O prisioneiro da “ilha” Conto de Joaquim Saial I

segunda-feira, 23 de março de 2020
Um Conto de Joaquim Saial, nome conhecido, do "Blog" «Praia de Bote» Historiador,  colaborador de revistas especializadas em história de arte. Estudioso e conhecedor da estatuária pública de Cabo Verde. Autor de Contos. Colaboração assídua no Jornal «Terra Nova».  Natural de uma bonita terra portuguesa, Vila Viçosa e, para nós, mindelense de coração e de vivência.


O prisioneiro da “ilha”
Conto de Joaquim Saial

Na zona mais alta do jardim, bem visível de longe, avistava-se a sólida mansão branca, de dois andares, gradeada em todas as janelas. Fora adquirida pelo embaixador português para sua residência particular, em circunstâncias assaz favoráveis, ao ministro do Interior em fuga de um dos executivos depostos, numa das muitas revoluções em que aquele país da América Central era fértil. O edifício oficial era acanhado, tinha poucas divisões, só dava para cumprir a burocracia da legação e o diplomata não quis perder negócio tão aliciante. Quando tivesse de regressar à pátria, havia de ganhar alguma coisa com ele – à semelhança do que acontecia com outros que ia empreendendo, de madeiras e fruta – e entretanto dispunha de uma casa como poucas outras havia na capital. Colocado naquele fim de mundo, em meados dos anos setenta, como embaixador político, por lá fora ficando, sem que nas Necessidades os sucessivos ministros se ocupassem muito mais com ele. Diga-se, em abono da verdade, que também nenhum diplomata de carreira se mostrara até aí interessado no posto, devido às consecutivas convulsões internas do país e àquelas que a cólera e outras doenças endémicas provocavam nos organismos mais fracos...
O fim de tarde de sexta-feira apresentava-se mais húmido e quente que o dos dias antecedentes. Uma chuva miudinha caía a espaços, para logo se evaporar, deixando na pele e nas coisas um leve toque pegajoso. Com as costas da mão, Martinho Fortuna, o adido cultural, limpou mais uma vez o suor que lhe escorria pela testa, cansado com o transporte dos materiais e de manobrar o bote de borracha em que os levava
1 Publicado na Revista de Cultura “Callipole” (Vila Viçosa), n. 12, 2004, com uma ilustração da pintora Emília Morais e escrito então, como agora, de acordo com o penúltimo modelo ortográfico.
para a ilha. Esta não era mais que uma balsa de madeira, ancorada ao centro do vasto lago existente no jardim, através de quatro correntes que a prendiam ao fundo. Servia de apoio a banhistas, de base para cocktails íntimos e de cenário frequente dos discursos do 10 de Junho e do 25 de Abril dirigidos à restrita mas abastada comunidade lusa, quase toda composta por gente ligada à produção de banana, café e madeira. O embaixador fora com a mulher passar alguns dias precisamente a casa de um fazendeiro português, na face do país virada ao Pacífico, e deixara o palacete entregue à sua guarda, como era habitual em circunstâncias semelhantes, embora também ali ficassem durante o dia Maruja, a cozinheira, e Pablo, o marido, jardineiro da casa, devotado casal de índios que se vestiam com trajes minhotos, sempre que havia cerimónia oficial... Como o bote era pequeno, aquela era a terceira viagem e ainda previa mais uma, para que ficasse tudo pronto. Já levara mesa, cadeiras, toalha e guardanapos, loiça e talheres, pão, aperitivos, bebidas, geladeira e outro material indispensável. A comida viria do restaurante mexicano situado num quarteirão próximo, bem como a orquestra meio manhosa de mariachis emigrados, para a serenata preparada em segredo desde a semana anterior. À noite, encontrar-se-ia ali com Carmen Sanchéz, a fim de comemorarem o trigésimo aniversário desta e combinarem os pormenores do casamento de ambos.
