«O Brumário» e «Derivações do Brumário» de Arménio Vieira. Texto de apresentação dos dois volumes na ilha do Sal.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Apresentar Arménio Vieira é sempre um prazer. Trata-se de um velho e bom amigo, para além de termos sido colegas de trabalho. A acrescentar a isto, é também uma grande honra, trazer ao leitor salense, os dois últimos volumes de poesia de tão grande poeta!

Ora bem, a sua poesia e a sua ficção de há muito ultrapassaram as nossas fronteiras geográficas e culturais e hoje são pertença não só da cultura cabo-verdiana, como da literatura lida, estudada e analisada em Língua portuguesa, no espaço da lusofonia, como ainda traduzidas para outras línguas e culturas.

Costumo dizer que o poeta – galardoado em 2009 com o Prémio Camões (a maior distinção literária instituída para os escritores de Língua portuguesa) – nasceu na cidade da Praia, cabo-verdiano de origem e de vivência e, (aqui também caberia um “mas”) de pena universalista.

Sim, os textos de Arménio Vieira, quer sejam em poemas ou em prosa e esta última é quase sempre poética, fazem jus a este “universal” que existe e que caracteriza o seu ser poeta.

Com efeito, a sua formação poética, cultural e histórica – na minha opinião, opinião aliás, de uma leitora aficionada dos textos – poemas de Arménio Vieira – revela-se quase toda ela “bebida” fundada na cultura dita europeia ocidental. Ele parte da clássica greco-latina, passa e passeia-se (o poeta) pela história e pela literatura europeia, a mais erudita, com ênfase na portuguesa, na francesa russa, inglesa, alemã, entre outras, indo até à americana e, algumas vezes, num jogo simbólico muito peculiar deste poeta, consegue prefigurá-las e contextualizá-las para as ilhas desta “macaronésia” atlântica sempre indecisa e adiada.

A moderna (A actual poesia, dita assim será mais preciso…) poesia em Língua portuguesa deve e muito a este poeta que se dá pelo nome de Arménio Vieira.

Senhor de uma cultura portentosa, Arménio Vieira dá-se ao luxo de “jogar” de “brincar” de construir e de desconstruir também, através de “trocadilhos” poéticos com essa cultura imensa que possui, e que reelabora numa constância e em profundidade, como aliás, prova tudo o que vem escrevendo. No fundo, e à boa maneira dos eleitos, aos quais ele pertence, intelectualmente falando. Os seus textos como que extraem a essência filosófica, desse lastro cultural que o sustenta, como também reflectem a mundividência experimentada e teorizada por um observador de todo especial. Para além de aliar a isso tudo, a poesia que parece que lhe é inata.

Ora é o próprio poeta que dita o «Ser Poeta» na página 91 do Brumário. Pois é, entre o “tempo” ou a ausência dele, no início e no final da “viagem”; com a habilidade tecedeira de uma “aranha”; a beleza da “rosa;” e a (im) precisão de um “número”, simbólicos e alegóricos, assim o poeta cria e escreve o seu poema.

Mas antes, na página 18 do mesmo volume, e em jeito de situar o leitor, o autor faz ou justifica os sujeitos e o destino dos seus versos. Ele prevê o destino dos seus versos. A poesia é o “baralho do poeta” com que “…os loucos tentam o póquer que os salve”.

O poeta munido com estas preciosas “ferramentas” chamemo-las assim, mais a estilística que ele auto-recria em estética própria e original, com isto tudo interligado e interdependente o poeta configura os seus poemas – textos prodigiosamente melódicos e poéticos, que nos deliciam.

Mas o que mais gosto e aprecio neste portentoso poeta, para além desta cultura imensa, é a sua assombrosa capacidade de em quase tudo isto descobrir, ver poesia e transformar em “poésis” no mais abrangente sentido e de forma admirável e maravilhosa!

Na escrita de A. Vieira há também questões de sempre, inquietantes e existenciais com que o poeta nos interpela. A morte por exemplo contida no poema da página 83 do Brumário.

Por outro lado, a poesia de Arménio de tão autêntica e profunda que é, permite-se parodiar, e utilizar amiúde a chamada linguagem de carnaval, da paródia ou a menipeia que ele tão bem desenvolve e aplica na sua linguagem criativa literária. Esta linguagem sobre a qual teorizou e bem Júlia Kristeva, autora curiosamente citada, ou trazida à cena poética pelo poeta num dos textos aqui incluídos no Brumário.

De facto e retomando, há um riso paródico e uma finíssima ironia em muitos textos de Arménio Vieira cujos sentidos porque plurissignificativos residem no tornar comum ou no chamado “destronamento” de quase tudo que é tido por elevado, dogmático ou sério. Repito que fortes influências desta discursividade carnavalesca são visíveis, em muitos dos textos de A. Vieira.

O poeta por vezes, brinca e/ou ironiza com a chamada poesia épica, laudatória que narra em versos, heróis, os seus feitos ou cometimentos bélicos.

Para exemplificar, o texto inserto na página 74 das «Derivações do Brumário» é ilustrativo dessa menipeia.

