Identidade cabo-verdiana? Uma falsa questão no século XXI? ... Ou manobra de diversão resultado da nossa pouca "destreza" cultural?

domingo, 19 de outubro de 2014

Antes de mais, e como justificação, devo esclarecer o leitor de que tenho clara consciência, de que estou ciente que o tema que pretendo ora abordar, não cabe num “post”. Ele é demasiado sério e profundo. É matéria para diversificada e substantivas abordagens.
Aqui apenas se aflorarão três ou quatro pontos de vista e que, como tal, mais não são do que isso.

1 - Identidade do latim, identitas, identatis, significa e abreviadamente, para este contexto, o conjunto de características próprias e exclusivas de uma determinada comunidade humana, que a podem por isso, distinguir de outras comunidades. Ou seja, tal como as ciências matemáticas a definem e aproveitando o conceito, transpondo-o para aqui, a identidade estabelece uma relação de igualdade verificável para todos os valores envolvidos e praticados por uma determinada comunidade humana.
Já na Grécia antiga os grandes pensadores e filósofos definiram-na tão cabalmente, como relação de semelhança completa e absoluta entre duas coisas que possuem as mesmas características essenciais – e isto aplicado a uma sociedade distinta – que chegou até nós, na sua puridade.
À identidade coloca-se a questão fundamental da diferença do “eu” em relação ao outro e vice-versa.
Ora bem, quando uma comunidade, imaginemos a nossa, a cabo-verdiana que comunga no essencial, das mesmas características, das mesmas crenças, usos, costumes, valores, língua, entre outros traços que a distinguem das demais culturas e sociedades e que a identifiquem una, estaremos neste caso, a falar da identidade cabo-verdiana, da nação cabo-verdiana que se formou segundo estudiosos, cerca de um século, antes deste arquipélago ser país.

2 – Interessante é que no caso de Cabo Verde, já o poeta e ensaísta de mérito, Gabriel Mariano, havia afirmado há mais de três décadas, de que a nossa identidade nasceu connosco. Ela procede da nossa mestiçagem negra/branca. Portanto, veio connosco. Logo à cabeça da nação. Isto é, a nossa identidade somos nós, é o nosso ser cabo-verdiano, este que forjou a nação cabo-verdiana. Não há, “pour cause,” necessidade de andarmos – nesta diversão – (desculpem o prosaísmo do termo) à procura dela, em patéticas divagações e interrogações, as mais das vezes, delirantes, inócuas, que a nada conduzem e mais se assemelham à discussão à volta do sexo dos anjos.

É nossa convicção e de muitos mais (sei bem que não estou a dizer nada que seja novo) de que a nossa identidade se forjou – reitere-se – nessa fusão rácica e cultural, de que somos formatados. É o nosso ser e estar resultantes de um cruzamento de raças e de culturas fundidas e neutralizadas naquilo a que demos o nome de caboverdianidade.

Logo, portanto, Não vale tentar “apagar” ou “apoucar” a nossa condição e cultura mestiças. Deve ser encarada como naturalidade. Como um processo histórico, cultural e antropológico.

Convém sempre lembrar que nem o branco e nem o negro (de per si) se deram bem por aqui. Aliás, o que se entende por natural. Se não, vejamos: as condições climáticas, a falta de água, de vegetação, e outros e muitos factores, deixaram-nos à deriva e bem desenraizados, com nostalgia e falta dos seus torrões de origem.

Só quando os dois se cruzaram nestas ilhas (entre si e miscigenadamente) e produziram o homem mulato, o branco, o negro, em suma e em resumo, o mestiço das ilhas. Estes sim! Estiveram «ab initio» intimamente ligados à terra e por ela moldados. A partir daí e doravante, é terra-mãe de um ser: o cabo-verdiano.

3 - Aproveitaria esta oportunidade para transcrever excertos de um texto que retirei do “blogue” «Arrozcatum» de Zito Azevedo “ (…) “na segunda metade do séc. XIX, Mindelo torna-se um pólo de atracção para camponeses sem terra, que fogem da fome e da miséria, para famílias de importantes proprietários agrícolas ou comerciantes que aqui encontram melhores oportunidades de negócio e também para aqueles que, por serem mais escolarizados, podem encontrar bons empregos na Administração e Serviços. Vêm principalmente das ilhas de Santo Antão e São Nicolau, mas ao longo dos tempos é todo o arquipélago que aqui se cruza. No dizer de Onésimo Silveira, S. Vicente é a única ilha povoada por cabo-verdianos.” In: «Arrozcatum» blogspot.com Zito Azevedo, “A Formação da Sociedade Mindelense “
Esta asserção a negritos da tese de Onésimo Silveira – e é aí que a transcrição tem sentido para este escrito – relativamente ao povoamento inicial da ilha de S. Vicente, com algumas tentativas conhecidas a partir do século XVIII, vem ao encontro da tese da identidade já completamente formada, cujos sujeitos povoadores, vindos de outras ilhas, maioritariamente, de Santo Antão e de S. Nicolau aportaram a S. Vicente – a última a ser povoada – O que só exalta o papel do mestiço, isto é, do filho das ilhas que pôde inclusivamente, povoar uma das ilhas do arquipélago cabo-verdiano.

