· Escrito por Antonio Monteiro, Expresso das Ilhas
Depois de “O passaporte”, publicado em 2002, Armindo
Ferreira volta às lides literárias com “Mulheres de Pano Preto”, um romance
histórico de grande fôlego em que pretende suscitar um debate
desapaixonado sobre a história recente da Guiné e Cabo Verde. Para isso, sob pretexto
de uma história de amor, o autor reanalisa de forma ficcional e documental os
acontecimentos mais marcantes do período imediatamente antes e logo a seguir à
independência dos dois povos. Apesar de desmistificar muitos factos e
acontecimentos ocorridos nos últimos 40 anos, o autor vê o seu livro apenas
como um contributo para a pacificação com a nossa história.
Expresso das ilhas – O seu livro é publicado em edição
do autor. Porquê?
Armindo Ferreira – Boa pergunta. É que é difícil obter
patrocínios e conseguir uma editora para se publicar um livro. Depois levam
muito tempo a decidir. E como não sou escritor, fiz um esforço para editar o
meu próprio livro, sem ter que me sujeitar a determinadas burocracias e tempos
de espera que não se coadunam com a minha maneira de ser. Também será porque há
neste meio de patrocínios determinadas práticas com as quais não concordo,
porque não há critérios. Os privados que dêem o seu dinheiro a quem quiserem.
Agora as instituições públicas que fazem patrocínio, deviam ter regras fixas e
públicas para que os patrocínios fossem apreciados porque o dinheiro é de todos
nós.
A questão foi colocada mais no sentido de saber se duvidava da qualidade do livro que escreveu e por isso resolveu avançar com edição de autor.
Não duvido porque não tenho
pretensão nenhuma. Pelo seu conteúdo, achei que era importante publicar o livro
agora, no momento que estamos a atravessar. Se notou bem, o livro é um romance
com laivos históricos para situar o leitor num determinado tempo. É um tempo
que não vem sendo contado convenientemente. Nós estamos a apagar determinados
traços de história para tentar reescrevê-la de outra forma. E foi justamente o
que eu quis fazer: tentar repor esses traços para que os mais novos saibam o
que na realidade se passou – embora sob forma ficcionada, que leve o
leitor a sentir aquilo que se vivia na altura…
Então podia levar um pouco o
véu sobre o enredo do romance?
De certa forma é uma história de
amor passada numa época turbulenta: antes da independência, após e aquela fase
que culmina com o rompimento do polémico processo da unidade Guiné-Cabo Verde.
E como se poderá ler tem como protagonistas Alice, Tomás e outros antigos
estudantes do Liceu Honório Barreto, em Bissau.
Li numa recensão ao seu livro que quis distinguir de
forma clara a percepção mais inteligente, mais reflectida nas falas e nas
análises das suas personagens femininas.
Não foi intencional. Foi uma leitura
de quem fez a recensão. Talvez haja quem ache que os homens saíram
beneficiados… Mas foi apenas uma leitura. Não tive essa intenção.
O título “Mulheres de Pano Preto” reforça essa
leitura.
Não sei se se lembra de uma canção
de José Carlos Schwarz “Mindjeres di pano preto” que são aquelas mulheres
que durante a luta perderam os filhos, os netos, os irmãos e os maridos e com a
chegada do PAIGC pensaram que tudo ia mudar, continuaram a perder os seus entes
queridos, porque o PAIGC trouxe a independência, mas não trouxe a liberdade. O
regime autoritário que existiu antes, continuou e talvez um pouco mais
autoritário ainda. Portanto, a independência não calou a dor dessas mulheres,
elas continuaram a chorar.
O seu livro narra uma história de amor, mas tem um
desfecho pouco romântico: Tomás é preso arbitrariamente e quando sai da prisão
acusa a mulher de ter cometido adultério…
Bom, no livro há precedentes que o
levaram a tomar essa atitude. Foi o reflexo da sociedade que se criou, uma
sociedade cheia de desconfiança, de dúvidas, de incertezas e uma sociedade má
em que tínhamos uma classe que dominava e outra que foi destruída. Essa
destruição teve reflexos nas famílias. O facto de Alice e Tomás não se
entenderem no fim era expectável: foi a esperança que nós tínhamos alimentado
que acabou por se tornar num pesadelo. “Mulheres de Pano Preto” não é um
romance cor-de-rosa. É um desfecho que está em sintonia com o tempo que então
se vivia. Muitos casais se desfizeram com a chegada dos novos donos do poder.
“Mulheres de Pano Preto” é um
romance cabo-verdiano ou guineense?
