Nota ao
leitor: o texto que se segue da autoria de A. Ferreira foi escrita já
há alguns anos e publicado no jornal «Expresso das Ilhas». Na altura, o governo
havia levado ao parlamento uma proposta de lei, visando “amnistiar” “indultar”
e “reinserir” as vítimas do processo tumultuoso de 1974/75.
A
abordagem pareceu ao autor ofensiva à dignidade dos visados por lhes conferir
estatuto de criminosos ao “amnistiar” ou “indultar.”
Tudo indica
que se repescou o assunto, agora com outra roupagem. A seguir a transcrição do texto:
RECONCILIAÇÃO,
SIM!
INDULTO OU
AMNISTIA, NÃO!
Não tenho o hábito
de escutar as sessões parlamentares radio-transmitidas. Mas aconteceu que ao
sair de casa e ao tentar sintonizar o rádio do carro fazendo “scan” ter-me
deparado com a transmissão de um debate na Assembleia Nacional. Como as
distâncias são muito curtas, só tive tempo de reter que o assunto se prendia
com a reconciliação. Fora do contexto, interroguei-me sobre quem seriam os
desavindos? Pensei cá comigo: Felizmente, nunca tivemos guerra; a crispação
social é moderada e tolerável; vivemos uma certa tranquilidade. Então
ocorreu-me, embora me parecesse pouco provável, que a questão estivesse
relacionada com a malfadada reforma agrária de triste memória. Alguém me
esclareceu que a Reforma Agrária não era tida nem achada e que o assunto dizia
respeito aos desmandos do histórico e histérico tempo da Independência
Nacional; que discutiam um documento do Governo.
De qualquer forma,
pensei, é um assunto simpático – Reconciliação. Muito embora me parecesse que o
momento poderia configurar oportunismo político - vésperas das eleições legislativas - este seria facilmente
esquecido ou relegado para um plano secundário face a dimensão do gesto. É que
a reconciliação é um acto eminentemente cristão. Humano e humanizante. Arrasta
consigo a ideia de paz, de harmonia. Como princípio, é sempre bem-vinda
qualquer que seja o assunto. Daí a minha ansiedade em conhecer o documento que
gerara o que depreendi ter sido aceso debate parlamentar no par de minutos que
o escutei.
O acesso ao
documento, que outro não era que uma proposta de lei do Governo, fez gorar
todas minhas expectativas. Comecei por me surpreender por, em vez de um
preâmbulo fundamentando as razões da oportunidade e da necessidade de uma
Reconciliação, o Governo tenha preferido a comodidade daquilo a que chamou
“Exposição de motivos”, que é um conjunto de “flashes”, mais precisamente 13, fazendo jus ao agoirento
cabalístico, que quando muito poderiam constituir alguns tópicos ou pistas para
a elaboração de uma argumentação politico-filosófica consistente. Pude
verificar que o Governo afinal não tinha pernas para um passo tão grande. A
terminologia utilizada faz crer que lhe faltava coragem porque estava, ou ainda
está, refém de uma herança histórica do partido que o suporta e que era preciso
descomplexar-se exorcizando os fantasmas que o atormentam. É assim que, p.e.,
no ponto 2 dessa “Exposição de motivos”,
escreve: Em 1974/75, alguns cidadãos, e de entre eles, funcionários públicos, foram
internados no Campo de Chão, e depois expatriados para Portugal, com o
fundamento de que constituíam perigo para o processo de descolonização.” (O
sublinhado é meu).
Facilmente se
verifica que o Governo não procurava a reconciliação, porque a um assunto de
tanta delicadeza, complexidade e abrangência política, que buliu com uma
condição humana, que transtornou e alterou percursos de vida de famílias
inteiras havendo gente que ainda hoje se interroga porque é que foi presa, não
se dá tratamento tão ligeiro e leviano. Chamar internamento ao encarceramento
de um punhado de compatriotas, durante meses, sem culpa formada, e rebaptizar o
Campo de Concentração do Tarrafal como Campo de (internamento) de Chão não é
retórica ou figura de estilo, mas sim
uma total desconsideração e desrespeito pela nossa História e por todos aqueles, sem excepção, que por lá
passaram e sofreram na alma e no corpo os efeitos da prepotência, da
intolerância e da perseguição.. É uma tentativa pouco séria e pouco elegante de
reescrever a História.
