegria. A
realidade, porém, é outra: há um só mundo, e é novo, não há uma raça, existe o
Cabo-verdiano, e a história são estórias de esperança.
Quem vem de
fora, de outras paragens, onde a cor da pele informa e é enformada de história,
de preconceitos, de reacções e de ressentimentos, vê-se, de repente, no meio de
uma gente, basicamente, distraída e olvidada quanto às variantes em traços
fisionómicos e quanto às nuances de cor entre uma tez escura e outra clara de
que são portadores os pais, os irmãos, os primos, os vizinhos e os patrícios
das outras ilhas.
A sensação
de bem-estar, que é logo experimentada, provém, em grande parte, do alívio de
se alijar da carga racial, ou seja, da consciência aguda de que se é de uma
raça e que as outras pessoas sabem disso e que modelam o seu comportamento e a
sua relação social com base nisso. É um alívio e um prazer análogo à sensação
de flutuação que a imersão na água nos deixa experimentar ao contrabalançar a
força opressora da gravidade.
Passando de
uma ilha para outra, depara-se com o mesmo povo, não obstante as diferentes e
contrastantes paisagens visitadas e as nuances culturais locais percebidas. Um
povo com uma existência de séculos e com uma resiliência cultural que lhe
permitiu emergir e crescer como entidade cultural autónoma, a partir de um meio
onde prevalecia a envolvência cultural portuguesa.
Sobreviveu
às constantes ameaças à sua existência e à sua própria génese postas,
designadamente, por sistemas económicos de base esclavagista; por regimes de
propriedade negadoras de uma base própria de subsistência às famílias, pela
emergência, com o comércio triangular, do fenómeno global do racismo, e,
fundamentalmente, pelas terríveis fomes que pressagiavam o seu desaparecimento
da face da terra. Ao longo dos séculos foi lançando raízes cada vez mais fortes
à medida que ia surgindo, em todos os pontos do arquipélago, nos interstícios
das relações económicas e sociais dominantes, e que adoptava formas de
existência impermeáveis aos efeitos erosivos e corrosivos de um ambiente socioeconómico
e político hostil.
A
consciência e o orgulho de si próprio, que não obstante as amarguras de
existência o Cabo-verdiano foi capaz de gerar, deixaram-lhe marcas profundas
que se manifestam numa ligação profunda à terra e à sua gente e, também, na
capacidade de sobreviver face às mais terríveis situações e face aos maiores
neutralizadores como o tempo e a distância. As comunidades no exterior são
eloquentes a este respeito.
Cabo Verde
surpreende, ainda, pela sua proximidade do mundo ocidental, em termos culturais
e civilizacionais.
A cultura
cabo-verdiana não resultou do cruzamento das culturas europeia e africana, ao
contrário do que se veicula e do que, dada a situação geográfica das ilhas,
aparentemente seria lógico. Cruzamento de culturas pressupõe a existência de
comunidades distintas e com dinâmica cultural autónoma, capazes de um diálogo
gerador de uma síntese muito especifica.
Vários
factores concorreram para o não aparecimento dessas tais comunidades autónomas
em Cabo Verde, ou seja, para que nunca se pudesse falar, com propriedade em
Casa Grande e Senzala nas ilhas. No arquipélago, encontrado desabitado, a
cultura que se soergueu e se diferenciou ao fim de um certo tempo só podia ter
como referência básica elementos da matriz cultural portuguesa da época.
Beneficiou, contudo, dos apports culturais trazidos por
indivíduos ou grupos de indivíduos, provenientes de diferentes paragens, que se
fixaram no arquipélago ou que por aqui passaram.
