Nota explicativa sobre o artigo que adiante se
publica:
Por ter
achado o texto interessante e honesto para quem, como nós, é lisboeta de
coração; porque vivo numa pequena cidade – Praia – que se tornou
(in)compreensivelmente, altamente insegura;
porque tenho passado pelas mesmas sensações do autor do texto quando
estou em Lisboa e ando e passeio a pé, descontraída e tranquilamente; porque aí
pude com uma grande felicidade verificar que se pode sair do cinema à
meia-noite, com duas netas adolescentes
e andar a pé, gozando o passeio até à casa, e sem pensar em assaltos;
Por tudo
isto, achei oportuno trazer ao leitor do «Coral Vermelho» o texto que se segue,
com a devida vénia ao autor, Joaquim Ferreira Santos e ao Jornal «O Globo».
Rio-Lisboa (Joaquim Ferreira dos Santos)
O GLOBO,
28/MAI/2015
O bom de descer as ladeiras de Lisboa é que durante alguns dias você
está longe da selvageria carioca, pode sentir a nostalgia de sair flanando como
fazia antes nas ruas da sua cidade. Zero de medo. Assim como quem não quer
nada, um sorvete da Santini numa das mãos, você vai Rua do Carmo abaixo, passa
pela luvaria Ulisses e, quando dá com os cornos no Rossio, o largo monumental
pode fazer a surpresa de oferecer uma festa de máscaras ibéricas, comidas e
danças por todos os lados, mas nunca a cena de um médico ensanguentado no chão
do Café Nicola, esfaqueado por algum garoto que em seguida lhe roubou a
bicicleta e foi embora.
Isto aqui é Lisboa, ó pá. Zero de deslumbramento. As escolas de Portugal
acabaram de ser avaliadas em trigésimo lugar num ranking de 38 sistemas
educacionais europeus, há muita coisa a ser feita, mas o bom disto aqui é que
se vive em paz com os pequenos valores da existência. Zero de sobressaltos. A
delícia antiga de se ir ali à esquina e, na ordem natural da felicidade das
coisas, voltar sem que a polícia lhe tenha metido uma bala perdida nas costas.
Agora, por exemplo, você está na ladeira do Príncipe Real e basta pôr os
pés na faixa de pedestres para que os carros parem até você chegar do outro
lado. Aí é só começar a descer a rua por uma calçada de pedras portuguesas,
todas postas em seus lugares, nenhuma solta e chamando os pés para um tropeção
que pode para sempre lhe estuporar os artelhos e desgraçar a sobrevivência.
Não está acontecendo nada de muito notável, Lisboa está linda, mas não
se faz aqui o registro de qualquer grande marco a se exaltar na revolução
civilizatória moderna. É apenas uma cidade que tem se descoberto feliz consigo
mesma.
Lisboa está coberta dos caminhos simples, verdadeiros yellow-brick-roads para
se levar a vida com leveza, essa carência carioca, e num deles você desce o
Bairro Alto, atravessa o Largo Luís de Camões, pega a Rua Alecrim e, ao final,
apesar de todas as modernidades da Rua Nova do Carvalho, é possível encontrar
ainda de pé as tascas da tradição gastronômica. Tudo convive sem conflito. Ao
contrário do Rio, onde toda semana fecham uma mesa na memória do paladar e
tiram da boca do cidadão um gosto familiar, em Lisboa é possível sentar num
tamborete do quase botequim Sol e Pesca para comer as conservas que há séculos
apetecem ao apetite local. Ninguém mais sabe ao certo o que é antigo e o que é
moderno. As sardinhas continuam nas latas, o azeite continua de oliva, mas o
estilo de tudo isso agora vem embrulhado em papéis do mais fino design.
Isto aqui é Lisboa, ó pá, e isto não é o anúncio de que o mundo está
sendo reinventado a partir de suas oito colinas. Os políticos corruptos também
estão, como os ratos de sua corja internacional, nas capas do “Expresso” e do
“Público”. Mas na vida real do dia a dia a cidade encontrou um jeito delicado
de lustrar os seus casarões magníficos, parecidos com os que todo mês desabam
na Lapa carioca e, ao mesmo tempo em que se orgulha deles, reinventa suas
funções. Não há mais loja de roupa, mas de “conceito”, e portuguesa de bigode
era a vovozinha. Agora as garotas são todas “gira”, o termo local para traduzir
o “cool”.
A sensação em alguns momentos é que você vai sair da Rua Augusta, tomar
uma ginja no canto da Praça da Figueira e quando dobrar em direção ao Largo dos
Intendentes vai dar na verdade nos Arcos da Lapa. Mas é só impressão. As ruas
são limpas, os garçons servem às mesas com presteza, os telhados são os mais
bonitos do mundo e as praças estão sempre tomadas por senhoras que descansam ou
jovens, no Quiosque do Refresco, animados por doses de capilé. Tagarelam,
paqueram, o de sempre. Ninguém aporrinha o próximo.
O Cais do Sodré, por exemplo, está basicamente o mesmo de sete anos
atrás. Mas se você prestar bem a atenção, andar para a direita e entrar no
Mercado da Ribeira, lá sobrevive o comércio tradicional das barracas dos
tripeiros, convivendo com os stands da nova culinária portuguesa, tudo
redesenhado sob o patrocínio da revista “Time Out” — e é impossível ao carioca
não pensar que um dia, sem precisar ir tão longe, poderia estar assim, curtindo
a vida em paz, comprando suas flores, gastando pouco, beliscando o que
quisesse, na Cadeg de Benfica. Depois, sem entrar em pânico, passaria pela
Barreira do Vasco e chegaria em casa para contar aos que ficaram como foi bom.
Ao carioca-da-semana-passada, um dos períodos mais tristes da vida da
cidade, foi preciso ir até Lisboa para recolher histórias de não acontecimentos,
comer um bacalhau ao sossego e ter a sensação inenarrável de que não corre o
risco de ser assassinado na próxima esquina — e em Lisboa esses sonhos, essas
pataniscas simples, parecem cada vez mais fáceis de se realizarem. A cidade se
pacificou com suas tradições, entendeu feliz que um bom jeito de avançar é o da
refazenda das suas guarirobas. Ao invés de gourmet, os pastéis de Belém
procuram resgatar a receita original. E se em algum momento a cidade tentou
esquecer Amália Rodrigues, por causa de suas relações com Salazar, Lisboa
agora, em mais um arroubo de orgulho pelas suas referências, está cercada de
motoristas de táxi com os carros sintonizados na recente Rádio Amália, um
chorrilho de 24 horas de fados da grande cantora.
Na chegada ao Galeão, o carioca-da-semana-passada foi cercado pela
notória turbamulta de taxistas. Sonhou que uma Rádio Elizete Cardoso iniciava o
processo de pacificação geral e convocava a cidade a guardar suas facas.
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