Por João Filipe Duarte Fonseca - Vulcanólogo e Professor Universitário
Com frequência se ouve afirmar que o
principal recurso de Cabo Verde é o seu povo. Numa primeira leitura essa
afirmação pode aparentar uma carga fatalista, destinando-se a salientar a
escassez de recursos naturais e as condições ambientais adversas. Mas a
aceleração das sociedades em direcção à Economia do Conhecimento dilui essa
conotação negativa, já que o capital humano é hoje encarado a nível global como
o determinante central do qual derivam valor todas as outras formas de capital,
seja natural, tecnológico, financeiro ou cultural.
E é universalmente reconhecido que
a sustentabilidade do desenvolvimento depende criticamente do conhecimento
profundo da realidade ambiental e social, assim como da criatividade e da
capacidade de inovação disponíveis em cada sociedade.
Por outras palavras, o século 21 trouxe
consigo uma visão radicalmente nova do papel da ciência na sociedade. Se na
década de 60 do século passado ainda era possível defender a “República da
Ciência”, onde “qualquer tentativa de orientar a investigação científica para
um objectivo que não seja o seu próprio é uma tentativa de obstruir o progresso
da ciência” (Polianyi, 1962), actualmente o foco incide sobre a “Ciência
da Res Publica“, como se depreende da seguinte passagem no sítio da
UNESCO: “A ciência é o nosso maior desígnio colectivo. Contribui para assegurar
vidas mais longas e saudáveis (…) proporciona acesso a água, alimentos e
energia para as nossas necessidades básicas, aumenta a nossa qualidade de vida.
E além disso alimenta os nossos espíritos” (https://en.unesco.org/themes/science-society; adaptado). Neste contexto de mudança
de paradigma a nível global, é oportuno reflectir sobre o potencial papel da
ciência no desenvolvimento sustentável de Cabo Verde.
À data da independência nacional, a taxa
de analfabetismo no país era de 63%, passando a 49% em 1980, 20% em 2007 e 11%
em 2022 (dados do World Bank). Estes números falam do
impressionante sucesso das medidas adoptadas a seguir à independência para a
promoção do acesso ao ensino básico. Como é natural, esta assunção de
prioridades remeteu para uma fase posterior a aposta no Ensino Superior, sendo
as necessidades da administração pública e dos serviços supridas por formação
no exterior, e em alguns sectores críticos por um conjunto de escolas
superiores não universitárias (Escola de Formação de Professores, ISECMAR,
etc). Só no advento do século 21 se verificou um salto qualitativo no sentido
da implantação de um conjunto de universidades públicas e privadas, outro
processo saldado por números impressionantes: entre 2000 e 2010, o aumento de
ingressos no Sistema de Ensino Superior de Cabo Verde foi de 1570% (Cardoso,
2017). Contudo, dada a sua juventude, o processo de construção do Sistema de
Ensino Superior de Cabo Verde deve ser encarado ainda como um trabalho em
curso, e é oportuno refletir sobre o que falta fazer.
A nível global, reconhece-se hoje que a
missão do Ensino Superior é tripla: 1) ensino e aprendizagem; 2) investigação
científica; e 3) ligação à comunidade. Por outras palavras, a universidade não
está completa se não incluir uma significativa componente de investigação
científica, e se estiver alheada dos desafios da sociedade. Um primeiro passo
nesse sentido – designado por Primeira Revolução Académica – ocorreu ainda no
século 19, e conduziu ao modelo da “Torre de Marfim” onde os cientistas
produziam novo conhecimento independentemente da sua utilidade prática. Foi
apenas nas últimas décadas do século 20 que o foco da investigação científica
passou a incluir forçosamente, porque as sociedades assim o exigiram, a
utilização do conhecimento para a resolução dos desafios colectivos, evolução que
ficou conhecida como a Segunda Revolução Académica (Etzkowitz, 2001). Com a
excepção de alguns nichos onde impera uma elevadíssima exigência, espera-se que
o conhecimento produza propriedade intelectual e conduza à inovação, e a
terceira dimensão da missão do Ensino Superior – ligação à comunidade – é cada
vez mais entendida (goste-se ou não) como interação entre as universidades e o
sector produtivo com vista a contribuir para o desenvolvimento económico e sua
sustentabilidade.
No caso de Cabo Verde, seria ilusório pensar que o
Sistema de Ensino Superior, com duas décadas de
existência, se encontra já equipado para corresponder plenamente aos exigentes
requisitos do desenvolvimento sustentável. Na verdade, se o progresso da oferta
formativa tem sido notável, é forçoso reconhecer que a produtividade científica
está ainda muito aquém do desejável. Tomando como referência o número de
publicações científicas em revistas internacionais – o padrão internacional
para este tipo de avaliação – segundo os números do World Bank Cabo
Verde apresenta a menor produtividade científica (média do período 2014-2018)
de toda a CEDEAO, como se vê na figura. Mesmo corrigindo com o número de
habitantes, Cabo Verde fica-se por 17 publicações por ano e por milhão de
habitantes, valor comparável aos do Benim (15) ou da Gâmbia (17), mas inferior
ao do Gana (29), e muito inferior aos valores do Egipto (100) ou da África do
Sul (199). Israel – famoso pela escassez de recursos naturais, mas que apostou
no seu capital humano – atinge 1301 publicações científicas por ano e por
milhão de habitantes. O atraso de Cabo Verde pode, contudo, ser transformado em
vantagem, se se souber aprender com a experiência alheia para fazer o
“dois-em-um” da revolução académica: criar de raiz, em sintonia com o novo
paradigma da Sociedade do Conhecimento, um sistema de investigação científica
Cabo-Verdiano alinhado com as exigências do desenvolvimento socioeconómico do
país nesta etapa do seu percurso histórico, e que se constitua como seu
principal motor.
A intenção – recentemente anunciada pela
Secretaria de Estado do Ensino Superior – de criar uma fundação para apoiar a
ciência, a inovação e o desenvolvimento tecnológico nas universidades e nos
centros de investigação não académicos tem o potencial de colocar Cabo Verde
nesse caminho. A ausência de uma instituição com essas características leva a
que se percam oportunidades preciosas. A título de exemplo, em 2015 a
Cooperação do Canadá promoveu a criação de uma parceria de todas as fundações
financiadoras de ciência da África Sub-Sahariana (Science Granting Councils
Initiative - SGCI) com o intuito de reforçar as suas capacidades de apoio
ao desenvolvimento socioeconómico. A iniciativa reúne actualmente 17 fundações
de outros tantos países, e atraiu, entretanto, apoios adicionais das
cooperações da Suécia, do Reino Unido e da Alemanha. A inexistência de uma
instituição de âmbito nacional que apoie a investigação científica impede que
Cabo Verde beneficie deste tipo de oportunidade.
Desfeitas as veleidades dos académicos
da “República da Ciência”, a investigação científica deve ser encarada hoje não
como um luxo de países ricos, mas sim como uma alavanca indispensável para o
desenvolvimento sustentável, guiada para esse objectivo através de programas de
financiamento alinhados com as grandes opções do plano estratégico nacional.
Ganha que está a batalha do ensino e aprendizagem, urge que Cabo Verde
disponibilize ao seu Sistema de Ensino Superior e aos Laboratórios do Estado os
mecanismos de apoio à investigação científica que lhes permitam contribuir para
o desígnio nacional de criar conhecimento útil para a melhoria das condições de
vida dos seus cidadãos.
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das Ilhas nº 1113 de 29 de Março de 2023.
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