A este
respeito, o que aconteceu em relação ao crioulo é
paradigmático;
I – 99% dos
seus vocábulos têm origem directa na língua portuguesa, particularmente a
falada nos séculos quinze e dezasseis, o que evidencia a condição dessa língua
como matriz básica da língua cabo-verdiana; 2 – o crioulo, apesar
da envolvência cultural portuguesa de séculos em Cabo Verde, revela-se completamente
autónomo em relação a língua portuguesa. Não estranha, pois, que o que
aconteceu com o crioulo, a expressão central da entidade cultural
cabo-verdiana, se tenha verificado com os demais elementos que formam o corpo
da cabo-verdianidade.
Tentar compreender
estas realidades, vividas por todos os cabo-verdianos e acessíveis a todos os
estrangeiros, pela via de um modelo que assume e estipula as origens da
sociedade cabo-verdiana numa sociedade escravocrata existente entre 1460 e
1878, é tarefa impossível.
António
Carreira e os seus seguidores procuram fazer precisamente isso e o resultado
lógico de tal exercício não pode deixar de se revelar, no mínimo, bizarro, a
olhos de quem conhece o país e o povo.
Modelos
constroem-se a partir de descrições esquemáticas de sistemas, teorias ou
fenómenos com base em propriedades conhecidas ou inferidas. São extremamente
úteis na compreensão global da realidade em estudo, podendo ajudar na previsão
da evolução do sistema ou do comportamento do mesmo em ambientes com
determinados parâmetros. Mas, enquanto instrumentos cognitivos abstractos, os
modelos só se mantêm quando justificados pelos factos, ou seja, quando
conseguem explicar fenómenos, justificar coerências internas de fenómenos,
aparentemente, dispares e prever evoluções futuras.
O modelo
avançado por António Carreira no seu livro Cabo Verde: "Formação
e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)'' e usado
sistematicamente nas suas obras seguintes, e por outros autores, para
compreender e interpretar Cabo Verde não resiste ao teste dos factos e da
realidade cabo-verdiana.
O modelo de
Carreira parte do seguinte:
• O
povoamento de Cabo Verde realizou-se com uma minoria europeia, naturalmente
dominadora, e com africanos, trazidos como escravos.
• Cabo Verde
desempenhou um papel como entreposto no comércio de escravos
• A
estrutura produtiva no arquipélago baseava-se em trabalho escravo.
O primeiro
aspecto que chama a atenção no modelo de Carreira é o facto de as suas assunções
fundamentais em nada se distinguirem dos factores que condicionaram a actual
estrutura social, racial e cultural de muitos países das Américas e das
Antilhas e, também, de países como S. Tomé e Príncipe. Isto é mesmo sublinhado
por António Carreira (obra citada, pg.2l) quando afirma que "a política
económica e os processos seguidos na ocupação do espaço e no desenvolvimento
dos dois grupos de ilhas (Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe) foram em quase tudo
coincidentes –
quase iguais”.
A
discrepância manifesta-se quando se compara as sociedades actuais de Cabo
Verde, de S. Tomé e Príncipe, das Antilhas e das Américas. Cabo Verde
destaca-se imediatamente como um caso à parte. A sua fisionomia actual pouco
tem a ver com a fisionomia do Brasil, da Jamaica, do Haiti ou dos estados
americanos do Sul. Face a isso, é de se contestar as assunções referidas,
quando aplicadas à realidade das ilhas. O próprio Carreira
confessa não compreender como é que, não obstante a similaridade de processos,
a coincidência de várias vicissitudes históricas, e, basicamente o mesmo stock
humano, a sociedade cabo-verdiana e a sociedade são-tomense sejam tão
diferentes.
Assim, ele
diz, na parte introdutória do livro Cabo Verde: "Formação e extinção de
uma Sociedade Escravocrata (1460-I878)”, pg.22, o seguinte: (...) a
despeito dos dois grupos de ilhas terem conhecido idêntica prosperidade
económica e passado por quase iguais dificuldades, nas de Cabo Verde, dentro da
sua extrema pobreza, a miscigenação prosseguiu sem paragens, levando à formação
de uma comunidade com costumes, hábitos, comportamentos e língua
fundamentalmente portuguesa, ao passo que nas de S. Tomé, segundo parece, os
resultados dos contactos raciais e culturais podem ser considerados
insignificantes se os compararmos como os atingidos naquele arquipélago.