Carmen detinha cargo idêntico ao dele, na embaixada de Espanha. Haviam-se conhecido numa cerimónia, no feriado do dia da Independência, dois anos antes, e a simpatia mútua cresceu quando organizaram uma exposição conjunta de artesanato ibérico. Apaixonaram-se e, a partir daí, mantiveram estreito conquanto discreto relacionamento que só não era legalizado para evitar embaraços a ambas as legações. Alugaram casa num bairro periférico da capital mas passavam a maior parte do tempo nas respectivas embaixadas, no centro da cidade. Martinho estava prestes a finalizar os trabalhos de tese de doutoramento em estudos índios, na mais prestigiada universidade do país, onde também leccionava Antropologia Cultural. Numa vinda a Lisboa, o embaixador vira-o discursar na Fundação Gulbenkian sobre os problemas dos índios
brasileiros, apreciara artigos seus no "Expresso" e no "Diário de Notícias", relativos a temas folclóricos do nordeste transmontano, e acabara por convidá-lo para o posto, até aí inexistente, de adido cultural. Martinho aceitara de imediato, ávido de mudança e satisfeito com a possibilidade de estudar in loco assuntos que o vinham de há muito interessando. Mas já passara os quarenta anos e desejava constituir família. Apesar do seu amor por Carmen, começava a fartar-se das diplomacias que o obrigavam a fingir em público que nada tinha a ver com ela. Precisava de estabilidade, queria ter filhos, uma vida como a da generalidade dos outros casais. Havia que atirar às malvas os pruridos decorrentes da comum situação profissional de ambos e fazer, enfim, o casamento. Apesar da relação cordial que estabelecera com o embaixador, em cuja casa ainda mantinha quarto, quando lhe tocou no assunto, este mostrou-se pouco receptivo, dizendo: «Você sabe como são estas coisas. Não precisamos de arranjar lenha para nos queimarmos. Um casamento entre diplomatas de ambos os lados, não é coisa institucionalmente desejável. Se há qualquer fuga de informação ou trapalhada semelhante, fica sempre a ideia de que foi a parte contrária a originá-la ou a propagá-la... Espere mais algum tempo, deixe correr o marfim, o seu doutoramento está quase pronto, entretanto regressa a Portugal, retoma o lugar na universidade e então casa. A Carmen é uma mulher inteligente e com as ligações que tem, ser-lhe-á fácil obter bom emprego numa dessas empresas espanholas que agora proliferam que nem cogumelos na nossa terra. Tenha calma, homem, tenha calma.» Mas aquilo entrou-lhe por um ouvido e saiu-lhe pelo outro. Tão cedo, não contava ir-se embora, pois após a discussão da tese desejava fazer investigações complementares com ela relacionadas. E recusava retornar por enquanto à faculdade lisboeta na qual ensinara alguns anos e onde os assistentes se atropelavam pelos melhores cargos, cadeiras e horários, por entre cinismos e maledicências, num ambiente de intriga de cortar à faca. Quando chegasse a Lisboa, havia de estar na posse de suficientes conhecimentos e publicações, tanto em livro, como em revistas da especialidade, que não permitissem a nenhum dos colegas morder-lhe pela calada. Nessa noite, assentaria
com Carmen a boda. Se ela concordasse, seria na catedral de Nuestra Señora del Martirio, velha igreja colonial barroca, onde a Virgem chorava, trespassada por punhais, entre centenas de círios que ardiam ad aeternum, com poucos convidados, apenas um ou outro amigo do meio diplomático e da universidade.
Martinho acercou-se da balsa, saltou para o pavimento envernizado e colocou ao lado da mesa a caixa de cartão que continha um ramo de flores, castiçais e velas repelentes de insectos. Viu no relógio que eram sete horas e vinte minutos e concluiu que afinal só ali voltaria sozinho para pôr o contentor com o jantar, antes da vinda de Carmen. Olhou para a montanha e pareceu-lhe distinguir vários pequenos reflexos, como se alguém andasse a divertir-se com espelhos. Seria talvez o efeito do brilho do sol poente nos vidros dos carros ou nos cromados das motorizadas dos índios que subiam para Palma ou Villa Guzmán, no fim de mais um dia de trabalho. Todavia, mais abaixo, envolta na poeira que ia levantando na estrada de terra batida que saía da cidade, viu parada uma coluna de jipes e outros veículos da Guarda Nacional. No local, observavam-se idênticos clarões e soavam estampidos de fuzilaria. "Estes gajos passam o tempo nisto. Mais um tiroteio entre a Guarda Nacional e o Exército Índio de Libertação ou novo ataque ao pessoal da droga.", calculou Martinho. Quis entrar de novo para o bote mas então ouviu o zunido de algo que entrementes martelou no grosso suporte da antena parabólica e depois se lhe introduziu numa perna. Em seguida, a cabeça bateu na borda da mesa. Quando o corpo, caindo desamparado, se estatelou no pavimento, antes de escorregar para a água, o diplomata já estava inconsciente.
