A confusão que actualmente reina no interior do PAICV é inquietante. Não por amor e simpatia ou ódio e antipatia por esse partido. Longe disso. Trata-se de um problema de Estado. Porque se encontra na praça pública e é protagonizada por governantes e altos dirigentes do Estado. Não sendo por isso apenas uma questão interna circunscrita aos militantes, mas de toda a sociedade cabo-verdiana.
É deprimente o espectáculo que se vem assistindo das acusações que partem de “tocas” ou do “esgoto” para as “casas de saúde” ou “manicómios”, isto é de “ratos e ratazanas” para “esquizofrénicos e loucos”, ou vice-versa, passando por “répteis” e “mamíferos” insinuando a constituição de um verdadeiro zoo como palco predilecto desses ilustres figurantes. É esta a conformidade da linguagem que se vem utilizando.
A troca de mimos entre os apoiantes de ARL e os de JMN não augura um bom começo de legislatura nem garante a expectativa de tranquilidade de uma maioria absolutamente necessária para atravessar a crise real e global existente.
Mas porquê ARL e JMN e não ARL e MIS? Porque a “guerra” é entre quem personifica a “rebelião” orgânica e quem compete defender os estatutos, e não entre candidatos (ainda não começou) como aparentemente se quer fazer crer.
Mas é preciso situar a origem desta polémica para a compreender. Para que a culpa não morra solteira ou malcasada.
Nasceu (eventualmente precipitou-se) para ARL em S. Martinho num almoço/convívio “encomendado” que outro fim não tinha (ou não teve) do que “antecipar”, pretendendo colocar JMN sob um facto consumado, para anular o eventual apoio ao espectro de uma candidatura que se perfilava com fortes possibilidades desse apoio pelo PAICV, não do MIS mas de um outro putativo candidato da mesma área político-partidária.
A jogada teve e tem um mentor bem identificado que se mantém escondido, encolhido, quedo e mudo para evitar que dele se fale. E JMN que de tolo nada tem, compreendeu e descodificou de imediato o jogo, reagiu publicamente de forma agressiva (como é seu hábito) e incisiva apontando o dedo e mostrando que é ele o presidente do partido e não outro.
No seguimento, JMN, terá accionado a sua máquina partidária. “Ignorou” a eventualidade da candidatura visada com o almoço/convívio e “providenciou” uma outra do aparelho e, logicamente, próxima dele, com fortes possibilidades de vencer internamente por que de um alto dirigente se tratava com visíveis serviços prestados. Jogava em dois tabuleiros, com propósitos diferentes. Agiu de acordo com os Estatutos do PAICV que estabelecem na alínea e) do nº 2 do seu artigo 48º como competência do Conselho Nacional “Aprovar as propostas de apoio a uma candidatura a Presidente da República e designar o candidato a Primeiro-Ministro” levando os candidatos a submeterem a aprovação das suas candidaturas mediante a apresentação de um projecto do seu exercício da função presidencial.
O órgão máximo – Conselho Nacional – entre dois congressos, portanto colectivo e acima do próprio presidente, para os militantes é insuspeito, e as suas deliberações também o deviam ser para o credibilizar e ao próprio partido.
A questão da desobediência, ou não, de ARL é de foro partidário; e pouco interessaria à sociedade civil não fosse o caso, não de solicitar um apoio mas o de submeter o seu projecto a aprovação do partido que foi rejeitado, ao que se diz, por uma expressiva maioria de votos. Isto significa que a sua candidatura é intencional e aprioristicamente partidária – de uma facção que se julga maioritária e, por isso, se sente injustiçada pelas regras do jogo que acusa de viciadas sem contudo recorrer.
A atitude de ARL seria legítima e até podia ser bem entendida não se tratasse do caso de ele ser um ex-presidente do partido a que continua estranhamente amarrado, por questões estratégicas ou de falta de confiança pessoal e coragem o que o impede de personificar uma verdadeira “candidatura da cidadania” com o sentido que lhe quer atribuir. O seu comportamento fragiliza o seu partido e descredibiliza-o totalmente. E não é prestigiante para ele, pela polémica que envolve.