Para se
poder avaliar o que de diferente realmente se passou em Cabo Verde, impõe-se
que se tenha na devida perspectiva certos factos históricos:
Primeiro,
• Cabo Verde
foi descoberto em 1460, 32 anos antes de Cristóvão Colombo ter chegado às
Antilhas e 40 anos antes de Pedro Álvaro Cabral desembarcar no Brasil.
• Cabo Verde
foi encontrado deserto e, portanto, sem povos ou culturas autóctones.
• Cabo Verde
originalmente esteve para ser povoado nos mesmos moldes que os Açores e a
Madeira o foram. O clima constituiu
um forte dissuasor da fixação de europeus e obrigou á importação de escravos da
costa africana.
O povoamento
de Cabo Verde tinha o objectivo duplo de apoiar na investida comercial na costa
africana e de ser uma base avançada na navegação mais a sul em direcção à Índia
e ao Brasil. A exploração económica das ilhas, nos moldes feitos posteriormente
em outras paragens, não estava nos planos dos recém-chegados portugueses.
O comércio
de escravos constituía, então, simplesmente, uma parte de um comércio muito
mais abrangente na costa africana. A criação das grandes economias de
plantações nos EUA, no Brasil e nas Antilhas, verificada na segunda metade do
século XVI e no século XVII, é que iria centrar no comércio de escravos toda a
actividade mercantil na costa ocidental africana, através do tristemente
célebre comércio triangular. E, para base de apoio à instalação e à
consolidação de tal circuito, viria a construção ideológica e racista da
inferioridade da raça negra, como forma dos envolvidos se justificarem pelo
enorme sofrimento causado e pela extrema ganância que os levara a instituir
esse tráfego monstruoso.
Até o século
XVII, o comércio de escravos que, desde a origem dos tempos, se verificara em
todos os continentes e envolvera os mais diferentes povos, seja como escravos,
seja como compradores de escravos, não tinha uma base racial, nem se
desenvolvia por instigação de sentimentos racistas. O processo em Cabo Verde de
povoamento, de consolidação social e de génese de uma sociedade própria,
viu-se, em boa medida, poupado dessas tensões, por duas razões:
l – por se ter iniciado muito antes do modelo
escravocrata das plantações se ter instalado nas novas terras;
2 – porque o
arquipélago caiu no declínio e no isolamento assim que foram criadas as
condições para o comércio em massa de escravos, isto é evidente pela
miscigenação notória da população, pelo reconhecimento dos filhos pelos
europeus e pela pratica de libertação de escravos, todas, actividades que, por
subverterem os próprios alicerces das sociedades escravocratas, baseadas no
sistema das plantações, viriam a ser condenadas vigorosamente.
Segundo,
•A economia
das ilhas assentou-se, desde o início, na condição de entreposto comercial,
gozando de privilégios monopolistas.
• A
agricultura, a criação de gado e outras actividades económicas, como a
confecção de pano, eram marginalmente subsidiárias da actividade central do
comércio na região.
•
Actividades económicas autóctones no arquipélago estavam fortemente
condicionadas pelo fraco, inconstante e imprevisível regime de chuvas.
• As ilhas
não tinham como defender-se dos ataques dos corsários
As condições
oferecidas pela coroa portuguesa para povoar o arquipélago de Cabo Verde
revelaram-se, desde o início, frágeis, pouco motivadoras e insustentáveis a
médio e longo prazo. Baseadas essencialmente no monopólio do comércio na
região, só se mostrariam atraentes enquanto se conseguisse manter afastados os
concorrentes estrangeiros e enquanto interesses na metrópole não
contradissessem os interesses dos moradores de Santiago. Alternativas ao
comércio na costa africana não existiam, e a exiguidade de terras e a fraca
pluviometria vaticinavam, desde os primórdios do povoamento, a inevitabilidade
do colapso da economia das ilhas.