II
No momento em que recobrou os sentidos, o dia declinava e estavam acesas as luzes de presença, disseminadas pelo jardim, que um automático ligava todos os dias, pelas oito horas. Encontrava-se a flutuar, com o braço esquerdo enfiado numa das argolas de corda que pendiam da balsa, semelhantes às usadas lateralmente nas de salvamento marítimo. Fora isso, supôs, que o salvara de morrer afogado. A pouco e pouco, foi tomando consciência do que lhe acontecera. Tinha um hematoma na nuca, sangrava da perna direita e doía-lhe o braço do mesmo lado. A muito custo içou-se para a plataforma, tentando enxergar o bote de borracha que acabou por divisar numa extremidade do lago, a dez ou doze metros de distância. Pensou que estivera para além de meia hora dentro de água, facto que confirmou através do relógio luminoso de pulso. Lorenzo, o criado do restaurante, já teria tocado a campainha? Decerto que sim. Martinho tinha combinado com Don Felipe, o dono, que ele entregaria o jantar pelas sete e meia... E Carmen deveria estar prestes a chegar. Ouviria decerto a campainha tocada por ela, através dos amplificadores colocados no jardim, junto ao lago. Mas como poderia ir abrir-lhe a porta? Quanto a telefone, só havia extensões no edifício e na portaria, ao fundo da longa avenida de palmeiras. Gritar não adiantava, visto o jardim ser extenso, o muro demasiado alto naquela zona e o arvoredo frondoso em excesso. Nem sequer poderia recorrer a "Saramago", o mastim do embaixador – assim baptizado por este, quando descobriu ser "Camões" o dado pelo autor do "Memorial do Convento" ao seu –, que Maruja levara para casa, durante aquele fim-de-semana de ausência do patrão. Pareceu-lhe que a maneira de dali sair seria com a ajuda da mesa, único objecto flutuante disponível, visto as cadeiras serem de alumínio. Tentou erguer o busto do pavimento, pela primeira vez desde que se guindara da água mas a dor no braço, que conjecturou deslocado ou partido, fê-lo manter-se deitado. Concluiu que lhe seria impossível mover-se dali sem a ajuda de alguém. Encontrava-se prisioneiro da ilha.
Notou então no ar algo de contraditório: enquanto por um lado desaparecera o habitual ruído surdo de veículos – porque filtrado pelas árvores e arbustos – que costumavam passar na estrada que bordejava parte do perímetro do jardim e seguia para Palma, na montanha, por outro, julgou perceber ao longe, mas aproximando-se cada vez mais, um matraquear de armas de fogo. Martinho deduziu assim o que lhe tinha sucedido: uma bala perdida, em ricochete, acertara-lhe na perna. O inchaço na cabeça e o problema do braço só se podiam dever aos efeitos da queda. Acendeu um fósforo e viu que tinha dois pequenos orifícios acima do joelho. Felizmente, o projéctil entrara e saíra. Precisava de desinfectar as feridas. As bebidas que para ali levara eram de fraca graduação alcoólica, excepto o rum cubano. Tacteando o interior da geladeira, sentiu a garrafa, encostada a outra de vinho do porto, mais bojuda, que mão amiga lhe enviara pela mala diplomática. "Quarenta graus, quando muito. Deve chegar.", disse para consigo. Como cada vez via pior, devido ao escuro, acendeu uma das velas que pousou no parapeito circundante da abertura do porão, espécie de armário situado abaixo da linha de água, onde se guardavam bóias e cordas e onde não cabia mais que uma pessoa. Um dos buracos, porventura aquele por onde a bala saíra, tinha mau aspecto. Verteu todo o conteúdo da garrafa nos ferimentos e depois, com a ajuda de uma faca, desfez em tiras os dois guardanapos de pano que ali tinha e atou-os à volta da perna. Na casa, tocou o telefone, pela primeira vez. Mas isso, de nada lhe valia.