4 - Outra observação que me surge a propósito. Como é possível que estudos feitos no passado sobre esta mesma matéria, por cabo-verdianos de então, sejam mais credíveis? Forneçam-nos instrumentos mais bem fundamentados do que os (alguns) feitos por cabo-verdianos hodiernos?
Lembremo-nos para exemplo, da célebre «Mesa – redonda sobre o Homem cabo-verdiano» em 1956. E outros e outros…
Será porque os de antanho não tinham reserva mental sobre o tema? Não estavam marcados “ideologicamente”? São interrogações que devem ser feitas…

Dito isto, e para finalizar este escrito que se pretendeu breve, não quero contudo significar que sobre ela – a nossa identidade – não se façam reflexões, análises e estudos sérios. Bem pelo contrário, o que se pede e o que se deseja é que essa reflexão identitária, não seja ideologicamente e politicamente marcada, como já aqui mencionada. Que ela seja cientifica e filosoficamente vazada em textos com a independência intelectiva, que é exigida para este tipo de estudo.


4 comentários:

Anónimo disse...


No pertinente texto a senhora faz as perguntas "Como é possível que estudos feitos no passado sobre esta mesma matéria, por cabo-verdianos de então, sejam mais credíveis? Forneçam-nos instrumentos mais bem fundamentados do que os (alguns) feitos por cabo-verdianos hodiernos?"
Sabemos todos que gostariam de apagar esse passado para implantarem o que pretendem. Pena não haver mais Ondinas para aguentar essa fùria pior que o mar de canal.
Eduardo Oliveira

Adriano Miranda Lima disse...

A Ondina Ferreira coloca aqui interrogações pertinentes e de entre as quais me focalizo nesta: para quê tanta preocupação com a nossa questão identitária? Ela é o que é, mas para mim a resposta que me parece mais cabal está na afirmação (citada) do Onésimo Silveira. De facto, a mestiçagem mais genuína nasceu de forma espontânea na ilha de S. Vicente com a aceleração do seu povoamento. E explico porquê. É que, enquanto alguns pretendem vincular indelevelmente a mestiçagem a factores de ordem étnica e cultural (pespegando-a à ascentralidade), e por isso correndo o risco de inquinar a abordagem científica do fenómeno, acho que é na ilha de S. Vicente, ainda que séculos decorridos desde a descoberta do arquipélago, que ela se forjou com características de verdadeira singularidade e autenticidade. O povoamento da ilha de S. Vicente gerou um cabo-verdiano liberto de complexos étnicos e culturais e é por isso que a mentalidade e as inclinações idiossincráticas do homem do Mindelo são as mesmas, sem distinção de cor de pele ou estrato social ou cultural. Não é que eu queira fazer a apologia do perfil humano do mindelense, até porque a sua mentalidade tem aspectos passíveis de censura, mas se há processo de mestiçagem a merecer curiosidade histórica é o que ocorreu em S. Vicente. E note-se que o processo não se circunscreveu à ilha do Porto Grande, propagou-se e influenciou o cabo-verdiano de outras ilhas, momente no Grupo Barlavento, e é isso que os “ascentralistas” não aceitam por denegar os pressupostos da sua abordagem política do tema.

José Fortes Lopes disse...

Os políticos cabo-verdianos da 1ª república ou seja o PAIGC meteu-nos num grande sarilho. Existe uma autêntica crise de identidade em Cabo Verde. Para resolver os traumas criados seriam necessários discursos e práticas políticas diferentes mas tudo indica que a descida ao longo do plano inclinado não terá fim.
José F Lopes

Lino Públio A. Pinto Monteiro disse...

O excelente trabalho elaborado por Almerindo Lessa e Jacques Ruffié - Seroantropologia das Ilhas de Cabo Verde - Mesa Redonda sobre o homem cabo-verdiano, edição da Junta de Investigações do Ultramar - série Estudos, Ensaios e Documentos, nº 32, 2ª edição de 1960, a primeira foi em 1957, dá pistas para a formatação de um raciocínio lógico acerca de quem somos e como somos, wenfim da nossa identidade. Uma obra a ler. Independentemente da cor da pele, o cabo-verdiano é mestiço no seu comportamento diário, mas com clara prevalência da civilização judaico-cristã. Os aspectos culturais da Europa e Africa foram caldeadas e fundidas pelas condições mesológicas das Ilhas e também pela exígua dimensão do território. Pode-se dizer que assimilamos todos os aspectos positivos das duas culturas que nos permitissem resistir á agressividade do meio ambiente e da necessidade da sobrevivência.Rapidamente, as partes em presença compreenderam que face ás muitas ameaças, a salvação só poderia ser colectiva. Sem tentar suavizar os aspectos hodiondos da escravatura e de outras formas de exploração a que o negro foi sujeito nas Ilhas, o que ficou para a história das Ilhas foi o mestiço, sem distinção da cor da pele. Vejam as palavras do Padre António Vieira, que tinha sangue cabo-verdiano.
O texto da Drª Ondina Ferreira cita o Gabriel Mariano e bem, já que ele produziu trabalho válido sobre esta matéria. A propósito, a que se deve o esquecimento que a pessoa e a obra de Gabriel Mariano é votado ? Ou estou distraído ou muito poucas vezes tenho assistido a homenagens a nível do legado que ele nos deixou. O mesmo poderia dizer acerca do contista Virgílio Avelino Pires, o ensaista Jaime de Figueiredo, etc. A minha geração ficou marcada por um complexo de se ser mestiço. Dizia-se não ao mestiço. Nós temos que ser africanos. Amílcar Cabral falou na reafricanização dos espíritos. No 25 de Abril assistimos a cenas onde participei, verdadeiramente caricatas, em que na Praia tentava-se imitar os costumes africanos e nós cabo verdianos flagelávamos por sermos mestiços e penitenciávamos termos sido um instrumento do colonialismo. Drª Ondina as sua reflexões são oportunas e a nossa juventude tem de assumir a nossa identidade, mas antes de se armar de conhecimentos teóricos que nos levem a orgulharmos das nossas origens.

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