O comércio
na região ocidental africana muito dificilmente podia tornar-se um factor de
acumulação de riqueza nas ilhas e de gestação de uma estrutura produtiva
interna, a prazo sustentável. A agricultura e a pecuária nas ilhas seriam
sempre de subsistência e, marginalmente, fornecedoras de matérias-primas para
fins industriais, como algodão, urzela, sementes oleaginosas, açúcar e peles. A
quase impossibilidade de gerar recursos próprios e também de participar com
produtos originários no comércio na região fazia a prosperidade do arquipélago
suportar-se numa base estreita e frágil, aleatória e potencialmente provocadora
de conflitos terríveis – as receitas alfandegárias.
Duas
economias desenvolviam-se, paralelamente, no arquipélago; uma economia
mercantil, baseada na cidade de Ribeira Grande, e uma economia agro-pecuária de
subsistência, no interior de Santiago e em ilhas como Fogo, Boavista, Sto. Antão
e S. Nicolau. Poucos pontos de contacto existiam entre essas duas economias,
salientando-se, de entre eles, o fornecimento de escravos para o trabalho
agrícola e a produção de panos para a troca na costa africana, sendo ambas as
actividades marginais para as respectivas economias.
A
perspectiva de perda do monopólio e as fugas sucessivas dos barcos ao controle
dos moradores de Santiago ameaçavam permanentemente a actividade mercantil. A
possibilidade de fomes, de caos social e de mortes por inanição era uma
constante da vida no mundo rural, devido às secas cíclicas. Os ataques dos
corsários provocavam perturbação geral com particular impacto na actividade
mercantil e na manutenção da estrutura agrária; baseada no regime de morgadios
e no trabalho escravo.
Os furos
sucessivos ao monopólio, a concorrência de estrangeiros e, posteriormente, a
proibição feita aos moradores de Santiago de fazerem comércio nos Rios da Guiné
destruíram a actividade mercantil do arquipélago. Com o comércio foi também o
seu santuário, a cidade de Ribeira Grande na ilha de Santiago, a
primeira cidade portuguesa nos trópicos.
O abandono
da cidade de Ribeira Grande marcou uma nova era na vida de Cabo Verde. A partir
daí, as ilhas ficaram basicamente entregues a si próprias, rareando cada vez
mais os contactos com o mundo. A economia agro-pecuária de subsistência, a
única então possível e na total dependência das chuvas, quase não permitia o
crescimento da população. A estratificação social existente, nela baseada,
suportava uma erosão permanente, devido aos sérios problemas e descontroles
provocados pelas secas e, após o desaparecimento da cidade de Ribeira Grande,
devido ao corte do fluxo de novos escravos que realimentava o seu sistema de
trabalho no campo.
Terceiro
• O relativo
isolamento do arquipélago e a existência no limiar de sobrevivência foram
factores de erosão e de transformação das relações sociais originárias.
• A ocupação
da terra, nas ilhas que não Santiago e Fogo, realizou-se com gente de terra e
na base de pequenas propriedades, marginalmente fazendo uso do trabalho escravo.
• Alforrias
e fugas de escravos eram uma constante da vida desde os primeiros tempos.
A ocupação
das ilhas por uma minoria, branca e europeia, e por mão-de-obra, escrava e de
raça negra, prefigurava a criação de relações sociais altamente hierarquizadas
e polarizadas. A reprodução dessas relações pressupunha uma dinâmica de revigoração
do protagonismo, branco e europeu, e uma outra dinâmica de alimentação do
contingente, escravo e negro. Tais dinâmicas, porém, só seriam sustentáveis se
a estrutura económica erigida tivesse capacidade de acumulação e de expansão a
taxas aceitáveis e atraentes.