Lá fora, o tiroteio redobrou e os clarões dos disparos eram agora nítidos, na noite abafada, sem luar. Ouviam-se também explosões de granadas e morteiros. Sentiu uma coluna passar no exterior do jardim. Num dos carros, um altifalante ordenava: «Por razões de segurança, a população deve manter-se em casa. Até nova ordem, não é permitido transitar na via pública. A Guarda Nacional actuará com firmeza, em caso de desobediência.» Ao que aquilo levava a crer, se havia estado de sítio ou similar, não se tratava de operação contra os produtores de coca. Devia ser coisa com os índios. Martinho sorriu, pensando na ironia do destino que o amarrava, não à casa mas àquela ilha de madeira. Carmen estava impedida de
ali se deslocar e agora mais ninguém lhe acudiria. Provavelmente, o telefonema fora dela. Não havia nada a fazer, excepto esperar pelo desenrolar dos acontecimentos.
Na generalidade, os arrufos duravam apenas escassas horas, dada a superioridade das forças do governo. Os índios do EIL, que lutavam pelo reconhecimento das autoridades face à sua condição de explorados pelos madeireiros e donos das plantações de café, não tinham armamento sofisticado, ao contrário das tropas governamentais. Umas dezenas de morteiros e bazucas, entrados no país pela banda do Mar das Caraíbas, eram o melhor com que podiam contar. Tratava-se de um jogo de gato e rato, em que o rato perdia um ou dois pelos do bigode e depois se ia recompor, para daí a pouco voltar à actividade. A comunicação social, controlada pelo governo, falava de terroristas que queriam alterar a paz social e o progresso do país, utilizando os termos e os modos habituais em situações semelhantes. Martinho tinha alunos, hispânicos e índios conotados com esta luta, alguns dos quais já haviam experimentado as prisões e torturas do regime. No bar da faculdade, não era raro procurarem-no, para lhe fazerem perguntas sobre o andamento da democracia portuguesa e a história dos primeiros tempos da revolução. E ele, moderado, não só lhes falava dos dramas do período da ditadura do Estado Novo, como das alegrias e abusos surgidos nos primeiros tempos após a sua queda. Mostrava-lhes filmes que trazia da embaixada, passava discos saídos na primavera marcelista e no período revolucionário mas era forçado a manter alguma distância, dada a sua condição de diplomata. O grupo restrito de discípulos com quem convivia fora das aulas, sabia no entanto ler nas entrelinhas, percebendo que ele não podia ir mais longe, e estimava-o. E não era por acaso que as suas aulas eram das mais frequentadas de toda a universidade.
Martinho sentiu fome. Desde o almoço que jejuava. Arrastou-se até ao cesto com fatias de pão, de onde retirou uma, já endurecida pelo calor, que trincou com dificuldade. Chegou o braço à luz da vela e verificou que apresentava aspecto arroxeado. Abriu uma cerveja e massajou-o com o líquido borbulhante e fresco. Depois, encetou outra e bebeu-a, a acompanhar o pão. Ia abrir uma lata de amendoins, quando
se lembrou de que podia estar sem ver ninguém até segunda-feira de manhã. Isto, se a sorte estivesse do seu lado – ou seja, se Maruja, Pablo ou o embaixador atravessassem as barreiras montadas pela Guarda Nacional. Este poderia ser a sua salvação mas o adido continuava a acreditar que ele não voltaria senão após o término das escaramuças. De Carmen nada esperava, visto esta não poder defender perante os militares motivos válidos para ali ir. Assim, era imperioso racionar os parcos alimentos, agora resumidos à lata de amendoins, às fatias de pão e a quatro mangas. Na geladeira, havia a garrafa de porto e uma de água.
À roda da meia-noite, as armas calaram-se. Carros com militares iam e vinham, sinal de que a refrega não terminara ainda. Martinho dobrou a toalha em três, para lhe servir de modesta enxerga, apagou a vela, praticamente consumida, ajeitou-se o melhor que pôde, virado para o lado esquerdo, mas só conseguiu adormecer de madrugada, por causa das dores.