Reflecte os dois países, Guiné e
Cabo Verde em partes quase iguais, porque a acção do livro desenrola-se no
tempo da unidade Guiné-Cabo Verde. Portanto, havia formalmente – porque os dois
povos nunca aceitaram a unidade – uma unidade que era imposta pela força.
Aliás, ao pequeno ai, como se viu, aquilo desfez-se com o gáudio das duas
partes.
É um romance autobiográfico?
Nada que se pareça comigo. Senão
seria uma multiplicidade de alter egos pelas personagens do livro. Tem uma ou
outra memória pessoal, mas as afinidades terminam por aí.
Mas como diz na abertura do romance, as suas
personagens apoiam-se em referentes reais.
Sim, é natural que se respaldem em
referentes reais: já não se inventa nada. Mas quando construí as minhas
personagens não estava a pensar minimamente em ninguém em particular.
“Mulheres de Pano Preto” é um romance histórico com
uma precisão de datas e acontecimentos pouco comuns em livros deste género.
Como se documentou?À medida que ia escrevendo, fui consultando os livros e sobretudo ouvi pessoas que presenciaram esses acontecimentos. Portanto, os actores directos nessas acções. Por exemplo, quando falo da morte de António Buscardini [Chefe dos Serviços de Segurança da Guiné-Bissau na altura do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980] foi gente que esteve envolvida nisso que me contou. Mesmo quando descrevo o 14 de Novembro, com Nino Vieira a ser interpelado pelo Buscardini, são histórias que eu recolhi de gente que esteve ligada ao assunto. Portanto, é uma obra de ficção mas baseada em factos reais.
O que o autor quis dizer com “Mulheres de Pano Preto”?
O leitor, melhor do que eu, tirará
as suas conclusões do romance. O que quis dizer, escrevi-o no livro. O que as
pessoas irão pensar do que eu disse, é uma outra história. Portanto, é
preferível que as pessoas pensem naquilo que irão ler e que cheguem às suas
próprias conclusões. Da minha parte, eu quis levar ao conhecimento das pessoas
determinadas factos que marcaram uma época. A interpretação que poderão vir a
fazer do livro ultrapassa-me, porque o livro já não é meu, já é do leitor. Fará
as interpretações que bem entender, mas aí lavo as minhas mãos, se puder.
Diz que narra factos para levá-los ao conhecimento das
pessoas, mas emite juízos de valor sobre estes factos. De propósito?
No livro há um narrador que não é o
autor, mas pode ser que uma das personagens seja o autor. Em todo o caso, há
uma distinção entre o narrador, de facto… Faço esta intromissão de propósito,
achei que ficava bem. Só por isso.
Um exemplo. “A independência de Cabo Verde é fruto
fundamentalmente do 25 de Abril”.
Não, isto é um diálogo. Note-se que
em todo o livro há um pró e um contra. Portanto são argumentos. Há argumentos
segundo os quais a independência de Cabo Verde é fruto apenas do 25 de Abril.
Os combatentes que chegaram depois a Cabo Verde lutaram na Guiné para a
independência da Guiné. Eles não foram mandatados pelo povo cabo-verdiano para
combaterem por eles na Guiné. Portanto, é o povo da Guiné que deve estar
agradecido dos combatentes cabo-verdianos na Guiné. Em Cabo Verde não
combateram. Esta é uma lógica que pode até não ser a minha, eu posso ter outra.
Mas é preciso pôr todos os argumentos em jogo para que o leitor tire depois as
suas conclusões, porque é necessário hoje um debate sério sobre a nossa
história recente, despido de qualquer preconceito. É que nós passamos por um
período ditatorial duro em Cabo Verde: houve prisões arbitrárias, houve
tortura e houve mortes. Hoje os agentes desse regime são tidos como democratas
e a dar até lições de democracia. Todo o homem muda, mas o seu carácter é
imutável depois de formado. O que proponho no livro é que façamos um debate
sobre isso e não tomar como dado adquirido determinadas coisas, que por isso
não se discutem.
“Mulheres de Pano Preto” pode ser considerado um
romance epocal, no sentido em que cobre um longo período, comum a muitos
cabo-verdianos da sua geração, que começa no liceu e termina com o fim do
efémero projecto de unidade Guiné-Cabo Verde.