Mas o Governo não
foi também nobre nem suficientemente elevado, quando no mesmo item nos diz: “Outros foram saneados da Função Pública,
sendo os respectivos processos instruídos por duas comissões, sendo uma sediada
na Praia e outra no Mindelo, sem o exercício de contraditório, e hoje,
dir-se-á, com violação flagrante dos direitos humanos.”
Até parece que em
todo o processo a “violação flagrante dos
direitos humanos” só se deu com as duas comissões… Endossar as culpas a
duas comissões é grave e perverso!!! Puerilmente perverso! Desde quando as
comissões decidiram? Quem nomeia as comissões? Quem dá orientações e, às vezes,
ordens às comissões? Quem as demite quando não servem? É tempo de começarmos a
respeitar os decisores políticos. Não fazer deles inimputáveis, vítimas de
consultores, assessores e juristas. Estes também são responsáveis, mas apenas
perante o decisor político, pelo cumprimento dos termos de referência e dos
parâmetros que lhes foram estabelecidos. Um parecer, uma proposta, é um
documento interno. Não vincula o autor publicamente… Pode, inclusive, ser
rejeitado liminarmente. É apenas um auxiliar de decisão. É dos compêndios!
Ao tentar
escamotear a realidade, com a palavra escrita, o Governo fez um mau registo
histórico e, por via disto, prestou um péssimo serviço à História.
O Governo não pode
pensar que no processo é apenas mediador, como pretende. É parte. Como o foi
nas condecorações. Não pode por isso haver reconciliação se ele insiste em
condecorar, e tratar como heróis, os responsáveis directos pelos acontecimentos
de 1974/75, que diz condenar, e fazer das suas vítimas criminosos que ora
pretende artificiosa e sub-repticiamente “indultar ou amnistiar”.
Fazer a
reconciliação apenas reparando materialmente os prejuízos causados é negar a
sua essência. A vítima não está a procura de dádivas ou esmolas do Governo em
troca da sua honra ferida. Ela quer justiça! A reparação implica também a
restituição da dignidade ultrajada. E isto só se consegue com humildade e nunca
com arrogância e sobranceria como a manifestada no título do artigo 3º da
proposta de lei: “Reabilitação e
reinserção na comunidade política”. Talvez, por descuido, não se tenha
feito a análise sociológica dos vocábulos “reabilitação” e “reinserção”. Não é
abonatória para vítimas… possivelmente se aplica bem a criminosos, a marginais!
Ainda no mesmo
artigo – o 3º – há um exercício do absurdo que é o de nivelar as
monstruosidades, os desmandos e as tropelias de 1974/75 com as acções
praticadas, “na instalação e consolidação da democracia pluralista”, isto é, de
acordo com as próprias palavras do Governo, no exercício da democracia. Não é
apenas o que popularmente se diz juntar alhos com bugalhos mas sobretudo
procurar a quadratura do círculo.
Mas para haver
reconciliação, insisto, tem que haver um pedido formal de desculpa. O
arrependimento. O mea culpa! O
Governo que em nome do
Estado faz condecorações para acontecimentos de há trinta
anos, em nome desse mesmo Estado tem legitimidade e o dever de pedir
formalmente desculpas por excessos cometidos nessa mesma altura. É uma questão
de coerência. E o PAICV que se diz herdeiro dos activos do PAIGC deve
igualmente assumir a herança dos seus passivos. Noblesse oblige!
Como disse no
início deste texto, aplaudo a iniciativa de uma Reconciliação de facto, mas
nunca como capa de um pseudo indulto ou amnistia.
4 comentários:
Em boa verdade, só se perdoam os culpados...Os inocentes, os sobreviventes, apenas poderão almejar um quiçá envergonhado pedido de desculpas...Já lá vão 38 anos que a Comissão mindelense me expulsou à revelia de todas as normas da jurisprudencia internacional...A mim,a minha mulher cabo-verdiana e a meus dois filhos cabo-verdianos...Com 48 horas para arrancar 34 anos de raízes criadas desde os meus nove anos...Ainda hoje me interrogo: Porquê?!
Excelente texto, sim senhor, que em boa hora é aqui relembrado, passados cinco anos e no momento em que o delicado tema da “reconciliação nacional” volta à agenda do governo.
Imaginem, “indultar”, “amnistiar” e “reinserir”, como então se disse com todas as letras e sem se dar conta do despautério. É caso para se dizer que o corifeu subiu ao retábulo da sua inconsciência e colocou a boca no trombone, mas sem se dar conta de que as notas saídas estavam desafinadas e dissonantes com a verdade e a moral. Isto só permite concluir, e peço desculpas pelo possível exagero, que a abertura democrática de 1990 ainda não tinha logrado converter as mentes para os princípios e as práticas da verdade límpida.
