MULHERES DE PANO PRETO - Texto de apresentação

domingo, 22 de novembro de 2015
Por: Manuela Letria Silva

Enquadramento e resumo da obra.
Trata-se de uma obra de ficção de feição historiográfica, contada num estilo vivo e espontâneo, em tom coloquial, próprio das atmosferas familiares de onde brota toda a intriga. Situa-se entre o romance e o drama histórico. Bem delimitado no espaço e no tempo, num acto de comprometimento o autor traz ao nosso convívio um testemunho sobre certos aspectos da história da nossa época.

Cito logo na 1ª linha do capítulo 1 “ a minha narrativa situa-se no período que medeia entre a criação do Liceu Honório Barreto e a Independência nacional ou um pouco mais – o rompimento do polémico processo da unidade Guiné Cabo-Verde. Trata-se de uma história apenas singular, naquilo que é individual e paradigmático para grande parte dos casais da época sujeitos às circunstâncias sociais e aos momentos históricos que se viviam”
Sob o signo da pedagogia cultural, convido-vos a mergulhar comigo no universo de “Mulheres de Pano Preto”, seguindo estas mulheres heróicas que acompanham o narrador e espicaçam as outras personagens a contar a história desse período, naquilo que tinha de mais enigmático.

O romance abre com o conhecimento travado entre Alice e Tomás, ainda nos bancos da escola, segue os seus desenvolvimentos normais, por vezes conturbado com a prisão arbitrária do marido, vencem todas as vicissitudes e quando tudo parecia ter contornos de final feliz, fecha de forma dramática com o anúncio da hipotética separação do casal, na sequência de uma cena de ciúmes, situação injusta para esta mulher de pano preto, vítima de humilhação e assédio sexual por parte dos algozes do poder. Com firmeza e determinação, na sua fragilidade tudo fez para não cair nas malhas do leão. Por ironia do destino, salva pelo filho que na sua ingenuidade a entrega ao pai sob capa de adultério.
Através da rememoração da adolescência, o narrador revisita espaços que marcaram esta fase tão importante da vida de todos; espaços onde a ficção concorre com a realidade, Liceu Honório Barreto, Praça do Império, de entre outros, espaços emblemáticos que povoam o imaginário do narrador e das demais personagens, viveiro onde germinaram as primeiras e verdadeiras amizades, relatadas em histórias de vida, através de personagens tão fiéis à sua realidade, que interagem com tanta naturalidade em estilo coloquial, com tanta verosimilhança, como é próprio de quadros realistas que acabam por estimular a emoção do leitor que se vê mergulhado na ilusão da referencialidade. Porém, este quadro altera-se drasticamente com a chegada dos guerrilheiros do PAIGC.

Os espaços onde se movimentam as personagens estão bem delimitados, em dois momentos distintos na narrativa, na Guiné, antes de 74, em Portugal, com a partida de alguns destes jovens para prosseguir os estudos ou na emigração, e na Guiné Bissau, pós 74/75, nos mesmos espaços, mas os contornos da intriga mudam drasticamente, a alegria contagiante de outrora, a esperança eivada nos discursos de celebração da independência cedem lugar à decepção e ao desânimo, a ponto de alguns equacionarem a hipótese do exílio como solução.
A história da Guiné e por arrastamento, a de Cabo Verde é apresentada nesses dois momentos fundamentais, protagonizada alternadamente pelo narrador e pelas perspicazes personagens femininas, preocupadas em desmistificar dogmas em torno de fenómenos que lhes inquietavam, através de insistentes indagações, para por vezes retirar a ferro informações consideradas tabu, como era o exemplo paradigmático o processo da Unidade Guiné Cabo Verde, tratado com alguma reserva e secretismo, não lhes custasse o preço da liberdade.

Do rol das personagens que se movem nesses espaços, destaca-se o casal Alice e Tomás e o casal amigo Pedro e Helena, sendo os primeiros, protagonistas que desempenham um papel primordial na narrativa, em torno dos quais se desenrola toda a intriga. Primeiro em Portugal, para onde se deslocaram muito cedo para prosseguir os estudos e depois na Guiné dos pós 25 de Abril, para participar no processo de Reconstrução Nacional. A casa deles, bem como a do casal amigo tanto em Portugal, como na Guiné, funcionam como espaços de acolhimento para convívios periódicos entre amigos cabo-verdianos e guineenses, constituem o cenário onde se desenrola toda a intriga. Nesses encontros de socialização em que procuravam estar sintonizados com a terra, as conversas giravam sobretudo em torno da política e da independência, temas candentes da realidade de então, a ditadura do Estado Novo, a Censura, o governo de Spínola, as melhorias que este ia introduzindo, as intervenções sociais de alguma visibilidade, o jogo de cintura para ganhar a confiança das populações, as acções da PIDE, as movimentações dos comandos militares portugueses e as da guerrilha do PAIGC, e com alguma acuidade a implantação do Partido em Cabo-Verde e o processo da Unidade Guine Cabo Verde,
No segundo momento, o do pós independência entram em cena novos protagonistas Tomás, Benjamim, Ramsés, sob o comando da arguta Sara que de Cabo-Verde, através das suas cartas a Ramsés, vai dando conta das similitudes entre a situação política dos dois países, as prisões arbitrárias, as perseguições, o medo, a intolerância. 

