Por Adriano Miranda Lima
O
ambiente social de instabilidade e conflitualidade que vem caracterizando o
país desde o último governo de maioria absoluta só é equiparável aos tempos do
PREC. Nesse já longínquo ano de 1975, uma alterosa onda reivindicativa envolveu
o sector público e o privado, e, em meio ao desconchavo revolucionário
espoletado por facções extremistas, destruiu o aparelho produtivo. Hoje, há
quem pense que uma atitude mais ponderada e de teor reformista, ao invés da
convulsão social, teria evitado dois anos mais tarde o recurso ao FMI, além de
muitos amargos de boca.
Regressando
à premissa inicial, houve duas circunstâncias fundamentais que ora concorreram
para a instabilidade social que não seria previsível e menos ainda consentânea
com a estabilidade política que o governo de maioria absoluta só por si devia
garantir. Primeira circunstância: a ideia, partilhada pelos sindicatos em
geral, de que os governos do Partido Socialista proporcionam a ocasião mais
favorável para toda a sorte de reivindicações, por tratar-se de partido
tolerante e programaticamente virado para a distribuição de rendimentos, fiel à
sua política de justiça social e de promoção da igualdade de direitos. Segunda
circunstância: a ilusão pacóvia, ou então insidiosa, de que o Plano de
Recuperação e Resiliência (PRR) seria gerador de recursos para toda a
reivindicação, desde que esta orquestrada com clamor público e
instrumentalizada com greves constantes e convenientemente mediatizadas pelos
canais televisivos. Pouco importa se o PRR é um instrumento estratégico
comunitário destinado exclusivamente a implementar um conjunto de reformas e de
investimentos visando a competitividade da economia e a sua resistência a
vicissitudes futuras, como foi a última pandemia e os efeitos das guerras em
curso.
Nesta
transição para o próximo pleito eleitoral, perduram ainda os ecos do alvoroçado
rodopio reivindicativo e grevista do sector público. Uns, com alguma razão, se
comparada a degradação do seu nível remuneratório com a de outras classes
profissionais equivalentes em grau de formação académica e em importância
institucional e social. É o caso da classe docente.
Outros
sectores, como o dos servidores do Serviço Nacional de Saúde (SNS), sob a égide
dos respectivos sindicatos e ordens profissionais, foram como o gato escondido
com o rabo de fora, ao alardearem defender aquele serviço público quando a
motivação era claramente o seu estatuto remuneratório e outras regalias.
Algumas máscaras que caíram do rosto de ex-bastonários e sindicalistas
mostraram que afinal há “portas giratórias” entre a oposição política e certos
interesses corporativos. Excedeu a mais pura hipocrisia querer convencer a
nação de que a reabilitação do SNS era o seu único móbil e não a defesa do
sector privado da saúde.
Os
magistrados, esses, não terão qualquer razão para reivindicar outra coisa senão
a reforma da Justiça, porque são a classe a anos-luz distanciada em matéria
remuneratória, sendo escandalosa a forma como, sem razão plausível, se
diferenciaram de outras classes a que estiveram desde sempre equiparados. Em
1980, um magistrado auferia uma remuneração equivalente à de um coronel das
Forças Armadas e hoje é mais do dobro. Basta consultar as listas dos
aposentados da CGA para o comprovar. E são os únicos privilegiados com subsídio
de habitação, mesmo com casa própria onde exercem as suas funções, e com a
particularidade de o valor desse subsídio ser integrado na pensão de
aposentação, caso único no Estado. E acresce frisar que enquanto um coronel
atinge este posto em final da carreira, e após a frequência de cursos de
formação sucessivos a seguir à licenciatura inicial, um magistrado ascende a
esse nível remuneratório no decurso ou a meio da carreira. Como exemplo, e
passe a declaração de interesse, se qualquer das minhas filhas, em vez de
docentes do ensino secundário, fossem magistradas, ganhariam hoje o dobro do
pai, que arriscou a vida em duas guerras do Ultramar, sujeitando-se a arruinar
a saúde por submissão a agruras, intempéries e condições de vida insalubres,
passando pelas vicissitudes de uma revolução, e só atingindo o último posto no
fim da carreira.