Mas não confundamos as coisas. A “guerra” não é entre ARL e MIS. Estes são, tão-somente, ilustres representantes dos residentes dos Palácios do Plateau e da Várzea na sua guerra sisuda e fratricida. Todos os outros que por aí saltitam, salvo uma ou outra honrosa excepção, não passam de peões de brega. Ou mesmo figurantes que aproveitam a oportunidade para se porem em bicos dos pés e simularem uma altura e envergadura que na realidade não têm, insinuando-se directa ou indirectamente delfins. Usando, com todo o respeito, uma metáfora corriqueira: Respondem à voz do dono.
Nem MIS nem ARL avançou só porque o quis. Tiveram ambos o aval dos seus mentores. Destes, um escudado no funcionamento orgânico do seu partido que bem soube manobrar, o outro compelido pelas joguetanas que alimentam os seus ódios e vinganças políticas de que é um exímio e compulsivo artífice. Por detrás de tudo isto, também deverá estar o malfadado “Dinheiro de Angola” (porventura já a circular), que muito tem condicionado o voto dos cabo-verdianos.
Em suma, a polémica existente retira a qualquer das candidaturas protagonizadas pelo PAICV as necessárias condições efectivas para o exercício da função presidencial que os tempos actuais exigem. Estão ambas inquinadas ab initio. Uma com uma expectável excessiva sintonia e “colaboração” (não confundir com cooperação que é função presidencial) com o Governo e outra ressabiada e, eventualmente, vingativa, com fortes indícios de vir a negligenciar a indispensável cooperação estratégica.
É inegável que o PAICV se encontra perante uma crise. Ninguém a pode sonegar mais. Quando dirigentes se declaram publicamente não acatar uma deliberação do seu órgão máximo é uma insubordinação que põe em causa a liderança do partido e o normal funcionamento dos seus órgãos. O grupo de dirigentes que assim age, afronta deliberadamente o seu líder. Põem-se e põem-no à prova.
Neste momento fala-se de congresso e do Parlamento e contam-se as espingardas sem medir as consequências reais para o País. Esquece-se que não é de um partido da oposição que se trata mas do partido que suporta o Governo do País através de uma maioria, numa legislatura que mal começou.
Não se trata de um problema semelhante ao do MpD no passado que tinha uma maioria qualificada e passou a maioria absoluta, mantendo a sua legitimidade de governação. Aqui e agora, o desfazer dessa maioria pode relegar o Grupo Parlamentar do PAICV para o 2º lugar e tornar ilegítima ou mesmo “ilegal” a sua permanência no poder provocando precipitadamente novas e onerosas eleições para as quais o País não está financeiramente preparado.
Mas o PAICV como qualquer pessoa ou instituição tem uma génese, um passado e uma história. Considera-se herdeiro do PAIGC. Tem portanto uma longa história. E não consta do seu código genético a confrontação pública ao líder e às deliberações dos órgãos constituídos. Nem os cismas (vide PAIGC na Guiné-Bissau que nunca o aceitou). Mas sim, no passado, os tradicionais processos sumários e fuzilamentos imediatos.
Os tempos são outros. E estes são marcados, no passado recente (pós-independência), pela purga, pelo rolar de cabeças e pela “caça às bruxas” naquilo que normalmente é apelidado de “clarificação” no interior do partido. Depois sim, tudo voltará a ser como dantes com a declaração de que o partido está cada vez mais unido e coeso.
O JMN está num beco sem saída. O mandato do deputado é pessoal. Ou terá de “engolir” os desafios e os impropérios dos “rebeldes” no Parlamento para evitar que se tornem independentes (pouco provável); ou terá de se demitir dando lugar a um outro líder mais consensual para que o PAICV permaneça no poder; ou terão todos de ficar quietinhos sem fazer qualquer onda. A escolha é difícil para as duas facções.
A verdade é que para o PAICV, as presidenciais tornaram-se mais num desafio tormentoso à sua liderança do que a corrida ao sempre sonhado “um presidente, uma maioria, um governo” permanentemente sugerido nas mensagens dos comícios de PP nas presidenciais de 2001. Esperamos todos que haja já bom senso.
A. Ferreira
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