Alerta
geral. Diplomacia maltrata ortografia. Pede-se divórcio. Urgente
Por
Nuno
Pacheco*
Este podia ser um anúncio
barato, daqueles que poupam palavras para economizar dinheiro. Mas é apenas uma
reacção, em síntese, ao visionamento do debate que ocorreu no Brasil, na
passada terça-feira, em torno do Acordo Ortográfico de 1990 (vulgo AO90). Como
anunciado, a sessão (transmitida em directo pela TV da Câmara dos Deputados,
daí poder ser vista em Portugal) contou com o deputado Jaziel Pereira de Sousa
(o requerente, a presidir), o ex-lexicógrafo chefe da Academia Brasileira de
Letras Sérgio de Carvalho Pachá, o escritor Sidney Silveira, a professora Ami
Boainain Hauy e a embaixadora Márcia Donner Abreu, em nome do Ministério das
Relações Exteriores (MRE, que por cá é Ministério dos Negócios Estrangeiros, ou
MNE) — única representante oficial, já que Ministério da Educação nem vê-lo
(talvez a língua tenha pouco que ver com a educação, quem sabe?), tal como a
Academia Brasileira de Letras (ABL), que, no seu comportamento distante e
reumático, ficará para futura audiência no mesmo local.
Que não era nenhum café,
como um leitor do PÚBLICO maldosamente sugeriu nos comentários à notícia da
iniciativa, mas sim a Comissão de Educação (como também por cá se usa) da
Câmara dos Deputados do Brasil, no coração de Brasília. Tudo muito
institucional, como deve ser. Pois bem: o debate começou com as apresentações
da praxe e não tardámos a saber as opiniões dos participantes. Sidney Silveira
brandiu vários argumentos contra, dizendo mais tarde que o AO tinha sido
concebido por “motivos diplomáticos e políticos” e que “está bom para ir para o
ferro-velho, não para ser ratificado” (ou rectificado): “Não rectifiquemos,
revoguemos.”
Sérgio Pachá (lexicógrafo,
filólogo, professor de literatura, tradutor, poeta) voltou a explicar como o AO
ressurgiu dos mortos nos idos de 2006-2007, o que já havia feito numa célebre
entrevista em 2014 (e o resto desta história sabemo-lo bem), e sublinhou as
“razões nada ortográficas pelas quais este mostrengo entrou em vigor”, dizendo
que “a pressuposição, a crença, de que a ortografia de uma língua tem de ser
idêntica em todos os lugares onde é falada é uma falácia desmentida pelos
factos.” E, dando como exemplo o facto de ter vivido 15 anos nos Estados
Unidos, onde se foi dando conta da diferença na escrita de vocábulos entre o
inglês de lá e o de Inglaterra (sem que isso causasse quaisquer problemas),
comparou o português de Portugal ao do Brasil: “É a mesma língua, mas não é a
mesma fonologia.”
Na
audiência brasileira, o acordo ortográfico perdeu por três a um. A diplomacia
continua avessa às razões da língua
Ami Boainain Hauy,
professora, autora de uma volumosa Gramática da Língua Portuguesa Padrão, além
de apontar várias falhas e erros gramaticais às normas do AO90, revelando o
“caos, o descaso, com que foi redigido”, declarou-se contra ele: “Abomino a
redacção do texto e o seu conteúdo também.” E mais adiante: “Espero que seja
revogado.”
De onde veio a concórdia, o
assentimento, a paz? Da diplomacia! A embaixadora Márcia Donner Abreu veio
então explicar o “quanto este acordo é importante para o Brasil”, até pela
“projecção do poder do Brasil no mundo” (“poder brando”, ou “soft power”, como
fez questão de sublinhar), garantindo que o acordo é o “núcleo duro” de uma
“língua una”. Disse depois algo aterrador: que não passou para os filhos livros
escritos na ortografia anterior (clássicos, até), ninguém saberá por que medos.
Devíamos queimar as bibliotecas, será? Explicou ainda que o AO “pode ser
aperfeiçoado”, mas que só ele garante “uma variante única da língua”, que as
mudanças trazidas pelo acordo “não são gigantescas” (serão apenas estúpidas?) e
que tem dificuldade em escrever “idéia” ou “européia” sem acento, mas foi-se
acostumando. Porquê? Porque já há “uma geração inteira de brasileirinhos” que
só conhecem este português. Ora o que aconteceria se lhes dissessem que
“assembléia” tem acento? Teriam um ataque cardíaco? E lá veio outra vez o medo:
a “língua começaria a se apartar”; e também a falsidade: o espanhol não tem
variantes, a Academia unificou tudo. Deve ser por isso que nos correctores do
Word há 22 variantes ortográficas, uma por país. Será pelo prazer de ocupar
espaço?
Por fim, a chantagem do
costume: ratifiquem que depois logo se rectificará. Já ouvimos isto a Malaca
Casteleiro, ao Kaiser português do acordo (o MNE em exercício) e também ao
ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, que assim foi
perorar para a CPLP. Mas alguém ainda acredita nestas presumíveis “boas intenções”?
Tiveram 30 anos para limpar nódoas e elas mantêm-se bem vivas. O que levará
alguém a acreditar que o façam depois de todos caírem, finalmente, no engodo?
Nada. Sidney Silveira lembrou, e bem, que Saramago vendeu muitos milhares de
livros no Brasil com a ortografia de cá, e todos sabemos que os livros
brasileiros sempre circularam por aí com a ortografia original sem que ninguém
disso se queixasse.
Queixas, sim, há da
diplomacia, esse monstro que, sendo avesso às coisas da ortografia, não hesita
em maltratá-la continuamente a pretexto de um graal que ninguém viu nem verá.
No Brasil, haverá mais debates. Com a ABL, espera-se. Mas se alguém responder
“sim” ao anúncio do título, agradece-se. Os não merecem a língua que
espezinham.
*Jornalista – Público de
05.Set.2019
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