Porque a oportunidade
sugere que seja assinalada - Dia Internacional da Criança - Aqui se transcreve um texto de A. Ferreira,
publicado há dez anos (2005) no semanário «Expresso das Ilhas» e mais tarde no
livro, «Inquietações em Crónicas Datadas», tendo como sujeito crianças de e na rua. Mantém infelizmente e
para nossos pecados, alguma actualidade.
Crianças de e na Rua…
Que diferença faz?
Crianças “de” e “na” rua é uma designação que já fez (e vem
fazendo) perder imenso tempo, acção e muito trabalho sério das instituições do
Estado e da sociedade, sobretudo na discussão inócua dos casos da Praia, do
Mindelo e do Sal que tem adiado políticas de efeitos eficazes para o combate
deste mal inominável, porque monstruoso e terrível!
Crianças de e na Rua, distinção puramente técnica de
sociólogos e técnicos sociais e tornada modismo e frase feita para debates
substancialmente académicos que, na realidade, distraem os incautos, entretêm
os políticos, não passando tudo de pura figura de uma retórica trágica.
Não nos deixemos enganar: O conteúdo é o mesmo, o significado
é sensivelmente igual e as resultantes, infelizmente, em quase nada diferem.
Crianças de e na Rua, cujas pontas se diluem na realidade dos
factos mostram, ou por outra, deixam perceber a tragédia humana de muitos
meninos e, ultimamente, meninas, que se traduz no facto de serem escorraçados,
de ignorarem a segurança de um lar, o afecto, a higiene, a alimentação e os
cuidados básicos devidos por uma mãe e por um pai. Do mesmo modo está-lhes
vedada – porque descuidadas pela família e ignoradas por quem de direito – a
frequência da escola, a educação, e, portanto a oportunidade de aprendizagem e
interiorização progressiva de valores e de princípios que farão delas, mais
tarde, homens e mulheres válidos.
Não podemos continuar a ignorar a extensão e os efeitos do
mal que, há mais de duas décadas, flagela o país de forma continuada e
crescente, com particular incidência nas regiões urbanas e com enormes custos
para a sociedade. É vê-las, às portas dos supermercados, das lojas de
conveniências, nas imediações dos hotéis e dos clubes nocturnos, a exigir, tal
é a agressividade que, na maior parte das vezes, pedem quando não ameaçam,
assaltam e maltratam com instrumentos cortantes como facas, ou nacos de vidro,
o pacato transeunte que calcorreia as ruas e os lugares da cidade, criando
insegurança, diminuindo a capacidade humana de compreensão e de solidariedade
pelo próximo, ainda que este próximo seja infanto-juvenil e pondo em causa uma
opção estratégica do País – o Turismo.
Temos todos a noção de que o rosário é longo, complexo, mas
não insolúvel. Sim, o problema tem solução se se quiser! Se houver uma forte e
determinada vontade, uma política eficaz (não a que procura votos a qualquer
preço!) e que passa por muitos e transdisciplinares caminhos. Pela família,
pela escola, pela sociedade, pela opinião pública, pela discussão do problema,
de preferência sem “paninhos quentes”, pelo Estado através dos sectores que
cuidam desta matéria.
Crianças de e na Rua, parafraseando a tão usada e abusada
expressão dos nossos ilustres deputados, “para quando a solução?”. Embora neste
caso seja adequada e oportuna a utilização da conhecida locução frásica tornada
verbo – “paraquandar” – porque não se trata de abertura de caminhos vicinais ou
de construção de um chafariz, problemas importantes, mas locais e de solução
física, material, mas sim, de uma questão de âmbito nacional com reflexos
profundos nas gerações vindouras que não se resolve apenas com dotação
orçamental e que deve merecer atenção acrescida dos representantes da Nação.
Enfim, já se “dormiu” tempo demais e as consequências nefastas são por demais
evidentes e portanto à vista de todos!
Um pequeno passeio por alguns bairros, sobretudo os novos
bairros, da cidade da Praia, revela o desenvolvimento extensivo de uma traça
arquitectónica caracterizada por uma envolvente em gradeamentos de ferro, com o
fim de evitar os assaltos em crescendo a que já não se dá nota à polícia pela
incapacidade confessada desta em os resolver alegando impedimentos legais de
protecção às crianças, porque são inimputáveis, sem qualquer contrapartida
efectiva. O cidadão é confrontado, por vezes, com gana de fazer a indesejável
“justiça com próprias mãos”, que não é, não pode nem deve ser timbre de sociedades
ditas e tidas por civilizadas.
Não, mil vezes não! Não podemos continuar a assistir a esta
regressão social e civilizacional que se tornou “normal” nos meios urbanos de,
pelo menos, três das mais importantes Ilhas do País! Basta!
O governo tem que criar mecanismos efectivos de combate a
este flagelo. A responsabilização dos progenitores é imperiosa. Um rastreio
pela nossa administração (latu sensu)
dá conta de inúmeros “responsáveis”, da classe política inclusive, obrigados, sublinhamos “obrigados”
pelo Tribunal a descontar directamente
no salário a pensão de alimentos. Como pode isto acontecer? Como pode um
irresponsável ser eleito ou ocupar cargos de responsabilidade? Sim, porque se
trata de alguém que não só quis fugir às suas responsabilidades como
desrespeitar uma decisão judicial… A moralização e o respeito da e pela classe
política passam por aí.
O permitir-se o alastramento da irresponsabilidade parental
para com a criança que é trazido ao mundo, de qualquer maneira, abandonada
primeiro pelo pai, a seguir pela mãe, e por fim não reconhecida pela própria
família de que ela, a criança, chega a esquecer os nomes, é um atentado contra
os direitos humanos! O Governo deve avocar o seu papel: uma política de
população assumida e sem complexos; penalizar, de forma exemplar, os
progenitores, a família, quanto mais não seja pelos efeitos dissuasores que
dali adviriam. De outra forma, a listagem e as estatísticas elaboradas pelos
Serviços que tutelam os direitos dos menores, sobre crianças que não deviam estar e muito menos ser da Rua, não passam de números sem
qualquer significado!
Crianças de e na Rua, não interessa se “de” ou se “na”, devem
constituir prioridade de uma política social por aquilo que é hoje e pelo que
projecta para o futuro. Nenhum governo, mormente os que se dizem de esquerda,
pode ignorá-lo. O combate deve ser encetado já e antes que seja tarde de mais…
Cabo Verde, quanto mais não seja, pela sua tradição cristã e,
obviamente, humanística, não pode permitir que esta tragédia ganhe gerações.
A. Ferreira
12/10/2005
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