III
Na manhã seguinte, tinha febre. O braço doía-lhe menos que na noite anterior, o que parecia querer provar que não houvera fractura mas a ferida estava infectada e a perna inchara. Teve medo de contrair gangrena e deitou sobre ela golpes de porto. "O porto só tem vinte graus... Se não fizer bem, mal também não faz.", pensava, para se animar. Durante a manhã, o telefone tocou diversas vezes mas ninguém surgiu na casa. Os acessos ao bairro, de onde se podia partir com maior facilidade para a montanha, deviam estar cortados e por isso Carmen não pudera ainda passar. O embaixador, decerto que já estava ao corrente dos acontecimentos. No entanto, neste caso evitaria o regresso, porque o grosso dos seus compatriotas encontrava-se radicado na zona para onde fora e também porque episódios daqueles haviam caído na rotina política do país. "Parte dos telefonemas deve ser dele, para saber como estão as coisas por aqui ou se a casa sofreu com os combates. Nem imagina que o único a levar a dose fui eu.", cogitou o recluso da ilha.
Os combates reacenderam-se, por volta do meio-dia. Martinho viu explodir dois carros da Guarda Nacional, após o que deixou de ouvir a movimentação de veículos militares na rua. Porém, adivinhava que havia soldados nas proximidades, devido a reconhecíveis ruídos de metais arrastados, talvez armas ou caixas de munições, que a barreira das árvores, apesar de densa, deixava passar. O calor apertava. A fim de se aliviar, bebeu alguns tragos de água e pôs-se a encher a garrafa de rum com água do lago, que depois vertia por todo o corpo, procurando evitar possível desidratação e comeu duas mangas e amendoins, o que lhe iludiu por mais um tempo a fome. Em casa, tocou o telefone, pela quinta ou sexta vez.
O bote de borracha lá estava, no mesmo sítio, numa ponta do lago, à sombra da videira trazida de Portugal pela esposa do embaixador. Martinho reflectiu na maneira de o fazer retroceder. No porão havia cordas e uma fateixa. Se a lançasse de encontro ao bote, correria o risco de o furar e de este submergir antes de lhe chegar ao pé. E se a embrulhasse na
toalha, de modo a anular a agudeza dos três bicos? Assim fez, após o que tentou o arremesso. Soergueu-se, pegou no ferro com a mão esquerda e atirou-o para o bote. Como seria de esperar, falhou, em virtude da distância a que estava do alvo e das dores da perna que não lhe permitiram posição favorável. Nova tentativa redundou noutro fracasso, ficando a toalha a boiar por instantes na água, até que se afundou. Surgiu-lhe no momento uma ideia que lhe pareceu de concretização exequível, apesar de morosa: construir uma jangada com tábuas arrancadas à balsa, que ataria com cordas. Agora, era necessária uma chave de fendas para desenroscar os parafusos que as agarravam à estrutura da base. No porão não havia nenhuma mas uma faca poderia ser sofrível sucedâneo. Devido ao leve mas contínuo balanço e ao calor que dilatava a madeira, os parafusos estavam lassos. Contudo, eram compridos e a dor ainda forte no braço não ajudava Martinho. Para facilitar o trabalho, meteu a faca entre dois garfos, o que permitiu fazer maior força. Mesmo assim, a cada momento a faca fugia da fenda do parafuso. Ao fim de um bom bocado é que conseguiu tirar o primeiro. O esforço, aumentado pelo calor do Sol, agora a pique, cansara-o. Sentia guinadas no ferimento e persistia o estado febril, o que lhe fez pensar que a infecção piorara. Puxou a mesa para o local em que estava, postou-se debaixo, para ter sombra, e continuou o trabalho. A tábua estava presa com seis parafusos mas tirado o terceiro resolveu levantá-la e parti-la. O resto da tarde foi passado nesta tarefa. Quando à noite resolveu retemperar forças, juntara oito meias tábuas. Estas, amarradas ao tampo da mesa, à qual tirara as pernas, deviam poder com ele. Comeu a terceira manga e iniciou o entrelaçamento das cordas nas tábuas. Na rua, era mais nítida a movimentação de tropas. Holofotes varriam as redondezas, enquanto perto do topo da montanha, acima de Villa Guzmán, se observavam reflexos idênticos aos da noite anterior, embora só se ouvisse armamento ligeiro.
