Mulheres de Pano Preto de A. Ferreira

sábado, 7 de novembro de 2015

- uma leitura –
Eis um romance histórico que nos traz de volta sob forma, a um tempo, ficcionada e documental, os acontecimentos mais relevantes, mais marcantes que configuraram o imediatamente antes e alguns anos após, as sagas das independências da Guiné e de Cabo Verde.
Na minha opinião a obra dispõe de duas partes interligadas embora. A saber: uma história de amor entre Alice e Tomás, tendo como cenário Bissau, a cidade linda (embora real, aqui também reside um “olhar afectivo” na descrição do narrador) e ajardinada, antes da chegada dos guerrilheiros do PAIGC. Narra igualmente a vida quotidiana dos estudantes e dos bissauenses  ao longo do tempo.
O leitor vai-se apercebendo da movimentação político-partidária do tempo, da mobilização  no meio urbano e bem forçada no interior do país. O recrudescimento das acções persecutórias da PIDE, a intensa actividade militar portuguesa e a da sua contraparte, o PAIGC; das tentativas de um desenvolvimento acelerado da Guiné, da aparente fartura resultado de uma economia de guerra; da “Guiné melhor” spinolista, entre outros factos que historicamente marcaram a época.
Em suma, é-nos dado sentir e acompanhar a rápida transformação do comportamento e das atitudes, não só  da juventude da época, mas também e sobretudo, dos habitantes da capital guineense.
A segunda parte do livro, considerei-a mais histórica, mantendo embora toda uma  estrutura romanceada, bem patente na criação e na interacção das personagens, tantos as masculinas, Tomás, Pedro, Ramsés, Benjamim, mais protagonistas, entre as demais personagens, e as personagens femininas de que adiante daremos conta em separado, dado a relevância das mesmas.
Entrámos em Cabo Verde dos anos de 1974/75  através da  abordagem - da situação social e política conturbada que então se vivia no Arquipélago – de Benjamim . É ele quem define de forma lapidar como alguns se transformaram em “heróis” e em “combatentes da liberdade da Pátria” com muita ironia de mistura. Diz  Benjamim a determinada altura: (...) “ depois do 25 de Abril tornámo-nos todos corajosos e procurámos protagonismo a todo o custo. Lançámo-nos todos à conquista de heroísmo (...)”.  E continua a sua descrição da movimentação político/partidária nas ilhas com algum sarcasmo, pois que de algum oportunismo evidente se tratava uma vez que já  não havia necessidade de mostrar “tamanho zelo” no serviço patriótico, naquele momento, dado que as FA, (Forças Armadas Portuguesas), o Movimento dos Capitães de Abril, estavam a favor da independência e em ligação amistosa  no geral, apenas e só com o PAIGC.
Mas é sobretudo nas cartas de Sara a Ramsés, que o leitor encontrará através de um certo realismo descritivo, o quadro daquilo que se passava aqui nas ilhas nas vésperas da independência e logo a seguir, com a actuação monolítica do poder recém-instalado. São peças bem articuladas dentro da obra e que sem quebrarem o ritmo da narrativa, servem de adjuvantes ao narrador, pois que com ele partilham a tarefa de contar as peripécias que  configuraram afinal, os primeiros anos do país insular.
Escreve Sara a determinada altura: “(...) pretende-se montar aqui um cenário de pós-guerra, como na Guiné-Bissau, como se aqui tivesse havido guerra que felizmente, como sabes bem, aqui não houve. Talvez para enganar a História e passar a imagem para as gerações vindouras que a luta armada também se fez em Cabo Verde. (...)”
Sara continua a missiva relatando outras e mais, de entre as turbulências aqui vividas: “(...) Houve gente expulsa. Cabo-verdianos expulsos de Cabo Verde. Quem pode compreender isto? (...) e desta forma também geram a fuga da elite cabo-verdiana... Fala-se de medidas de segurança. Segurança de quem ou contra quê?(...)
As cartas de Sara acabam por ser documentos que retratam com algum pormenor a época histórica e o tempo fundamental da narrativa, «Mulheres de Pano Preto»
Por outro lado, e subjacente às histórias contadas, há  como que  em pano de fundo e que perpassa todo o romance, o sentimento e a percepção, da violência, do despotismo e da arrogância que acompanharam a assunção do novo poder nos dois países sob égide do PAIGC.
«Mulheres de Pano Preto» a simbologia do título, o significado profundo da dor que a mulher /mãe/irmã/esposa/companheira, sente e manifesta sob formas várias. Aliás, destaca-se no romance o protagonismo das personagens femininas, Alice, Helena, Sara, entre outras, são os rostos e as vozes daquilo que o romance contém de mais lúcido e de mais assertivo em termos de opinião. São elas quem, nos convívios em casa de cada uma e através de intensos e de vivos diálogos, debatem, criticam com veemência os acontecimentos coevos ao discurso narrativo da obra, ao momento histórico por que passavam os dois países (Cabo Verde e Guiné), na vã tentativa de construção de uma unidade forçada e violenta e que se revelou inócua. São as personagens femininas que transmitem ao leitor o presente e o devir da narrativa histórica inserta no livro.

Interessante é que nos pareceu que o autor quis distinguir de forma muito clara, essa percepção mais inteligente, mais reflectida nas falas e nas análises das suas personagens femininas.
Na minha opinião  são elas que prendem e “fixam” o leitor e o fazem chegar  com interesse, ao fim do enredo deste romance/histórico.
«Mulheres de Pano Preto» de A. Ferreira, é um convite ao leitor para “viajar” ao passado recente destas ilhas e ao da vizinha Guiné e encontrar alguma explicação histórica sobre factos que nos fizeram chegar ao nosso hoje vivencial de 40 anos.
A escrita é despojada, escorreita, muito ao estilo do autor que nisso nos iniciou no seu primeiro livro publicado: «O Passaporte», em 2002.  
 

 

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