Normalmente, quando as introduz, o narrador descreve-as física e psicologicamente, deixando indícios que permitem ao leitor descortinar a natureza das suas intervenções.
Pode-se ser tentado a vislumbrar traços autobiográficos do autor, mas o concurso de todas as personagens, a par do narrador personagem, enquanto criaturas ficcionadas do autor textual, na apresentação (representação) deita por terra esta pretensão.

Note-se, que o próprio autor teve o cuidado de sublinhar na contra capa e cito ”por favor, não entre nem ponha ninguém nas minhas personagens ainda que lhe pareçam conhecidas ou mesmo familiares. Trata-se de um exercício de ficção e como tal, respalda-se ou apoia-se em referentes, eventualmente reais”
A história de Alice e Tomás, como tantas outras começa na adolescência, numa época em que, apesar de aceite, a convivência entre os géneros não era encorajada nem entre os mais próximos, e a submissão ao género considerado mais forte fazia escola.

Os referentes do texto, personagens como Alice e Tomás e as demais personagens, acções como os bafatórios, os encontros de socialização, a tentativa de violação da Alice, estados como a decepção generalizada de algumas personagens, as indagações sobre a implantação do PAIGC em Cabo-Verde, as formas de resistência, movimentos de resistência anteriores ao PAIGC, a nostalgia dos actores deste romance constituem objectos de ficção, isto é, não existem no mundo empírico, não são factualmente referenciáveis, constituem objectos de ficção.
Todavia, entre estes referentes figuram objectos que têm, ou tiveram, existência no mundo empírico: a Praça do Império, o Liceu Honório Barreto, O Estado Novo, a guerrilha, o totalitarismo, os movimentos de resistência anteriores ao PAIGC, o líder da UPICV, os Claridosos, os nativistas, em suma uma aproximação semântica com o mundo empírico, com os seres, as coisas, os eventos, os sistemas de crenças e convicções, as ideologias, existentes no mundo empírico, É um processo natural porque a literatura germina no seu contexto existencial, de onde brota e se revitaliza.

Aliás, tem sido considerado um contra senso tentar divorciar as ideologias da autonomia semântica do texto literário, porque “as ideologias são um elemento integrante dos signos, das regras e das convenções dos sistemas semióticos culturais.”
A  pseudo-referencialidade não anula a referencialidade do mundo empírico. Trata-se de uma realidade fundada não na correspondência real, mas na modelização, (entenda-se trabalho do criador) desse mundo do homem e da experiencia vital.

Pela própria especificidade do código de textos desta natureza, vivenciamos o convívio e coexistência natural entre personagens e acções puramente ficcionais com personagens e factos que tiveram de facto existência histórica.
A verdade está no texto enunciado, isto é, não denota factos acontecidos no mundo actual e historicamente verídicos, não existiu no mundo empírico, porém, tudo é verdadeiro no mundo possível criado pelo texto literário, é verdade do narrador.

Apesar de o autor ter optado pela apresentação de episódios mais ou menos independentes, e da complexidade da intriga com vários episódios entrelaçados, a unidade da acção é assegurada pela observância cronológica dos factos, em torno da acção principal que congrega a si as histórias paralelas; os episódios e as evocações fluem-se e encadeiam-se naturalmente, garantindo a articulação lógica entre si, num desfecho dramático cuja solução fica em ‘suspense’, com a hipotética separação do casal e a manutenção da atmosfera e cor local que empresta o título ao romance ”Mulheres de Pano Preto”,
Pelo seu valor documental e pelas reflexões que suscita é uma obra cuja leitura se impõe.
 
 
Fonte – Víctor Manuel de Aguiar e Silva, Ficcionalidade e Semântica do Texto Literário, Teoria da Literatura, 8ª ed. pág. 639 a 647.

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