O
texto que se segue era para para ser o da apresentação pública na Cidade da Praia
do livro «Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial» de Adriano
Miranda Lima, prevista para 18 de Março do ano em curso.
Acontece
que por motivos desta terrível pandemia que tomou conta do mundo, houve que ser
protelada. Adiada para, como disse o
autor da obra: “...para quando o “Gongon”
do maldito vírus deixar de representar uma ameaça à nossa saúde”.
Sobre
o autor-Natural da ilha de São Vicente, Coronel reformado e a residir em Tomar- colaborador deste blogue,
gostaria de vos dizer que para além da excelência da sua escrita, estamos
perante alguém que investiga com seriedade e com uma grande honestidade intelectual.
Digo isso sem hesitar, pois que com provas
dadas nos inúmeros artigos, ensaios e livros que ele vem publicando os quais, reitero,
atestam as qualidades da escrita cuidada, concisa e assertiva de Adriano
Miranda Lima.
Apresentação
do Livro «Forças Expedicionárias a Cabo Verde
na
II Guerra Mundial» de Adriano Miranda Lima
A
obra que o leitor tem ou vai ter certamente em mãos – «Forças Expedicionárias a
Cabo Verde na II Guerra Mundial» de autoria de Adriano Miranda Lima - é, na
minha opinião, uma das mais interessantes narrativas sobre a historiografia da
instalação e da vivência nas ilhas de Barlavento de Cabo Verde, das Forças
militares expedicionárias portuguesas ao Arquipélago nos idos anos 40 do século
XX. O contingente militar foi distribuído
pelas ilhas de São Vicente, Santo Antão e Sal. O livro dá conta com pormenores
bem elaborados e seriamente fundamentados, dessa grande movimentação de homens
em solo ilhéu e com uma missão. A missão de defender o Arquipélago de eventuais
ataques e/ou invasão dos beligerantes na II Guerra Mundial.
Ao contrário do que o leitor possa pensar, não
se trata de uma descrição militar fria, antes pelo contrário, objectiva sim e
colorida no melhor sentido do vocábulo. Cheia de cor local, de calor humano, de
peripécias pitorescas a propósito de um ou outro acontecimento à volta do foco
principal, numa retrospectiva histórica, cativante para os interessados em analisar
a nossa História sob vários ângulos.
Ora bem, as ilhas de São Vicente, Santo Antão
e Sal foram os quartéis e os locais onde se instalaram repartidamente, mas de
forma desigual em números, os 5.820 homens que cá chegaram com a importante
missão de defesa das ilhas atlânticas, da eventual cobiça dos contendores da Grande Guerra Mundial e isto ao mesmo tempo que tropas eram enviadas para os Arquipélagos dos Açores e da Madeira. Aliás, o
Despacho do Ministério da Guerra, acentuava a urgência e a necessidade de
defesa das ilhas atlânticas portuguesas, até como garantia da neutralidade de Portugal face à
contenda mundial.
Convém
recordar que a ilha de São Vicente acordou de súbito numa manhã de Maio de 1941
com a chegada de mais de 5 mil jovens homens, o que foi um acréscimo de cerca de 39% em
termos demográficos para uma ilha que contava à época com 15 mil almas.
Imagine-se
a brusca reviravolta na vida da então
pequena urbe, Mindelo, com a instalação, a circulação e a movimentação desses jovens militares
pela cidade!
Daí que o foco da atenção narrativa do autor
esteja mais fortemente virado para aquilo que sucedeu em São Vicente, onde coube
o maior número (mais de 3.000) do contingente dos militares vindo da então Metrópole –
naturalmente mais do que nas restantes duas (Santo Antão e Sal).
Mas há ainda a acrescentar, outro factor motivador
deste livro. O autor encarrega-se de nos explicar o facto, entre outros dois
por ele mencionados que o levaram a organizar a presente obra. Ei-lo e da
seguinte forma, passo a citar: “...Porém
, outra circunstância particular e não menos relevante é o facto de eu ter
nascido na ilha – São Vicente – onde as Forças Expedicionárias mais se
projectaram, irradiando o seu mantra pela cidade do Mindelo e pela ilha como um
todo..."
O leitor é convidado pelo autor, ao longo dos
capítulos e das páginas do livro, a entrar, a partilhar e a vivenciar a
atmosfera física e social de Mindelo daquela época. Tempo e vivências que
curiosamente se prolongaram na memória dos mindelenses até muito
mais tarde.
