MNIN ISJUS TITÁ NASCÊ NA
MAR
Adriano Miranda Lima
Nhô Mano passou em primeiro lugar pelo Plurim de Pêxe (3) para arranjar isco, e a seguir deu umas voltinhas pela rua da Canecadinha, onde adquiriu alguns suprimentos, incluindo petróleo para as cafucas; depois, foi ao bote ultimar os preparativos, o que sempre preferia fazer sozinho, com a sua habitual calma e meticulosidade.
─ Ó nhô Mano, no Natal? Cmanera? (4) ─ Sem ter tempo de nhô Mano
reagir, Fidjim adiantou:
─ Eu por acaso já tinha
combinado umas coisas com a Bia.
O Muxim é que não abriu a boca,
entretendo-se a rapar uma unha com um canivete, mesmo quando nhô Mano olhou
para ele interrogativo, como que a pedir a sua opinião. Então o catraeiro
respondeu:
─ Mnis, sei que hoje é véspera de Natal, sim senhor, e vocês têm
razão, lá isso têm. Mas já viram que ontem não pescámos nada e estamos todos quebrados (5)? Não será melhor
arranjarmos um dinheirinho para amanhã podermos ter em casa ao menos um bom
almocinho com a família e sentir uns trocos a mexer no bolso? Depois, essa
coisa de Natal é mais para rico, não para nós. Por algum motivo o povo diz que
em Cabo Verde “ramede de pobre é pobreza”,
mas é claro que temos de lutar contra essa fatalidade. Vocês interessam-se lá
por essa coisa de presépio, Menino Jesus, prenda de Natal? Ora, ora…
Sem coragem para contrariar
quem lhes dava a ganhar o pão do dia, lá se levantaram os pescadores, seguindo
em silêncio atrás do seu patrão em direcção ao Flor da Baía, nome com que ele
baptizou o bote. Com os seus 66 anos, nhô Mano ainda se apresentava com todo o
vigor para as duras lidas do mar. Os músculos retesados dos seus braços
compridos eram a prova de muitos anos a dar ao remo.
─ Eu, Mano de nhâ Ludovina, vos
digo que não tem piada nenhuma festejar sem dinheiro no bolso. Nem Natal, nem
São João, nem Carnaval, nem festa nenhuma. Aliás, foram poucos os natais em que
não estive derriba de mar, desde que me fiz homem. A vida não é um mar de
rosas, moços.
Interveio Muxim, quebrando o
seu habitual mutismo: ─ Eu também não. E não me recordo de alguma vez ter
havido festa de Natal em minha casa. Só me lembro de o meu pai, que tinha
manhas de funileiro, me ter feito um navio de lata bnitim. Tinha eu seis aninhos, e o meu pai copiou o modelo de um
vapor inglês que estava fundeado na Baía.
─ Eu, brinquedo, brinquedo…
nunca cheirei nenhum – disse o Lela. A não ser uma cornetinha que me deram na
catequese nos Salesianos. Tinha os meus onze anos e passei o dia todo a tocar,
fazendo uma trabuzana tal que a avó Tanha me mandou ir tocar para a rua...
─ Digo-vos que Natal, Natal, é
em casa de gente branca – interrompeu-o o Fidjim – a minha mãe foi criada em
casa de gente rica e lembro-me do que ela contava. E no dia de Natal aparecia
sempre com coisas boas de comer que lhe davam das sobras, bolo, pudim,
croquetes... Também lhe davam roupa usada em bom estado ainda.
─ Rapazes, nesse balaio há
peixe frito, pastéis de milho e pão da padaria Jonas, que é a nossa ceia, e…
uma garrafinha de grogue, que é o meu presente para vocês não pensarem que sou calisto (6). Gastei os últimos escudos
que trazia no bolso, mas com fé em Nosso Senhor vamos fazer esta noite um bom
dinheirinho.
Os homens ouviram e
continuaram no seu afã de lançar anzol e sondar os locais mais propícios, no
que o Muxim tinha um especial faro. As duas cafucas
estavam já acesas e ao longe divisaram outras luzinhas a piscar sobre o mar,
quais pirilampos a imitar iluminações de Natal no negrume da noite.
─ É rapaziada de S. Pedro. Eles
também devem andar quebrados como
nós…
─ Não estejas agora com
remoques, Lela ─ retorquiu Muxim. Não somos só nós que trabalhamos no Natal,
trabalham os doutores, os enfermeiros, os guardas de alfândega, os polícias de
capitania, e outras mais criaturas.
O Lela estava debruçado sobre o
bote a recolocar isco nos anzóis quando nhô Mano se virou para o Muxim e lhe
segredou junto ao ouvido, sem que os outros ouvissem: ─ Vê lá tu, o Lela não é
mau rapaz, até trabalha muito bem quando quer, mas é preciso espicaçá-lo. Às
vezes olho para ele e lembro-me do meu filho macho, o Humberto, que
infelizmente morreu na flor da idade.
─ Ah, lembro-me bem do Beto,
que Deus haja. A vida é assim, nhô Mano, mas você tem a sua filha Luzia, por
sinal boa rapariga.
Nesse ínterim, o catraeiro
disse aos companheiros que ia dormitar um pouco porque já não tinha a idade
deles e o corpo estava mesmo a reclamar. Enroscou-se sobre um dos assentos do
bote e não tardou a entrar nos braços de Morfeu.
─ Acordem, acordem, olhem lá
ao longe, no horizonte, dois palmos à esquerda de Santo Antão!!! Mnin Isjus titá nascê na mar (7), embrulhado num lençol de
nuvens!!! Olhem bem, olhem bem!!!
Nhô Mano, estremunhado,
esfregou os olhos e virou a cabeça para onde apontava o seu jovem companheiro.
Mirou, mirou, e disse:
─ Onde é que estás a ver o Mnin Isjus, Lela? – Este voltou a fitar
o horizonte, desta vez com as mãos em canudo.
─ Estava lá, sim, juro!!! O
Fidjim é testemunha, que ele também viu!!! E o Muxim também deve ter visto!!!
─ Ó Lela, o que vi foram umas
nuvens em forma de figurinhas, mas qual é
(8), rapaz?, não havia nenhum Mnin
Isjus, ─ respondeu o Fidjim ─ às vezes as nuvens tomam cara de gente…
─ Eh lá, a mim não me metam nisto, que eu até
nem acredito nestas coisas de religião! ─ rematou o Muxim.
Então, nhô Mano, conhecendo bem
o seu mais jovem companheiro, teve um pressentimento e perguntou:
─ Lela, onde é que está a
garrafa de grogue que ficou acima de meio quando fui dormir? ─ O Lela, acabrunhado, mostrou a garrafa,
já completamente vazia. Todos deram uma gargalhada e o catraeiro exclamou, todo
divertido:
─ É sempre o mesmo. Não se
pode confiar uma garrafa a este rapaz. Agora vais ser tu a pagar-nos uma rodada
de grogue no Boca de Tubarão!
(2) Sistema de pesca formado por um longo fio e vários anzóis.
(3) Mercado de Peixe
(4) Expressão crioula interrogativa que significa: “Então, como?”
(5) Termo crioulo que significa estar-se sem dinheiro, vindo do inglês
broken.
(6) Termo crioulo que significa forreta.
(7) Tradução do crioulo mindelense para o português: “Menino Jesus está a
nascer no mar”
(8) Expressão típica em crioulo que significa: “Como assim, qual é a tua?”
Tomar,
Dezembro de 2015
Adriano
Miranda Lima
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