Por Nuno Pacheco*
Esteve
catorze dias morto e ressuscitou milagrosamente em quatro horas. Bastou um
texto (a crónica anterior a esta) para acordar as hostes do Instituto
Internacional da Língua Portuguesa (IILP), que se apressaram a devolver à vida
o chamado Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa (dito VOC),
instrumento oficial do Acordo Ortográfico de 1990 (AO). Seria hipócrita
desejar-lhe bom regresso, dada a sua absoluta inutilidade, mas a ressurreição
permite voltar a um tema antigo: o VOC ressuscitou como morreu, como fraude.
Acusação grave? Não. Grave é que haja quem acredite na sua utilidade e, pior,
quem assim o mantenha.
Vamos
por partes. O Acordo Ortográfico previa um Vocabulário Ortográfico Comum que
deveria conter os vocábulos de todos os países envolvidos. Era a “unificação”
tão apregoada pelos seus arautos. Porém, em vez disso, o IILP pôs-se a coligir
“vocabulários nacionais”: Brasil, Portugal, Cabo Verde, Moçambique (que não
ratificou o AO, note-se) e Timor-Leste. Falta Angola, Guiné-Bissau (que não
ratificaram) e São Tomé e Príncipe (que ratificou). A par destes, há o
Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, soma de todos.
O
problema é que são todos praticamente iguais, construídos a partir de uma única
base. O que até podia ser assumido, mas não é. Cada vocabulário nacional surge
com nomes diferentes, coordenadores diferentes e edições diferentes. Um logro
absoluto. Sem querer maçar os leitores, aqui ficam as 100 primeiras palavras e
as últimas 50 palavras dos vocabulários nacionais. Que são as mesmíssimas em
todos eles, sem qualquer variação. À frente da cada uma, vão, abreviadas, as
respectivas classificações ali descritas: adjectivo (a), advérbio (ad)
substantivo masculino (m) e feminino (f), verbo (v), nome próprio (np),
interjeição (int): “a (determinante), a (preposição), aabora (f), aacheniano
(m), aacheniano (a), aal (m), aal (f), aalclim (m), aalcuabe (m), aaleniano
(a), aaleniano (m), aaleniense (a), aaleniense (m), aaleniense (f), aalénio
(m), aalênio (a), aalense (a), aalense (m), aaná (a), aaná (m), aaná (f),
aaquenense (a), aaqueniano (a), aaqueniano (m), aaquênio (a), aaquênio (m),
aardvark (m), aardwolf (m), aariano (a), aariano (m), aarita (f), aarite (f),
aarónico (a), aarónida (a), aarónida (m), aarónida (f), aaronita (m), aaronita
(a), aaronita (f), aaru (m), aasto (m), ãatá (f), aavora (f), aba (m), aba (f),
ababá (m), ababá (f), ababá (a), ababadado (a), ababadar (v), ababaia (f),
ababalhado (a), ababalhar (v), ababalho (m), ababalidade (f), ababaloalô (m),
ababangai (m), ababé (m), ababelação (f), ababelado (a), ababelador (a),
ababelante (a), ababelar (v), ababelável (a), ababil (m), ababone (f), ababoni
(m), ababosação (f), ababosado (a), ababosador (a), ababosamento (m),
ababosante (a), ababosar (v), ababosável (a), ababroar (v), ababuá (a), ababuí
(m), abacá (m), abacado (m), abacaí (m), abaçaí (m), abacalhoadamente (ad),
abacalhoado (a), abacalhoar (v), abacamartado (a), abaçanado (a), abaçanar (v),
abacanto (m), Abação de São Tomé (np), Abação e Gémeos (np), abacar (a), abacar
(m), abacar (f), abacaro (a), Abaças (nome próprio), abacatada (f), abacataia
(f), abacatal (m), abacate (a) e abacate (m).”
Grave é que haja quem acredite
na utilidade deste vocabulário e, pior, quem assim o mantenha.
E,
a fechar, todas estas: “zuraco (m), zuranti (m), zuraque (m), zurazo (a),
zurazo (m), zurbada (f), zurca (f), zureta (m), zureta (f), zureta (a), Zurique
(nome próprio), zuriquenha (f), zuriquenho (a), zuriquenho (m), zuriquense (m),
zuriquense (f), zuriquense (a), zurpa (f), zurpilhado (a), zurpilhar (v), zurra
(f), zurrada (f), zurrado (a), zurrador (a), zurrador (m), Zurral (np), Zurrão
(np), zurrapa (f), zurrar (v), zurraria (f), zurre – interjeição, zurreira (f),
Zurrigueira (np), zurro (m), zuruó (a), zurvada (f), zurvanada (f), zurza (f),
zurzidela (f), zurzido (a), zurzidor (a), zurzidor (m), zurzidora (f),
zurzidura (f), zurzir (v), zus – interjeição, zus-catatrus (m), zus-catatrus
(int), zuzara (f) e Zuzarte (np).”
No
do Brasil, e apenas neste, o primeiro “aalénio” surge (naturalmente) como
“aalênio”, e esta é a única diferença; mas nos restantes países o segundo
manteve-se “aalênio”; já em “aaquênio” é a variante brasileira que surge em
todos os vocabulários nacionais, quando deveria ser grafada “aaquénio”, ao
menos em Portugal. Outras bizarrias: para encher, constam dos vocabulários
todas as entradas que integram a Toponímia (que está, aliás, num ficheiro à
parte no sítio do VOC), o que dá entradas como estas: “Abação e Gémeos”,
“Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde” (novas freguesias, resultantes da fusão de
2013) e “Zona Industrial do Porto Alto da Estrada Nacional Cento e Dezoito”
(há, pasme-se!, 85 zonas industriais assim descritas, pelo nome completo,
iguais em todos os vocabulários, apesar de serem sediadas em Portugal — mesmo
no de Timor-Leste, que até há um ano tinha apenas uma fábrica!). Quem diz zonas
industriais, diz aeroportos ou aldeamentos. Tudo serve para encher. Por
exemplo, se procuramos por “ônibus” (que surge como “ônibus” no do Brasil e
“ónibus” nos restantes), a informação nas fontes do vocabulário do Brasil é
esta: “Corpus Brasileiro: alta”. Mas se um português ou um timorense forem
procurar “ónibus” nos seus vocabulários, a informação nas “fontes” é: “Corpus
Moçambicano: baixa”. Tem isto o mínimo nexo?
Para a semana há
mais.
*Jornalista
– Público de 30. Jan.2020
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