A
marca das influências da tropa expedicionária em São Vicente, estendeu-se ao
longo do tempo e ficou impregnada de forma indelével no imaginário dos
mindelenses. Em certos usos e
determinados costumes. Na memória
literária, através de um deles, à data dos acontecimentos descritos no livro, o
então Furriel Manuel Ferreira, e mais tarde para nós, nome destacado na
Historiografia literária cabo-verdiana que se entrosou de forma profunda na
sociedade mindelense. Casou com a cabo-verdiana Orlanda Amarílis, também ela
escritora. Adriano Miranda Lima, reconhecendo a importância desse vulto da
cultura cabo-verdiana, dedicou-lhe um capítulo particular, demonstrativo e
ilustrativo da forma como Manuel Ferreira pôde conhecer, percepcionar e entender
como se de um natural fosse, a História, a Literatura e a cultura cabo-verdianas.
Do
mesmo modo, o autor destaca também a
insigne figura do médico militar Dr. Baptista de Sousa, um cirurgião
competente, que realizou autênticos “milagres” não só para os militares que aí adoeceram, mas também para a população
civil que a ele acorria. Lembremo-nos de que a penicilina só chegaria a São
Vicente e a Cabo Verde pela primeira vez em 1945. O livro dá conta disso. Mas
atenção que o foco desta narrativa, «Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II
Guerra Mundial» abrange fundamentalmente o período compreendido entre 1941 e
1944, ano do fim da missão militar.
Continuando
com o Dr. Baptista de Sousa, convém salientar que este médico competente e
honesto ousou, no estrito desempenho da sua profissão, de forma corajosa,
denunciar a situação de fome que assolava as ilhas. E fê-lo de tal modo
reiterado que foi vítima dessa sua coragem, pois no tempo da Ditadura era
proibido dizer “que se morria de fome nas terras do Império” (cito o autor).
É
que o Dr. Baptista de Sousa escrevia nas certidões de óbito, e continuou a
escrever até ao fim da sua comissão de serviço em Mindelo - mesmo depois de ter
sido repreendido pelas autoridades- de forma clara e legível, a expressão “fome
crónica” como causa de morte do paciente. Estou a seguir o autor.
Daí
que, quando partiu, que deixou a ilha, no dia da sua partida para Lisboa não
causar espanto a emocionante e a espontânea despedida que o povo de São Vicente
lhe prestou, acudindo em multidão ao cais de embarque, acontecimento que o livro
descreve com algum pormenor. Interessante
é que nessa despedida não se incorporaram apenas populares, mas também figuras
gradas da sociedade mindelense da época. Exemplificando, o Dr. Adriano Duarte
Silva - deputado, cidadão benemérito, e grande defensor das causas das ilhas
- o Juiz da Comarca, entre outras entidades de
relevo de Mindelo. Aproveito para dizer que o livro está bem documentado em
fotografias da época sobre este e outros acontecimentos.
Reza
a crónica, que não mais se terá repetido na urbe mindelense tão grandiosa
manifestação de gratidão. Hoje, Dr. Baptista de Sousa é patrono do Hospital de
Mindelo.
Uma
vez regressado a Lisboa, dada a sua firmeza na denúncia da fome, enfrentando e
contrariando as autoridades, foi prejudicado, penalizado nas promoções e nas
colocações de forma ostensiva.
Outras
duas figuras que mereceram destaque no livro foram, a primeira a do Capitão
Oliveira, que é descrito como um militar de alto recorte humanitário. Ele terá
instituído como uso e costume militar e pela
primeira vez em Cabo Verde, a distribuição das «sobras do rancho» ordenando à
despensa militar, da Companhia que ele comandava que aumentasse os géneros
alimentícios na cozinha e que as sobras fossem distribuídas aos muitos miúdos e
adultos famintos que se abeiravam dos muros do Quartel. Terá com isso minorado
ou mesmo salvo da fome mortal muita gente. Quando lerem o capítulo hão-de de
perceber como o gesto do capitão Oliveira foi tocante e humanitário.
O
interessante e de acordo com o livro, o Capitão Oliveira é que sugeriu e pediu aos comandantes
dos outros aquartelamentos em São Vicente que fizessem o mesmo.
Não esquecer que a chegada das Forças
Expedicionárias a Cabo Verde coincidiu com uma época terrível, crítica, de seca e
de fome e que a Mindelo acorriam famílias e pessoas famélicas das ilhas
vizinhas de Santo Antão e de São Nicolau, duas ilhas, entre as que mais
sofreram com a Fome. Logo, o acto do Capitão Oliveira é digno de louvor. Tudo
isso vem descrito e narrado no livro.
