O acordo ortográfico e as
respectivas facções
Francisco Miguel Valada*
“Está nisto desde que veio. (…) De
curtas e compridas tem-nos chamado de tudo.”
António Lobo Antunes, Memória de Elefante
A primeira frase de um recente
despacho da Lusa, divulgado pelo Expresso, ilustra bem a farsa do Acordo
Ortográfico de 1990 (AO90). Passo a transcrever: “As fações rivais líbias
convidadas pela ONU a participar em negociações políticas na quarta-feira em
Genebra (Suíça) anunciaram esta segunda-feira separadamente a decisão de
suspenderem a respetiva participação no diálogo, alegando motivos diferentes.”
Efectivamente, esta frase está e não está de acordo com o esperado de uma frase
cumpridora do estabelecido na base IV do AO90. Por um lado, temos *fações e
*respetiva, porque em português europeu a oclusiva velar correspondente à letra
‘c’ nas palavras facções e respectiva não é pronunciada. Por outro lado, como
em português do Brasil a oclusiva velar correspondente à letra “c” naquelas
palavras é pronunciada, o resultado seria diferente se este texto, em vez de
aparecer no Expresso, tivesse aparecido na Folha de S. Paulo, ou seja, haveria
facções e respectiva.
Isto é, actualmente, em português
do Brasil escrito, versão 1990, aquelas grafias correspondem às fabulosas formas
já existentes no português europeu escrito com a ortografia de 1945, a
ortografia óptima, segundo a melhor informação científica disponível. Assim
sendo, em português do Brasil com AO90 e em português europeu sem AO90, temos
esta deliciosa frase: “As facções rivais líbias convidadas pela ONU a
participar em negociações políticas na quarta-feira em Genebra (Suíça)
anunciaram esta segunda-feira separadamente a decisão de suspenderem a
respectiva participação no diálogo, alegando motivos diferentes.”
Com efeito, apesar do reconhecido
valor grafémico da letra “c” em facções e respectiva, os autores do AO90
decidiram aniquilá-la em português europeu. É evidente que tal decisão de
supressão da letra “c” foi tomada ao arrepio de pareceres e artigos científicos,
aos quais os deputados e o Governo não ligaram nenhuma, escolhendo o pouco
corajoso acto da fuga para a frente. Alguns, aliás, têm preferido mesmo o
recurso à provocação e à deselegância. Recentemente, um deputado do Partido
Socialista (PS) aproveitou a morte de João Malaca Casteleiro para ofender quem
estuda e trabalha. De facto, Ascenso Luís Simões lamentou que “quem nega a
atual [sic] ortografia não entenda que a língua portuguesa não pode ficar
agarrada a uma visão é [sic] um tempo marcados pelo colonialismo”. Aguarda-se
uma retractação, uma vez que pedir para ler pareceres e artigos, pelos vistos,
é pedir imenso. Convém, apesar de tudo, separar o trigo do joio. Por exemplo,
Pedro Cegonho, também ele deputado do PS, tem disponibilidade para ouvir educadamente
argumentos contra o AO90. É essa, aliás, a impressão que fica do excelente e
minucioso relato feito por Rui Valente sobre o encontro de uma delegação da
Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico com
representantes do Grupo Parlamentar do PS. Voltando ao assunto que aqui trago,
a supressão da letra “c” tem, portanto, duas consequências: uma consequência
interna e outra externa. Quanto à interna (do ponto de vista português
europeu), temos a provável homonímia de *fação com uma localidade do concelho
de Sintra chamada Fação e a potencial rima de *respetiva com discretiva. No que
diz respeito à externa, cria-se um novo fosso entre as normas europeia e
brasileira, afastamento provocado justamente pela principal base do AO90. Em suma,
exactamente o oposto das promessas e juras de negociadores, promotores e amigos
do dito cujo.
O impacto real do AO90
verifica-se em textos concretos e não em ilusões. Como vimos no início, a
primeira frase de um despacho da Lusa não tem qualquer palavra afectada pelo
AO90 em português do Brasil, mas tem duas palavras afectadas pelo AO90 em
português europeu. Convém que o poder político deixe de insultar quem o elege e
de atirar areia para os olhos ou, segundo a doutrina vigente, arena para os
óculos.
*Autor de
Demanda, Deriva, Desastre: Os Três Dês do Acordo Ortográfico (Textiverso, 2009)
Público de
10:03.2020
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