Sim, apanha toda uma época que
começa com o liceu, a entrada para a tropa colonial, depois a entrada para a
clandestinidade, as guerrilhas, a vivência em Lisboa, o regresso à Guiné, o
regresso outra vez a Lisboa, porque o ambiente de guerra não é muito favorável
e, com a independência, o regresso utópico porque quase todos nós tínhamos a
ideia de que independência iria resolver todos os problemas. Hoje sabemos que
só a juventude pode pensar assim. A independência foi apenas um passo para a
resolução dos problemas. Mas mesmo assim, as pessoas que protagonizaram a independência
não estavam preparadas para essa fase. E se notarmos bem até Amílcar Cabral
chamou atenção a isso. Ele disse que quando formos independentes iremos
encontrar outras pessoas que saberão levar avante essa fase. Claro que os tipos
que fizeram a guerra não pensaram assim, porque acharam que eram capazes. E o
resultado é que a Guiné-Bissau, 42 anos depois da independência, não sabe ainda
o que é o desenvolvimento e não tem paz. Porque eles formaram militares, eram
bravos combatentes, mas não estavam preparados para governar um país.
Não é muito pretensioso querer lançar com o seu
romance um debate sobre toda uma época vivenciada na Guiné e Cabo Verde?
Não é lançar, mas suscitar. Pode
parecer pretensioso, mas não sou o primeiro a fazer isso. Há outros que já
escreveram sobre isso. É mais uma achega para o debate. Quando escrevo no livro
que pretendo fazer um debate, quero dizer que pretendo juntar-me àqueles que
querem fazer o debate da nossa história recente, dos últimos 40 anos, porque de
outra forma vamos ter uma história que não é a nossa história real. A história
baseia-se em factos reais e depois há as interpretações. Por exemplo, os
festejos do quadragésimo aniversário foi a glorificação do Partido Único. E em
boa verdade, ninguém defende o Partido Único, ninguém defende o totalitarismo,
nem o autoritarismo. E o Partido Único foi isso.
O seu livro traz à luz factos relevantes e
desmistifica outros como a suposta recepção do Papa Paulo VI aos líderes Amílcar
Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos. Porque não decidiu escrever um
tratado histórico?
É que um ensaio histórico carece de
maior investigação e ela tem que ser profunda. Os dados têm que ser
contraditados, porque há sempre uma fonte contrária. Eu não tenho formação nem
capacidade para fazer isso. Todavia eu gostava que alguns pontos desse percurso
de mais de 40 anos fossem conhecidos. Foi essa a minha motivação.
Qual a sua expectativa quanto à recepção do seu livro?
Fiz uma edição muito reduzida. Gostaria que o livro
fosse lido e vou deixar aqui o meu email para que as pessoas que o lerem me
coloquem directamente, se assim o entenderem, as suas questões: agregofer.jr@gmail.com. Tenho também já aberto um endereço
só para acolher essas questões que é agregofer.jr@outlook.com. As pessoas podem não estar de
acordo com os dois pontos de vista que normalmente tenho. É que pode muito bem
existir uma terceira via. Podem dizer ‘aqui falhaste, etc’. Por exemplo, quando
dizem que as Forças Armadas têm 50 ou 40 e tal anos tenho que dizer que é uma
aberração histórica. Os Estados é que têm exércitos, ou seja o exército não
precede o Estado. Temos também, como escrevo no livro, a independência da
Guiné-Bissau proclamada, segundo o PAICG, em Madina do Boé, a 24 de Setembro de
1973 Só vou avançar um pormenor. A Guiné dita Portuguesa tinha cerca de 50 mil
homens armados e tinha aviação. Seria extremamente temerário fazer as eleições
com data, hora e local marcados nesta zona. Isso já diz tudo. Depois há as
declarações do então governador e chefe das forças armas da Guiné-Portuguesa,
Bettencourt Rodrigues, que disse que durante todo esse dia aviões e
helicópteros percorreram toda a zona de Madina do Boé. Acredite se quiser, mas
é logico que sabendo de antemão da hora e local da proclamação, que os
portugueses fizessem isso. Não digo mais nada. Cada um que tire as suas
conclusões. Pronto, ficou para a história Madina do Boé, mas é um mito. Mário
de Andrade explica isso muito bem. Como se diz, uma mentira contada mil vezes
passa a ser verdade.
Os factos que traz no livro podem estragar a festa da celebração dos 40 anos de independência?
Acho que não, pode ser tomado com um presente na decorrência dos 40 anos da independência nacional. Podia ser pretensão a mais minha, mas se alguém achar que o livro pode ser considerado dentro desse âmbito que o faça, mas considero pouco provável. Em todo o caso a ideia não é estragar a festa, mas se calhar fazer a festa com verdade. Não sou detentor de verdades absolutas, por isso trago sempre no livro o ponto e o contraponto. Poderá haver mais, mas é preciso fazer este exercício para que se chegue a uma plataforma de entendimento. Além disso, é preciso pacificarmos com a nossa história
0 comentários:
Enviar um comentário