O grande desígnio de pôr a nossa História ao jeito dos que sempre mandaram – mandar, e não apenas governar – neste País, continua em marcha. É aquela História que legitima e confere um regime especial a um punhado de “iluminados” que fazendo jus ao seu estatuto usufrui de uma panóplia de privilégios e vantagens que o coloca acima de todos os outros cidadãos. Estranha e surpreende o facto de, alegadamente, essa aura de heróis ter sido ganha e conquistada não em solo cabo-verdiano mas nas matas da Guiné.
É no mínimo bizarro! Mais bizarro e surpreendente se torna quando se sabe que ela não se apoia em nenhuma façanha de “tropas expedicionárias” em serviço no exterior mas apenas na sua presença (reduzida) não mandatada, na sua inscrição voluntária, note-se, sem qualquer aval do povo cabo-verdiano. Um acto que podia ter sido (e se calhar foi) de abnegação e generosidade mas que afinal se revelou e se revela hoje como um investimento social e financeiro lucrativo que o cabo-verdiano vem pagando e, como sói dizer-se, com juros e correcção monetária. Até quando?
Essa História que teimam em fazer crer que nasceu em 1974, ou melhor, em 1956, com a suposta data da fundação do PAIGC, está sendo perenizada porque inculcada de modo acintoso e meticuloso nas nossas crianças e na nossa população contando para o efeito com a complacência e a “indiferença” popular e o apoio indispensável dos seus homens de mão bem colocados nos media e, pasme-se! nas instituições académicas e de ensino, mesmo superiores. É aqui que reside todo o mal pela ausência de um debate sério.
Não resistimos, em contar aqui, de forma muitíssimo breve, um episódio, porque está no contexto, que se passou com uma amiga nossa muito chegada que vive na Europa e que viera visitar a família. É uma pessoa culta, muito erudita que segue de perto tudo o que se passa em Cabo Verde. Entrou numa repartição para tratar de um documento e viu encaixada numa moldura uma fotografia de Amílcar Cabral pendurada na parede. Estranhou e perguntou, contou-nos ela, de forma já agastada porque já antes a vira em outras instituições do Estado: O que é que aquela fotografia está aí a fazer? Isto não é uma repartição pública? Não é Jorge Carlos Fonseca quem foi eleito? Bem, disse-nos ela, gerou-se uma pequena troca de argumentos em que a ideologia misturava-se com a ignorância da História e da própria Constituição.
A democracia e o estado de direito exigem escrupuloso respeito pela Constituição e não consta que a fotografia de quem quer que seja que não a do PR possa, legítima e legalmente, ser colocada em repartições públicas.
E tudo isto traz à colação, o recente livro de Daniel dos Santos – “Amílcar Cabral, Um Outro Olhar” – lançado publicamente no passado dia 5 de Setembro. Uma semana depois, era o aniversário natalício de Amílcar Cabral. É sem dúvida um livro controverso porque não panegírico, como habitualmente. Foi praticamente ignorado pela Televisão Pública nesse aniversário enquanto outros livros, sobre o mesmo tema, “velhos” e sobejamente conhecidos eram repescados. Até a RDP África de que se esperava uma postura, uma atitude de equidistância, no seu programa “Debate Africano” do dia 12, uma semana depois do lançamento, “confessava” não saber se o livro tinha sido ou não apresentado. Uma imagem que não abona muito para um painel que se impõe bem informado.
A classificação do autor desse livro, Daniel dos Santos, como “não é apaniguado de Amílcar Cabral” caracteriza bem o espírito com que o livro foi recebido e tratado colocando muito mal o programa e o painel – ferido na sua seriedade e credibilidade – que tão bons momentos de “tertúlia” já nos proporcionaram.
Não se pede isenção. Não é possível. Exige-se verdade e honestidade intelectual. O comportamento da RDP África, talvez sem o pretender, configura uma cumplicidade silenciosa com o actual poder na prevalência de uma visão monista da nossa História recente.
