Ciência, a alavanca que falta para o desenvolvimento sustentável de Cabo Verde

terça-feira, 11 de abril de 2023

 


 Por João Filipe Duarte Fonseca -  Vulcanólogo e Professor Universitário

Com frequência se ouve afirmar que o principal recurso de Cabo Verde é o seu povo. Numa primeira leitura essa afirmação pode aparentar uma carga fatalista, destinando-se a salientar a escassez de recursos naturais e as condições ambientais adversas. Mas a aceleração das sociedades em direcção à Economia do Conhecimento dilui essa conotação negativa, já que o capital humano é hoje encarado a nível global como o determinante central do qual derivam valor todas as outras formas de capital, seja natural, tecnológico, financeiro ou cultural.

 E é universalmente reconhecido que a sustentabilidade do desenvolvimento depende criticamente do conhecimento profundo da realidade ambiental e social, assim como da criatividade e da capacidade de inovação disponíveis em cada sociedade.

Por outras palavras, o século 21 trouxe consigo uma visão radicalmente nova do papel da ciência na sociedade. Se na década de 60 do século passado ainda era possível defender a “República da Ciência”, onde “qualquer tentativa de orientar a investigação científica para um objectivo que não seja o seu próprio é uma tentativa de obstruir o progresso da ciência” (Polianyi, 1962), actualmente o foco incide sobre a “Ciência da Res Publica“, como se depreende da seguinte passagem no sítio da UNESCO: “A ciência é o nosso maior desígnio colectivo. Contribui para assegurar vidas mais longas e saudáveis (…) proporciona acesso a água, alimentos e energia para as nossas necessidades básicas, aumenta a nossa qualidade de vida. E além disso alimenta os nossos espíritos” (https://en.unesco.org/themes/science-society; adaptado). Neste contexto de mudança de paradigma a nível global, é oportuno reflectir sobre o potencial papel da ciência no desenvolvimento sustentável de Cabo Verde.

À data da independência nacional, a taxa de analfabetismo no país era de 63%, passando a 49% em 1980, 20% em 2007 e 11% em 2022 (dados do World Bank). Estes números falam do impressionante sucesso das medidas adoptadas a seguir à independência para a promoção do acesso ao ensino básico. Como é natural, esta assunção de prioridades remeteu para uma fase posterior a aposta no Ensino Superior, sendo as necessidades da administração pública e dos serviços supridas por formação no exterior, e em alguns sectores críticos por um conjunto de escolas superiores não universitárias (Escola de Formação de Professores, ISECMAR, etc). Só no advento do século 21 se verificou um salto qualitativo no sentido da implantação de um conjunto de universidades públicas e privadas, outro processo saldado por números impressionantes: entre 2000 e 2010, o aumento de ingressos no Sistema de Ensino Superior de Cabo Verde foi de 1570% (Cardoso, 2017). Contudo, dada a sua juventude, o processo de construção do Sistema de Ensino Superior de Cabo Verde deve ser encarado ainda como um trabalho em curso, e é oportuno refletir sobre o que falta fazer.

A nível global, reconhece-se hoje que a missão do Ensino Superior é tripla: 1) ensino e aprendizagem; 2) investigação científica; e 3) ligação à comunidade. Por outras palavras, a universidade não está completa se não incluir uma significativa componente de investigação científica, e se estiver alheada dos desafios da sociedade. Um primeiro passo nesse sentido – designado por Primeira Revolução Académica – ocorreu ainda no século 19, e conduziu ao modelo da “Torre de Marfim” onde os cientistas produziam novo conhecimento independentemente da sua utilidade prática. Foi apenas nas últimas décadas do século 20 que o foco da investigação científica passou a incluir forçosamente, porque as sociedades assim o exigiram, a utilização do conhecimento para a resolução dos desafios colectivos, evolução que ficou conhecida como a Segunda Revolução Académica (Etzkowitz, 2001). Com a excepção de alguns nichos onde impera uma elevadíssima exigência, espera-se que o conhecimento produza propriedade intelectual e conduza à inovação, e a terceira dimensão da missão do Ensino Superior – ligação à comunidade – é cada vez mais entendida (goste-se ou não) como interação entre as universidades e o sector produtivo com vista a contribuir para o desenvolvimento económico e sua sustentabilidade.

No caso de Cabo Verde, seria ilusório pensar que o Sistema de Ensino Superior, com duas décadas de existência, se encontra já equipado para corresponder plenamente aos exigentes requisitos do desenvolvimento sustentável. Na verdade, se o progresso da oferta formativa tem sido notável, é forçoso reconhecer que a produtividade científica está ainda muito aquém do desejável. Tomando como referência o número de publicações científicas em revistas internacionais – o padrão internacional para este tipo de avaliação – segundo os números do World Bank Cabo Verde apresenta a menor produtividade científica (média do período 2014-2018) de toda a CEDEAO, como se vê na figura. Mesmo corrigindo com o número de habitantes, Cabo Verde fica-se por 17 publicações por ano e por milhão de habitantes, valor comparável aos do Benim (15) ou da Gâmbia (17), mas inferior ao do Gana (29), e muito inferior aos valores do Egipto (100) ou da África do Sul (199). Israel – famoso pela escassez de recursos naturais, mas que apostou no seu capital humano – atinge 1301 publicações científicas por ano e por milhão de habitantes. O atraso de Cabo Verde pode, contudo, ser transformado em vantagem, se se souber aprender com a experiência alheia para fazer o “dois-em-um” da revolução académica: criar de raiz, em sintonia com o novo paradigma da Sociedade do Conhecimento, um sistema de investigação científica Cabo-Verdiano alinhado com as exigências do desenvolvimento socioeconómico do país nesta etapa do seu percurso histórico, e que se constitua como seu principal motor.

A intenção – recentemente anunciada pela Secretaria de Estado do Ensino Superior – de criar uma fundação para apoiar a ciência, a inovação e o desenvolvimento tecnológico nas universidades e nos centros de investigação não académicos tem o potencial de colocar Cabo Verde nesse caminho. A ausência de uma instituição com essas características leva a que se percam oportunidades preciosas. A título de exemplo, em 2015 a Cooperação do Canadá promoveu a criação de uma parceria de todas as fundações financiadoras de ciência da África Sub-Sahariana (Science Granting Councils Initiative - SGCI) com o intuito de reforçar as suas capacidades de apoio ao desenvolvimento socioeconómico. A iniciativa reúne actualmente 17 fundações de outros tantos países, e atraiu, entretanto, apoios adicionais das cooperações da Suécia, do Reino Unido e da Alemanha. A inexistência de uma instituição de âmbito nacional que apoie a investigação científica impede que Cabo Verde beneficie deste tipo de oportunidade.

Desfeitas as veleidades dos académicos da “República da Ciência”, a investigação científica deve ser encarada hoje não como um luxo de países ricos, mas sim como uma alavanca indispensável para o desenvolvimento sustentável, guiada para esse objectivo através de programas de financiamento alinhados com as grandes opções do plano estratégico nacional. Ganha que está a batalha do ensino e aprendizagem, urge que Cabo Verde disponibilize ao seu Sistema de Ensino Superior e aos Laboratórios do Estado os mecanismos de apoio à investigação científica que lhes permitam contribuir para o desígnio nacional de criar conhecimento útil para a melhoria das condições de vida dos seus cidadãos. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1113 de 29 de Março de 2023.

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