Ao
citar esse exemplo comparativo, vem a propósito a questão do risco profissional
e desde logo a actual reivindicação do respectivo subsídio que tem sido a luta
infrene das forças de segurança. Não se discute o seu legítimo direito. O
incompreensível é esse subsídio ter sido consideravelmente aumentado para a PJ,
sem ser equacionado no conjunto global das forças de segurança. Pode ser factor
ponderoso o diferencial de qualificações profissionais e académicas entre uns e
outros, mas não a problemática do risco. Pode-se também considerar que a enorme
disparidade de efectivos entre uns e outros representa um encargo permanente à
partida incomportável para o erário público.
E
novamente por concatenação vem o estatuto remuneratório das Forças Armadas. As
suas associações cívicas já anunciaram que, se houver atribuição do subsídio no
montante que as forças de segurança reivindicam, os militares ponderarão ir
pela mesma via de contestação maciça a que se tem assistido com milhares de
polícias nas ruas, desprestigiando a instituição a que pertencem e transpondo
limites que raiam a insurreição. Ora, os militares têm razão com a sua
advertência, porque a atribuição do valor do subsídio de risco reivindicado
colocaria um guarda da PSP ou da GNR a auferir uma remuneração semelhante se
não mesmo superior à de um capitão das Forças Armadas. Mas no dia em que os
meus camaradas de armas saíssem para a rua ensaiando o mesmo espectáculo ridículo
e indecoroso a que se têm permitido os polícias, eu sentiria vergonha da farda
que honradamente enverguei durante 40 anos servindo Portugal com risco da
própria vida.
O
efeito dominó da devassa reivindicativa não tem precedentes e é contagiante, a
ponto de até os bombeiros se terem também manifestado a exigir carreiras
profissionais e vencimentos condizentes com o risco da sua atividade. Outras
mais classes profissionais estarão em lista de espera, a aguardar que o governo
que abra os cordões à bolsa dê o sinal de partida para o descalabro final em
que o país pode cair. Até podem reaparecer os antigos guardas nocturnos a
reivindicar ao Estado o pagamento de retroactivos pelos riscos a que outrora se
submeteram.
Não
haja ilusão. O país parece ter ficado à deriva depois do golpe palaciano que a
Procuradora-Geral e o Ministério Público engendraram e com que fizeram derrubar
o governo da República e o da região Autónoma da Madeira. Entretanto, o
turbilhão da campanha eleitoral que o país não desejava nem esperava segue o
seu curso, e as promessas eleitorais inscrevem-se sem contenção, com cada actor
político à procura do pedestal em que melhor sobressaia. O que intriga, ou
talvez não, é estar arredado do discurso político estas 3 realidades basilares
e incontornáveis:
− A
economia nacional não gera riqueza para acudir a todas e quaisquer exigências
salariais, senão com um crescimento real e sustentado que, atento ao princípio
de igualdade e justiça social, possa contemplar os que têm voz reivindicativa
como os que não a têm;
− A Europa está em guerra e o tema da Defesa
nacional e das Forças Armadas, desde há décadas relegado para a mais indigente
das prioridades nacionais, nem assim pontifica no discurso nacional, como se
fosse um tabu. É preciso consciencializar-se que o reforço do orçamento da
Defesa Nacional implica sacrifícios, mas justificáveis porque nada é mais
valioso que a vida e a segurança dos povos, como hoje no-lo dizem com lágrimas
de sangue os ucranianos;
− A
Justiça, como o demonstra os seus servidores ou ex-servidores mais experientes
e credenciados, carece de uma urgente reorganização, sob pena de graves
entorses no funcionamento do Estado de Direito Democrático. Também ela, a
Justiça, parece um tabu; e escuso especular sobre as reais razões que o possam
explicar.
As
próximas eleições legislativas são uma oportunidade de escolha e de
clarificação. É um momento crucial. É bom que ninguém se abstenha e que o povo
abra os olhos e diga claramente o caminho que quer seguir. Se quer continuar
livre e senhor do seu destino ou se quer ir na cantiga dos vendedores de banha
de cobra que de um momento para outro parecem conquistar auditórios.
Nota:
Escreve conforme a ortografia anterior ao AO
90.
Obs.: Texto publicado no jornal "Templário" de Tomar
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