O
texto que se segue é o Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 26 de
Fevereiro de 2020, de autoria de Humberto Cardoso. Por se tratar de um assunto
actual e de grande interesse para o falante nacional aqui se publica também.
Derivas linguísticas
Por altura da celebração do
dia internacional da língua materna que acontece anualmente a 21 de Fevereiro
mais uma vez vozes se fizeram ouvir a clamar pela “oficialização” do crioulo.
De entre essas vozes soou mais alto a do Ministro de Cultura que no seu
discurso disse que “consagrar a oficialização da língua cabo-verdiana como
língua oficial em paridade com o português é o desígnio máximo do povo
cabo-verdiano”. O Presidente da República na sua mensagem instou a que se
acelerem os mecanismos e se apurem os instrumentos para se cumprir a
Constituição. Todos os anos repetem-se os apelos à oficialização, pede-se
revisão constitucional urgente e deixa-se entender que há “opositores de
oficialização” a enfrentar. Fica-se por saber é por que vias o Estado e o governo
têm promovido as condições para uma oficialização em paridade com o português
como comanda a Constituição. Pressionar todos anos para se rever a
Constituição não é promover condições. É procurar impor “facto consumado”
para além de passar a culpa da inacção ou de falta de acção consequente para outros.
A
verdade é que a partir da revisão da Constituição em 1999 com a introdução do
artigo 9º sob a epígrafe “línguas oficiais” passou-se a referenciar o crioulo
como tal. Reconhecendo existir dificuldades no seu uso na plenitude nas
funções do Estado por razões que, entre outras, advêm de não se ter uma forma
estandardizada de escrita, ficou estabelecido no nº2 do mesmo artigo 9º que o
Estado deveria tomar medidas para as ultrapassar. Já no nº3 consagrou-se logo
o direito de todos de conhecer e de usar as duas línguas. Por isso é que
ninguém se sente impedido ou inibido de usar o crioulo no país. O PR faz
declarações em crioulo, debate-se no parlamento em crioulo, pode-se depor nos
tribunais em crioulo e a administração pública não deixa de responder se a
solicitação vem em crioulo. Também não se pode falar de estigma social
derivado do uso da língua, quando pessoas de todos os extractos sociais e em todas
as ilhas falam variantes do crioulo nas mais variadas circunstâncias.
Por tudo isso é evidente que
não faz sentido estar a apontar pessoas como opositores da oficialização do
crioulo. Em relação ao que a Constituição estabelece há consenso geral. O
problema surge quando não se cumpre a parte de “promover as condições” e se
faz fuga em frente não só com propostas de alterações constitucionais mas
também forçando a sua adopção como língua de ensino. A justificação pela sua
introdução urgente nas escolas em nome da qualidade do ensino, da melhoria
do sistema de educação e dos processos de aprendizagem não convence e isso
já é notório na forte preferência de muitos pais e alunos pela escola
portuguesa e outras escolas privadas. Aliás, aconteceu algo similar noutras
paragens nomeadamente em Madagáscar, Haiti e Curaçau onde as elites moveram os
filhos para escolas francesas e holandesas logo que se impôs a língua malgaxe
o crioulo haitiano e o papiamentu nas escolas públicas. Insistir nessa via naturalmente
que cria “opositores” em todos aqueles que aflitos e sentindo-se impotentes vêm
todos os dias a degradação do ensino e aprendizagem do português e seu impacto
na qualidade do ensino ministrado no país às novas gerações.
Em
Cabo Verde o crioulo ainda oficialmente não é língua de ensino, mas na prática
o seu uso em todos os níveis de ensino, do básico à universidade, à discrição
do professor, já afecta negativamente todo o processo de aprendizagem.
Contraposto ao português em termos identitários gera resistências que impedem
que as horas dedicadas ao português nas escolas se traduzam num domínio da
língua que seja considerado satisfatório. De alguma forma ter-se-á falhado em
passar às novas gerações o papel que as duas línguas tiveram na sedimentação
de uma identidade cabo-verdiana como se pode ver, por exemplo, no papel do
português na criação de uma literatura genuinamente cabo-verdiana e do crioulo
na expressão da morna. O uso das duas línguas por todos os extractos sociais
também indicia que não há uma relação antagonística, nem há necessidade de
exclusão de uma para afirmação da outra.
De facto não se é mais cabo-verdiano falando
só o crioulo e hostilizando o português. Para todos devia ser evidente que o
português não é ameaça para o crioulo. Diferente do que se passa no Brasil e
cada vez mais em outros países de língua oficial portuguesa, em Cabo Verde o
português não é língua materna, possivelmente nunca foi e certamente que no
futuro não será. Há quem queira ver no crioulo cabo-verdiano o resultado de
alguma espécie de resistência cultural. O mais provável é que seja um produto
peculiar do isolamento e da precariedade destas ilhas. De outra forma não se
compreenderia por que em países como o Brasil, os Estados Unidos e outros países
os “afrodescendentes” não tenham criado uma qualquer língua de resistência e
pelo contrário acabaram por adoptar a língua do colonizador como língua
materna. E o facto não o terem feito não os impede de, por exemplo, fazer do
samba um fenómeno cultural genuíno e expressão viva de uma cultura brasileira
única também toda ela expressa em português.
Semanas
atrás o VPM e Ministro das Finanças no parlamento constatou que não há
competência linguística em francês e inglês que seria necessária para que Cabo
Verde pudesse investir numa relação proveitosa com a África. A essas
insuficiências acrescenta-se a cada dia que passa a manifesta dificuldade dos
cabo-verdianos em fazer uso do português. Tanto no país como no estrangeiro
essas dificuldades estão a prejudicar em particular os jovens no
prosseguimento dos estudos e na procura de emprego. Perante uma situação
dessas o país devia já estar num estado de alarme e especialmente proactivo e
enérgico na identificação da raiz deste problema que ameaça confinar e
limitar as suas possibilidades de desenvolvimento. Infelizmente o que se vê na
utilização do sistema educativo e da comunicação social pública e nos
discursos de políticos é o contrário. Nota-se uma convergência em fazer do
crioulo uma questão identitária, em procurar engajar os jovens numa luta contra
a sua suposta desvalorização ao mesmo tempo que se faz um alerta para a
existência de opositores, nas entrelinhas mentes colonizadas. Enquanto
no Ruanda de Kagame se adopta o inglês como língua oficial para aumentar as
chances de desenvolvimento do país aqui celebra-se a vitória do paroquialismo
mais crasso.
Humberto Cardoso
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