Os
condicionalismos de existência em Cabo Verde, particularmente a baixa e
irregular pluviosidade, desde logo, retiraram qualquer esperança de uma
economia dinâmica que alimentasse um fluxo de europeus de qualidade e
sustentasse importações sucessivas de escravos. Não se verificando isso, as
relações sociais originárias ficavam em permanente tensão e, após erosão
significativa, acabariam por ceder.
O isolamento
do arquipélago e a ausência de um fluxo de europeus, particularmente de
mulheres europeias, rapidamente conduziu a um processo de miscigenação e, na
sua sequência, às primeiras alforrias. A polarização social, antecipada nas
relações sociais de origem, desmoronava-se com o aparecimento de mestiços e
mulatos reconhecidos pelos pais e que, em alguns casos, até herdavam. É
evidente que em tal ambiente, pouco espaço haveria para antagonismos
exacerbados de carácter racial.
As
dificuldades crescentes em obter escravos e o seu preço cada vez mais
inflacionado impuseram sérias restrições à reposição do contingente de
escravos. Estes, muitas vezes, aproveitavam-se de momentos de crise, como fomes
e ataques de corsários, e fugiam para os montes ou para outras ilhas. Outros
ainda eram alforriados pelos próprios donos se, por exemplo, não tinham meios
para os sustentar.
A exigência
de mão-de-obra escrava era maior nas ilhas de Santiago e Fogo. A estrutura de
propriedade nessas ilhas baseava-se no regime de morgadios, com as suas grandes
extensões de terra para serem cultivadas. A importação de escravos, que se
susteve por algum tempo era basicamente para satisfazer essa procura, causando
no processo tensões várias: cada novo contingente de escravos continha em si
próprio a ameaça de regresso a relações originárias e já completamente
desfeitas.
Outrossim a
existência dos morgadios tendia a manter uma estrutura social vertical
hierarquizada e, por causa disso, indutora de problemas sociais diversos. Os
mulatos e os forros, não sendo escravos e não tendo terras, viam-se e
sentiam-se como excluídos e marginalizados e eram vistos pela classe dos
morgados como um factor de perturbação. Entretanto, a fragilidade do sistema
económico, social e político não permitia um controle adequado dos escravos,
levando que muitos andassem fugidos pelos montes e constituíssem ameaças a
pessoas e a propriedade.
Nas
outras ilhas, reinava a pequena propriedade e a necessidade de mão de obra escrava
era muito menor. Em pouco tempo, nem isso se fazia sentir, chegando-se a ponto
de na ilha de S. Antão e em pleno século XVIII, a Coroa ter ordenado a
libertação de todos os escravos. As relações sociais nessas ilhas eram mais
distendidas, tinham uma natureza mais horizontal e não sofriam as tensões bruscas
de chegadas de novos contingentes de escravos. Dentro do isolamento global do
arquipélago, eram ainda mais isoladas, o que lhes deixava uma maior margem de
manobra em termos de experimentação humana e de relações sociais.
Em conclusão,
pode-se afirmar que, contrariamente à tese de António Carreira, se
alguma vez houve um plano para criação de uma sociedade escravocrata em Cabo
Verde, esse piano falhou completamente.
Falhou
porque
• Ninguém
conseguiu pôr de pé uma economia de base escravocrata pela simples razão de que
em Cabo Verde não chove e não há, portanto como aguentar Casas Grandes
e Senzalas.
• A
existência no limiar de sobrevivência, com pequenos e aleatórios picos de
prosperidade e regulares rectificações malthusianas da
população do arquipélago, forçou relações sociais e raças originárias à
partilha de um destino comum, pontuado por extremos, desfigurando-as e
esvaziando-as no processo.
• Nas
situações-limite vividas em Cabo Verde surgiu uma outra gente, uma outra
cultura e outras relações entre as pessoas que efectivamente bloquearam
tentativas subsequentes de implantação de regimes económicos e sociais
escravocratas.