A ideia, as orientações que dimanam das esferas superiores são para silenciar o livro. Não falar dele. E quando se tiver de falar, diabolizá-lo. Evitar o debate que ele (o livro) propõe que poderá dessacralizar determinados mitos da nossa História, derrubar determinados dogmas e ilegitimar determinadas propostas, posturas e comportamentos.
Felizmente que estamos em democracia onde o lápis azul da censura salazarista já não existe e a proibição de circular livros já não tem lugar. Mas sabemos que o poder tem e utiliza outros instrumentos, mais subtis mas nem por isso menos eficazes. O que não há dúvida é que para o actual regime cabo-verdiano, “Amílcar Cabral – Um Outro Olhar” é um livro proscrito.
Estamos no século XXI. Conhecer a nossa História é muito importante. É compreender o caminho que nos trouxe até aqui. Não apenas o passado relativamente longínquo, mas também o recente, o recentíssimo. Aquele que construímos todos os dias. A nossa prioridade não pode ser estudar os “fósseis” da História. São importantes sim. Muito importantes mesmo. Mas não prioritários! Estiveram adormecidos durante séculos e podem assim permanecer por mais algum tempo se for caso disso. Não sofreriam qualquer alteração. Ou podiam mesmo ser tratados em simultâneo com a História recente. Não se excluem mutuamente. Mas enquanto uma é para se ir fazendo – a rota dos escravos –, o outro é para se fazer já – o debate sobre a nossa História recente.
Não comungamos das palavras justificativas do PM quando diz (citamos): A rota dos escravos é fundamental para a construção do futuro de Cabo Verde”. E reforçamos a nossa posição, quando ele afirma que para a “construção desse futuro” torna-se importante saber (citamos): "Como é que os escravos circularam aqui internamente, como é que conseguiram resistir, onde é que foram os quilombos cabo-verdianos, quais os caminhos feitos”. (O negrito é nosso).
Não resisto a perguntar: Que futuro queremos nós construir com base na rota dos escravos? Ou o PM aguarda a rota dos escravos para dar um rumo à sua governação?
Para quê preocupar, já e agora, com Quilombos – fenómenos da escravatura brasileira – se aqui ao lado, na nossa vizinha Mauritânia, para não nos afastarmos muito, no nosso mundo global, a abolição ainda não chegou? A escravatura é um problema da Humanidade e não apenas da memória histórica cabo-verdiana. E infelizmente não está extinta para falarmos dela apenas como passado.
Porquê tanta preocupação e exaltação com a rota dos escravos quando temos por esclarecer assuntos – pendentes, inadiáveis e vivos da nossa História e da da Humanidade – recentes? Ignorar essa prioridade poderá tomar a forma de uma manobra de diversão, de uma artimanha dilatória.
Façamos todos, uma pausa para pensar e priorizar a nossa História recente. Esta sim, poderá ajudar-nos a construir o futuro.
A. Ferreira
P.S. Por falar em História, ocorreu-nos que alguns estudiosos de Amílcar Cabral insistem na tecla de que ele na sua deslocação para a Guiné, depois de terminar o curso, fez questão de fazer escala em Cabo Verde para mostrar o diploma à mãe. Um gesto sem dúvida muito bonito. Que seria efectivamente carinhoso e afectivo se fosse apenas para a cumprimentar, para a abraçar e lhe dar um beijinho. Aliás, que outra alternativa teria? Não havia ligação directa. O normal era apanhar um barco de carreira. E ao tempo (1952) a única ligação Lisboa – Bissau era feita pelos navios (“Alfredo da Silva”, “Ana Mafalda”, “Rita Maria” entre outros) da “Sociedade Geral” que faziam a carreira regular Lisboa – Mindelo – Praia – Bissau e Bissau, Praia, Mindelo – Lisboa. Ou será que o Governo de Lisboa lhe tinha posto um barco à disposição?
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