segunda-feira, 1 de junho de 2015

Porque a oportunidade sugere que seja assinalada - Dia Internacional da Criança -  Aqui se transcreve um texto de A. Ferreira, publicado há dez anos (2005) no semanário «Expresso das Ilhas» e mais tarde no livro, «Inquietações em Crónicas Datadas», tendo como sujeito  crianças de e na rua. Mantém infelizmente e para nossos pecados, alguma actualidade.

Crianças de e na Rua… Que diferença faz?

Crianças “de” e “na” rua é uma designação que já fez (e vem fazendo) perder imenso tempo, acção e muito trabalho sério das instituições do Estado e da sociedade, sobretudo na discussão inócua dos casos da Praia, do Mindelo e do Sal que tem adiado políticas de efeitos eficazes para o combate deste mal inominável, porque monstruoso e terrível!

Crianças de e na Rua, distinção puramente técnica de sociólogos e técnicos sociais e tornada modismo e frase feita para debates substancialmente académicos que, na realidade, distraem os incautos, entretêm os políticos, não passando tudo de pura figura de uma retórica trágica.

Não nos deixemos enganar: O conteúdo é o mesmo, o significado é sensivelmente igual e as resultantes, infelizmente, em quase nada diferem.

Crianças de e na Rua, cujas pontas se diluem na realidade dos factos mostram, ou por outra, deixam perceber a tragédia humana de muitos meninos e, ultimamente, meninas, que se traduz no facto de serem escorraçados, de ignorarem a segurança de um lar, o afecto, a higiene, a alimentação e os cuidados básicos devidos por uma mãe e por um pai. Do mesmo modo está-lhes vedada – porque descuidadas pela família e ignoradas por quem de direito – a frequência da escola, a educação, e, portanto a oportunidade de aprendizagem e interiorização progressiva de valores e de princípios que farão delas, mais tarde, homens e mulheres válidos.

Não podemos continuar a ignorar a extensão e os efeitos do mal que, há mais de duas décadas, flagela o país de forma continuada e crescente, com particular incidência nas regiões urbanas e com enormes custos para a sociedade. É vê-las, às portas dos supermercados, das lojas de conveniências, nas imediações dos hotéis e dos clubes nocturnos, a exigir, tal é a agressividade que, na maior parte das vezes, pedem quando não ameaçam, assaltam e maltratam com instrumentos cortantes como facas, ou nacos de vidro, o pacato transeunte que calcorreia as ruas e os lugares da cidade, criando insegurança, diminuindo a capacidade humana de compreensão e de solidariedade pelo próximo, ainda que este próximo seja infanto-juvenil e pondo em causa uma opção estratégica do País  – o Turismo.

Temos todos a noção de que o rosário é longo, complexo, mas não insolúvel. Sim, o problema tem solução se se quiser! Se houver uma forte e determinada vontade, uma política eficaz (não a que procura votos a qualquer preço!) e que passa por muitos e transdisciplinares caminhos. Pela família, pela escola, pela sociedade, pela opinião pública, pela discussão do problema, de preferência sem “paninhos quentes”, pelo Estado através dos sectores que cuidam desta matéria.

Crianças de e na Rua, parafraseando a tão usada e abusada expressão dos nossos ilustres deputados, “para quando a solução?”. Embora neste caso seja adequada e oportuna a utilização da conhecida locução frásica tornada verbo – “paraquandar” – porque não se trata de abertura de caminhos vicinais ou de construção de um chafariz, problemas importantes, mas locais e de solução física, material, mas sim, de uma questão de âmbito nacional com reflexos profundos nas gerações vindouras que não se resolve apenas com dotação orçamental e que deve merecer atenção acrescida dos representantes da Nação. Enfim, já se “dormiu” tempo demais e as consequências nefastas são por demais evidentes e portanto à vista de todos!

Um pequeno passeio por alguns bairros, sobretudo os novos bairros, da cidade da Praia, revela o desenvolvimento extensivo de uma traça arquitectónica caracterizada por uma envolvente em gradeamentos de ferro, com o fim de evitar os assaltos em crescendo a que já não se dá nota à polícia pela incapacidade confessada desta em os resolver alegando impedimentos legais de protecção às crianças, porque são inimputáveis, sem qualquer contrapartida efectiva. O cidadão é confrontado, por vezes, com gana de fazer a indesejável “justiça com próprias mãos”, que não é, não pode nem deve ser timbre de sociedades ditas e tidas por civilizadas.

Não, mil vezes não! Não podemos continuar a assistir a esta regressão social e civilizacional que se tornou “normal” nos meios urbanos de, pelo menos, três das mais importantes Ilhas do País! Basta!

O governo tem que criar mecanismos efectivos de combate a este flagelo. A responsabilização dos progenitores é imperiosa. Um rastreio pela nossa administração (latu sensu) dá conta de inúmeros “responsáveis”, da classe política inclusive, obrigados, sublinhamos “obrigados” pelo Tribunal a descontar directamente no salário a pensão de alimentos. Como pode isto acontecer? Como pode um irresponsável ser eleito ou ocupar cargos de responsabilidade? Sim, porque se trata de alguém que não só quis fugir às suas responsabilidades como desrespeitar uma decisão judicial… A moralização e o respeito da e pela classe política passam por aí.

O permitir-se o alastramento da irresponsabilidade parental para com a criança que é trazido ao mundo, de qualquer maneira, abandonada primeiro pelo pai, a seguir pela mãe, e por fim não reconhecida pela própria família de que ela, a criança, chega a esquecer os nomes, é um atentado contra os direitos humanos! O Governo deve avocar o seu papel: uma política de população assumida e sem complexos; penalizar, de forma exemplar, os progenitores, a família, quanto mais não seja pelos efeitos dissuasores que dali adviriam. De outra forma, a listagem e as estatísticas elaboradas pelos Serviços que tutelam os direitos dos menores, sobre crianças que não deviam estar e muito menos ser da Rua, não passam de números sem qualquer significado!

Crianças de e na Rua, não interessa se “de” ou se “na”, devem constituir prioridade de uma política social por aquilo que é hoje e pelo que projecta para o futuro. Nenhum governo, mormente os que se dizem de esquerda, pode ignorá-lo. O combate deve ser encetado já e antes que seja tarde de mais…

Cabo Verde, quanto mais não seja, pela sua tradição cristã e, obviamente, humanística, não pode permitir que esta tragédia ganhe gerações.

A.    Ferreira

12/10/2005

 

 

 

 

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