Ao modelo de
Carreira, claramente inconsistente com as características da evolução humana
nas ilhas, deve ser contraposto um outro modelo, que facilite uma abordagem
compreensiva das complexidades da vida no arquipélago ao longo dos séculos e
que seja capaz de dar conta da actual fisionomia humana, social e cultural do
país. António Carreira, nos estudos de investigação que efectuou e que
incidiram essencialmente sobre Santiago, socorreu-se de certas e, muitas vezes,
aparentes similaridades da história económica e social dessa ilha com as
realidades do sistema de plantações, existente noutras paragens, para adoptar o
modelo escravocrata na procura do entendimento do fenómeno cabo-verdiano.
Estudos
posteriores seguiram-lhe as pisadas e, hoje, o modelo escravocrata é geralmente
aceite, não obstante as suas múltiplas insuficiências, designadamente as
seguintes:
• Não
explica o que se passou nas outras ilhas
• Não
explica as diferenças fundamentais da sociedade cabo-verdiana actual em relação
a outras sociedades noutras paragens, elas sim tributárias de sistemas
escravocratas:
• Não
explica a unidade orgânica Cultural de todo o povo cabo-verdiano.
Pelo
contrário,
pode e já foi usado para
• dividir o
país em uma parte, vista como berço ou matriz da entidade cabo-verdiana
– a ilha de
Santiago, ou um dos seus concelhos –, e outras partes, dadas como assimiladas,
na linguagem de alguns, em que os elementos salientes da matriz mostram-se mais
ou menos abotoados ou ligados a elementos importados do estrangeiro;
• Criar
dicotomias artificiais entre regiões do país na base de preponderância do
factor africano ou do factor europeu;
• Introduzir
elementos valorativos de pureza e/ou de falta de pureza do que é cabo-verdiano;
• Justificar
caracterizações da população cabo-verdiana, encontradas em enciclopédias e
outros livros de referência por esse mundo fora, que nos dividem em 71% de
crioulos ou mulatos, 28% de negros e 1 % de brancos.
Impõe-se,
portanto, encontrar um modelo da génese da entidade e da identidade cabo-verdiana
que resista ao teste dos factos, que permita antecipar os obstáculos na
mobilização do capital social necessário para vencer o desafio do
desenvolvimento e que seja um instrumento poderoso de reforço da Nação cabo-verdiana.
Da análise
dos documentos históricos sobre Cabo Verde, o que salta à vista não é o facto
de haver escravos (escravos havia por toda a parte) ou que se procurasse
instalar um sistema escravocrata no arquipélago. O que chama a atenção é,
precisamente o falhanço completo dessas tentativas e a
emergência, imediatamente a seguir, de um novo ser cultural, vibrante de vida e
armado de uma língua própria, cujo protagonismo para além das ilhas, mesmo no
século XVI, deixou marcas ainda visíveis na língua falada na Casamansa, na
Guiné-Bissau, e, do outro lado do Atlântico, na ilha de Curaçau.
Pode-se,
pois, afirmar que a entidade cabo-verdiana surgiu e vingou no terreno
prenhe de possibilidades, deixado pelos colapsos sucessivos das tentativas de
estruturação da economia de Cabo Verde com base em sistemas escravocratas.
A
fragilização e o colapso do sistema económico escravocrata abria caminho para
experimentações humanas e sociais. A dinâmica que tais experimentações
conseguiam adquirir variava de lugar para lugar, de região para região e de
ilha para a ilha e dependia da força relativa dos elementos inibidores no meio
circundante. Condicionavam especialmente essas experimentações a estrutura da
propriedade existente no sítio, a presença forte do poder administrativo, o
nível de recursos naturais na ilha ou na região e as características do fluxo
de novos escravos que se conduzia para aí. Todas essas experimentações vieram
revelar uma ligação orgânica profunda que lhes permitia reforçarem-se
mutuamente, apesar do seu distanciamento geográfico, e assumirem-se como os
preconizadores de uma entidade cultural única em todo o arquipélago.