Se não vejamos. Um tio meu por afinidade, funcionário do Estado, em 1974 foi arrebatado da sua casa e enfiado no Campo de Concentração de Tarrafal, sim, nesse mesmo Campo, sem eufemismos, apenas por ter cometido o “delito” de aderir a outro partido que não o PAIGC. Fê-lo com a inteira liberdade de consciência que então supunha possuir, sem saber que estava a tramar o seu destino e o dos seus familiares. Sem culpa formada, sequer sem ouvir uma acusação formal, foi depois enfiado num avião militar, juntamente com outros “criminosos”, e expatriado para Portugal, levando apenas a roupa que tinha no corpo. Testemunhei a mágoa que lhe consumiu a alma ao longo dos anos e a firmeza com que dizia que nunca mais voltaria a Cabo Verde. E, de facto, cumpriu a promessa, até deixar este mundo há 4 anos. Não sei se lhe chegou ao conhecimento a intenção do seu “indulto” ou “amnistia” e “reinserção social”.
Outro tio meu foi saneado no seu serviço e ameaçado de agressão física pelo energúmeno (simultaneamente travestido de revolucionário) que lhe assaltou o cargo que desempenhava. Mais ainda, foi ameaçado de que a casa que habitava tinha de ser partilhada por pessoas que não tinham tecto. Foi o bastante, e transferiu-se para Portugal com a família. O meu tio não percebeu que aderir de boa mente a outro partido o tornou um traidor e proscrito, ele que era pessoa de esmerada educação e de trato fino para com todos. Infelizmente, faleceria em Lisboa menos de dois anos depois, vítima de um fulminante ataque cardíaco, talvez pelo peso da amargura. Mais do que o injusto saneamento, sei que lhe pesou sobremaneira a ameaça de agressão física feita pelo tal energúmeno. Mal sabia ele que os seus algozes haveriam de ponderar o “indulto” ou a “amnistia” do seu crime.
O tempo passa e vai levando na sua voragem as nossas memórias, as boas e as más. Elas começam a ser uma longínqua abstracção quando as deixamos de incorporar no quotidiano do nosso viver, mas perdem irremediavelmente todo o sentido quando morremos, apagam-se como marca d’água da nossa existência. Há vítimas do processo de “descolonização” cabo-verdiano que ainda estão vivas e a tempo de ouvir uma sincera palavra de Perdão. É isso mesmo que falta e urge ser assumido e concretizado, mais importante do que qualquer ressarcimento material. Os líderes históricos do PAIGC ainda vivos e o governo e os seus destacados líderes actuais têm de subir a um púlpito nacional para pedir Perdão às vítimas inocentes daquele período conturbado. Que são tão bons cabo-verdianos e patriotas como os outros.
Amigos
Esta problemática 1974-1975 de extrema importância para o futuro de Cabo Verde e sua História tem que ser reaberta, discutida no seu conjunto: exigem-se responsabilidades e justiça. Só assim pode haver reconciliação
Mea culpa, mea culpa, mea culpa.
Confesso ser um dos invisíveis que passam e nada dizem, reconhecendo que não é dignificante. Mas confesso também que muitos dos artigos que aparecem me transcendem e decido não comentar por não chegar aos calcanhares dos autores. Prometo outra vez que farei esforços para deixar um sinal de passagem.
Acabo de ler o depoimento do Coronel Miranda Lima, meu ilustre amigo, que relata factos vividos nos campos de batalha que nada têm a ver com o que se passava nas Embaixadas, onde tive o privilégio de servir e, onde as informações eram outras com o agravante de ter de passar horas e horas (às vezes à noite) cifrando ou decifrando assuntos por vezes encorajantes e outras vezes... nem por isso.
No relato do Adriano, do que se passou em Moçambique (altura da minha missão em Tananarive, Madagascar), só agora tive conhecimento mas sabia de outras manifestações recebidas por via oficial e pela cumplicidade dos serviços de inteligência de certa potência de cujo representante era grande amigo.
Falam agora de indulto, de perdão... Não me compete perdoar. Felizmente.
Quero deixar o meu apreço ao Adriano e ao Coral Vermelho, pelo menos, por hoje que nos enriquece a todos e nos confirma a cobardia dos que entregaram a nossa terra que tinham a obrigação de defender.
Bem Hajam !
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