A segunda figura foi a do Cabo Francisco Lopes, que em Mindelo passou a ser
conhecido como Chico da concertina . Este militar era presença assídua em
festas, bailes e piqueniques a convite até dos músicos locais.
Há
uma passagem no livro que não me furto a mencionar, pois que escrito na primeira pessoa evoca a integração
nas noites mindelenses da época de uma forma viva. Encontra-se na página 213 do livro. Crónica quase oral,
viva, sugestiva e que diz muito dos convívios musicais e outros da época em
Mindelo.
De
facto, a penetração e o entrosamento das forças expedicionárias na população de
São Vicente foi profunda e deixou marcas indeléveis como já aqui referi. As
festas, os convívios, os piqueniques fora de portas, para os quais os militares
eram convidados, os namoricos e os casamentos de sargentos e de oficiais com as
moças da cidade. As ligações ocasionais ou prolongadas dos praças e soldados,
com as raparigas da cidade e/ou dos arredores e de que resultaram filhos, uns
reconhecidos, outros não, constituem as diversas formas e interacções sociais
entre o corpo expedicionário estacionado na ilha e a população mindelense.
Mas também aconteciam com pompa e circunstância os grandes desfiles e/ou paradas militares que
deslumbravam a população que a eles assistia.
Tudo
isso é descrito e narrado no livro com cuidado e com pormenor.
Na minha opinião de leitora, é exactamente a
história do impacto dos militares na sociedade local que ocupou lugar de eleição
neste livro.
De
facto, Adriano Miranda Lima retrata e ilustra factos e figuras com tal realismo
e proximidade que o leitor se sentirá quase participante.
Por
um lado, a boa convivência, e por outro lado, a ajuda material que aqueles
militares prestaram à população de São Vicente, num período muito crítico de
seca e de fome. São esses factos também que ocuparam atentamente o autor na sua
narração.
Claro,
que de caminho, o livro dá conta também das escaramuças e das querelas havidas
entre os rapazes locais e os militares metropolitanos – assim se dizia à época
- regra geral, por causa das moças que
estes últimos conquistavam. Não se esqueçam que estamos a falar de forasteiros
jovens, muito jovens, na faixa etária dos vinte e poucos anos, a maior parte
deles.
Abro
aqui um pequeno parêntesis para uma curiosidade, para dizer, que não terá sido
por acaso que o mindelense é quem mais adquiriu (em termos relativos e
proporcionais) –minha impressão, colhida em informações em que não houve rigor
estatístico, vale dizer - que adquiriu,
repito, sem grandes dificuldades a nacionalidade portuguesa, na grande procura
que houve no pós-independência, uma vez que ainda haveria um bisavô, um avô ou,
mesmo um pai português militar da década de 40, que remonta à estada da tropa
expedicionária em São Vicente.
Fecho a curiosidade e o parentêsis e volto ao
livro; para finalizar e reiterar que a sua leitura se torna igualmente aprazível, quando lemos as cartas, os
testemunhos e os depoimentos nele
contidos que são autênticas memórias escritas na primeira pessoa pelos
protagonistas, sobre a passagem por Cabo Verde em missão militar.
Memórias guardadas e conservadas pelos descendentes a que o autor teve acesso. Factos e histórias que tanto impacto tiveram na vida daquela geração cabo-verdiana e portuguesa que os vivenciou.
Memórias guardadas e conservadas pelos descendentes a que o autor teve acesso. Factos e histórias que tanto impacto tiveram na vida daquela geração cabo-verdiana e portuguesa que os vivenciou.
Mesmo,
mesmo a terminar, dizer que Mindelo conservou em bom estado alguns
aquartelamentos, muros e vedações defensivos, à época construídos, e até mesmo
o talhão militar no Cemitério de Mindelo, onde repousam restos mortais dos 68 jovens militares portugueses que aí sucumbiram
por doença. O livro traz o obituário.
Actualmente existe na cidade do Mindelo, uma espécie de roteiro, ou de
visita guiada - se não estou em erro - com passagem pelos marcos deixados pelas
Força Expedicionárias militares dos anos 40 do século XX.
Meus
senhores e minhas senhores, caros amigos, vale a pena ler o livro «Forças Expedicionárias
a Cabo Verde na II Guerra Mundial»! Garanto-vos que o prazer da leitura, sempre
procurado pelo leitor, estará muito presente ao longo dos capítulos da obra.
Muito
obrigada.
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