A miscigenação,
que acompanhou, a par e passo, tais experimentações, provocou um salto
qualitativo na consciência de si próprio do cabo-verdiano: não se reconhecia em
qualquer das raças estabelecidas e não se sentia compelido a pertencer ou a
aproximar-se delas. Termos como branco, na linguagem comum, passaram a ter um
outro significado que não a cor da pele ou a designação de raça.
A cabo-verdianidade,
que ia emergindo, afirmava-se como uma entidade cultural a par da entidade
portuguesa, que lhe servira de matriz; isto é ilustrado, de forma, clara e
inequívoca, na dinâmica da própria língua crioula que, rapidamente, se
constituiu na língua materna do novo ente cultural, excluindo qualquer outra e,
particularmente, a língua portuguesa.
A
universalidade do fenómeno cabo-verdiano no espaço do arquipélago
manifestava-se no facto de tocar e afectar todas as classes sociais e na forma
como absorvia pessoas que, vindas de outras paragens, se fixaram nas ilhas. Tal
sucesso testemunhava a força vibrante, criadora e sustentada que irrompia,
quando as relações sociais prevalecentes se desmoronavam sob o impacto das
fomes, da diminuição da actividade mercantil, da perda de receitas aduaneiras
e, ainda, dos ataques dos piratas.
Mas as
experimentações, que se iam verificando, aqui e acolá, nas diferentes ilhas,
não conseguiriam prevalecer no ambiente socioeconómico envolvente, nem teriam a
possibilidade de coalescer no fenómeno global da cabo-verdianidade se a
trajectória seguida na evolução da vida do arquipélago, ao longo dos séculos,
não fosse uma linha muito fina entre a vida e a morte. Do facto só se pode
retirar esta constatação: o cabo-verdiano é o produto cultural de uma
existência no limiar da sobrevivência.
As
situações-limites, vividas anos sem conta, em consequência das secas
devastadoras, que lançavam milhares para morte, e da ausência de alternativas
sustentáveis para a economia do arquipélago, induziram plasticidade nas
relações humanas existentes e despoletaram muita imaginação e criatividade na
construção de novas relações entre os indivíduos e entre estes e o meio
circundante. A entidade cultural ímpar que é o cabo-verdiano poderia emergir,
mas não sem passar por um parto longo e extremamente doloroso.
Pode-se
tomar o abandono da cidade de Ribeira Grande como início dessa longa caminhada
para a emergência e a consolidação da cabo-verdianidade. Sem a actividade
mercantil da cidade, a única alternativa à actividade agro-pecuária desaparecia
e não havia mais importação de factores potencialmente atentatórios à
experimentação, que se verificava nas ilhas. Talvez, por isso, a memória
colectiva dos cabo-verdianos não regista, nem demonstra nostalgia e, muito
menos, canta a perda dessa cidade, sendo para todos uma cidade dos portugueses,
que ficou para trás na memória dos tempos.
As gentes
das ilhas, deixadas, à sua sorte, souberam estabelecer canais múltiplos de
comunicação através dos quais partilhavam informações sobre o esforço titânico
que todas e cada uma vinham desenvolvendo na libertação de relações sociais
preestabelecidas e na construção de uma existência mais em
consonância com o ambiente envolvente e mais solidária nas dificuldades
extremas. Os frutos desse diálogo de séculos manifestaram-se de forma
exuberante quando, pela primeira vez, a sociedade rural cabo-verdiana se
urbanizou e criou a sua primeira cidade – Mindelo, em S. Vicente.
O efeito de
cidade que S. Vicente exerceu sobre todo o arquipélago foi demonstrativo da
autenticidade e da universalidade das diferentes formas de expressão que vinham
sendo criadas, de forma aparentemente isolada, em cada ilha. A interacção
dessas expressões no ambiente cosmopolita de cidade deu às contribuições
separadas de cada ilha uma amplitude e uma abrangência que provocou no povo do
arquipélago o reconhecimento de si próprio e que permitiu-lhe visionar a
dimensão exacta do seu património cultural.