Em sentido oposto, aquilo que há de elevado e humanamente comovedor nas pessoas, temo-lo bem descrito e sentido em muitos deste poemas narrativos e/ou, dialogados. Apenas uma ilustração disso. O exemplo que achei muito terno, muito afectivo e solidário foi aquele com que Arménio Vieira brindou os mais velhos da literatura e da cultura cabo-verdiana, se quisermos, e generalizada numa palavra, os homens da Claridade. Vamos encontrá-lo exactamente no texto “Bisca Tropical” página 31 das «Variações do Brumário».

Ora bem, com o estilo a que nos habituou, o poeta inscreve nestes dois volumes duas das suas múltiplas dimensões: uma, a de jogador (de xadrez, de lugar cativo e outra, a de crítico de cinema que Arménio Vieira fora outrora. É assim que nos traz à ribalta (através de memórias inscritas nos poemas destes volumes, grandes clássicos e eternas fitas cinematográficas que nos ficaram inesquecíveis, com os nomes dos seus realizadores e dos actores celebrizados pela memória fílmica. Há um trecho muito interessante que é um pequeno documentário ou mesmo, um “take” qual realizador de filme que A. Vieira nos dá na página 93, do «Brumário», intitulado “Post Scriptum”.

Igualmente o poeta é um exímio jogador de xadrez – aqui, simbolicamente transplantado para a escrita poética – que com as suas peças num tabuleiro quase cósmico, nos transporta de forma subtil para um xadrez mais complicado que é a própria vida.

Arménio Vieira ao longo das páginas dos dois volumes, como que desafia o leitor para uma revisitação, de que ele dá o exemplo; ou mesmo para uma leitura inaugural das obras dos grandes nomes da literatura e de vultos da História universal e neste ponto, sou tentada a dizer, que o poeta emerge numa dimensão pedagógica. E fá-lo citando-os, em imaginados diálogos entre eles, por vezes diálogos a séculos, a anos de diferença entre as próprias personagens das obras e, entre os entes históricos (escritores) que as criaram e que o poeta constantemente convoca nos seus textos-poemas.

Não obstante toda essa abrangência e esse todo panorâmico no modo de ver, no olhar, e no fazer poético que Arménio Vieira possui, mesmo assim, e em simultâneo, Arménio Vieira tem alguns “compagnons de route» que ouso dizer, mais presentes, mais constantes, mais próximos até, na sua senda poética, os quais, ele ora os metaforiza, ora os recorda num real vivenciado. Alguns deles, o poeta cita, alegoriza, em vários dos textos destas duas colectâneas poéticas. Apenas para exemplificar, mencionarei, distinguindo, Fernando Pessoa, e Camões. Fernando Pessoa e os seus heterónimos passam, perpassam e passeiam-se em alguns textos presentes nos dois volumes de poesia que temos em mão quer em intertextualidades transfiguradas como «O Mar da Minha Aldeia» na página 58, quer também em diálogos e encontros imaginários.

Outros há também, (os tais “compagnons de route”) que de forma real e vivida são aqui recordados. Um deles é Mário Fonseca.

Com este último, vale também dizer que são ou foram – uma vez que M. Fonseca nos deixou – poetas de uma mesma geração e que de certa forma, juntos iniciaram a que depois seria uma já longa e profícua caminhada poética, que teve os seus inícios no antigo «Boletim Cabo Verde», no «Seló». Juntos participaram em colaborações dispersas em várias revistas literárias, apenas para citar «Imbondeiro» «Vértice» entre outros periódicos.

Convido os presentes a folhearem «Derivações do Brumário na página 39, pois vou ler o poema “O Mar e as Rosas” dedicado exactamente à memória do saudoso poeta Mário Fonseca. Tratou-se de um facto. Passou-se na vida real. M. Fonseca perdera os manuscritos do livro e andou um ror de anos em busca deles. Creio que assim Arménio Vieira o celebriza e o imortaliza neste quase soneto e através do título. Outro poema em que Mário Fonseca é evocado ao lado de um grande nome da poesia portuguesa, Fernando Assis Pacheco também já desaparecido do mundo dos vivos. Trata-se do poema “Epitáfio”. Página 30 do «Derivações do Brumário».

Finalmente, mesmo para terminar convidava-vos a regressar à página 14 do «Brumário» e perceber o estar e o sentir do poeta, “o estar só entre muita gente.” Pois bem, usando o mote camoniano, o poeta expressa em carácter subjectivo, as suas emoções, ora doces, ora amargas, ora ainda agridoces em que releva a ironia e as partidas de algo que pode ser nomeado como o Destino…O seu mundo interior, a consciência da sua solidão, as suas ilusões e decepções e, ou, a maneira como ele percepciona e vê o mundo

Volto a repetir, mesmo, mesmo a finalizar, que o leitor terá oportunidade de, ao ler os poemas, verificar, confirmar, como Arménio Vieira mistura de forma que diria única e muito dele, a temática lírica e a temática satírica num mesmo poema.



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