A morna é o
exemplo mais espectacular disso tudo. Criado na Boavista, adquiriu maturidade
na Brava com Eugénio Tavares e, levado para S. Vicente, atingiu foros de
universalidade, afirmando-se como a música dos cabo-verdianos. Hoje, a Cesária
vem confirmando isso perante plateias de todos os continentes.
Desde a
independência nacional que um segundo round de urbanização se está
a verificar em direcção à cidade da Praia, participando nela gente vinda de
todos os pontos do país, mas particularmente do interior de Santiago. A
criação, e o desenvolvimento da Capital da Nação está a ser acompanhada,
também, de uma exuberância cultural, com particular destaque para formas
culturais que, até agora, têm sido específicas do interior da ilha de Santiago.
O país inteiro está à espera de enriquecer o seu património cultural com as
contribuições que naturalmente resultarão da interacção dessas formas de
expressão no novo espaço urbano.
Da
compreensão da dinâmica das ilhas na forja do cabo-verdiano, avançada pelo novo
modelo, chega-se a conclusão que, para o bem de Cabo Verde, é preciso aumentar
os canais de comunicação, desenvolver plataformas comuns de acção e explorar
sinergias possíveis entre elas. O maior crime que se pode cometer contra cada
uma delas e contra Cabo Verde é governar ou administrar as ilhas como se de
mundos à parte se tratassem.
O novo
modelo ajuda a descortinar caminho a seguir na afirmação do carácter único de
Cabo Verde no mundo e, ao mesmo tempo, propicia, a cada cabo-verdiano, os
elementos para, tranquilamente, se ver e se orgulhar da sua identidade e do seu
património cultural. As dúvidas, resultantes de raciocínios extremados de
certas pessoas que, fazendo uso do modelo de Carreira, questionam a própria
existência da cabo-verdianidade e acusam o cabo-verdiano de racista em relação
aos negros africanos, mostram-se sem nenhum suporte quando vistas à luz do novo
modelo.
Atitudes
racistas nunca tiveram grande expressão em Cabo Verde e, de qualquer forma, as
que existiam viram-se superadas na forja do cabo-verdiano. Reacções de
estranheza só podem ser de natureza cultural e civilizacional. Não se pode
esquecer que o cabo-verdiano é cristão e toda a sua forma de ver a si próprio e
ao mundo baseia-se na tradição cristã, mostrando, naturalmente, alguma
dificuldade em funcionar com pessoas com uma outra filosofia de vida ou com
outras tradições e crenças religiosas.
A adopção do
modelo, que postula a emergência da entidade cabo-verdiana a partir de uma
existência no limiar da própria sobrevivência, leva não só à compreensão de
certas características muito peculiares e únicas do cabo-verdiano como também a
assumir que tais situações extremas terão criado handicaps graves
na sociedade. Muitos dos problemas, com que a sociedade hoje se depara na sua
marcha para a modernidade (ausência, nas pessoas, de espírito de equipa, de
espírito associativo e de espírito cívico; incapacidade geral das organizações
sociais em ganhar autonomia e promover o surgimento da sociedade civil;
deficiências na instalação e na maturação organizacional de instituições
sociais e de instituições do Estado; dificuldades surpreendentes no
desenvolvimento do sentido do interesse geral e do interesse público; pobreza
do exercício do poder do Estado) poderão ter as suas raízes nos referidos handicaps.
É
fundamental que nos saibamos munir de instrumentos conceptuais adequados à
compreensão da complexidade da emergência e da existência da entidade cabo-verdiana.
O desenvolvimento do país depende da construção de uma visão, a partir da qual
se possa fazer a mobilização e congregação do esforço cabo-verdiano na
realização do sonho de gerações: Cabo Verde orgulhoso das suas origens
e do seu destino e triunfante sobre as fatalidades da sua existência.
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