Foi então que se abriu uma porta na varanda do segundo andar do consulado norueguês. Essa era a única parte da construção, visível de onde Martinho estava retido. Mesmo assim, a casa, onde estava instalada a única delegação diplomática sediada no bairro, encontrava-se a mais de cem
metros, depois de uma azinhaga e de terrenos devolutos. De dentro irromperam uma luz forte e a música Morgenstimmung, de Peer Gynt, a inevitável suite de Grieg que a consulesa, loura, alta e enxuta figura, punha a tocar no gira-discos quando bebia um pouco mais que a conta – o que, dizia-se à boca cheia, era frequente. Logo a seguir surgiu ela, de garrafa na mão, da qual bebeu longo trago. Pessoa intratável, o seu nome era de tal modo arrevesado e difícil de pronunciar que Maruja e a embaixatriz portuguesa, quando a ela se referiam, lhe chamavam muito simplesmente La Doña Noruega. Martinho quis aproveitar a oportunidade e começou a agitar os braços e a gritar, na esperança de que a mulher desse por ele. A dado passo, pareceu que o ouvira, porque olhou na direcção do lago. Mas logo a seguir emborcou mais um pouco do conteúdo da garrafa, voltou a fixar a montanha, regressou à sala e fechou a porta, não sem antes gritar, numa pronúncia gutural: «Hijos de una vaca! Que bárbaros!» Apesar do desconsolo que sentiu, Martinho foi forçado a sorrir, tanto mais que sabia que Doña Noruega era avessa a falar castelhano. Aquelas duas frases, decerto aprendera-as custosamente de algum criado e lançava-as agora, revoltada com os incómodos a que estava momentaneamente sujeita. "Pelo menos, estás dentro de casa, meu pau de virar tripas. Raios te partam, bêbeda surda!", exclamou, em voz alta. Tinha Martinho acabado de ter este desabafo, eis senão quando dois tiros de artilharia pesada fizeram ir pelos ares parte da gradaria da varanda onde a consulesa estivera, segundos antes. A diplomata abriu outra vez a porta, ao som de Anitras Tanz, ainda da mesma suite, e, envolta na sua bandeira nacional, com a garrafa na mão esquerda mas com um revólver na direita, desatou a disparar no vazio, ao mesmo tempo que, na língua materna, lançava o que parecia serem impropérios. Esgotado o conteúdo do tambor da arma e o vocabulário contundente, voltou para a sala, atirando a porta com estrondo.
A soldadesca, que fizera bivaque na rua, movimentou-se. O estardalhaço dos rebentamentos e os tiros, ali tão próximos, assustaram os militares e a sua vozearia chegou até Martinho que, pela primeira vez desde o princípio dos acontecimentos,
temeu pela vida. Segundo balázio ou a gangrena podiam dar conta dele. E sabia que em casa havia antibióticos com os quais podia atacar o mal da perna antes que fosse demasiado tarde. Isso deu-lhe redobrada energia para continuar a montagem da jangada. Da segunda e última vela, restava um coto que enfiara num copo, e duraria, quando muito, quinze ou vinte minutos. A luz da Lua, clara nessa noite, não era suficiente. Urgia trabalhar depressa. Finalmente, chegou a hora de Martinho lançar a periclitante jangada à água. Logrou içar-se para ela, deitando-se de bruços, com esforço e cuidado, para não aleijar mais a perna. Ensaiava o afastamento da balsa, à custa de braçadas, quando lhe pareceu que no cimo do muro que dava para a casa de Doña Noruega algo se movia. Não havia dúvida: contra o luar, detectou os vultos de duas pessoas que, após perigoso salto, entraram na propriedade.
IV
Martinho, que se afastara breves metros, voltou de imediato à ilha. Evitando o mínimo ruído, alçou a jangada e alojou-se no porão, com a cabeça de fora, na certeza da impossibilidade de ser visto. Verificou que os homens tinham atravessado o parque na diagonal e estavam agachados na zona arbórea, junto à parte do muro para além da qual supunha que estavam os soldados. Um, que se empoleirou no outro com dificuldade, espreitou por instantes por cima do muro. Feito isto, dirigiram-se para a casa, passando a correr junto à borda do lago. O adido reparou que o mais alto transportava uma mochila. No escuro perdeu-os de vista mas acreditou que tinham entrado. Já era domingo. A dor na perna mantinha-se estável. Martinho queria ficar desperto, para ver se os homens voltavam. Tratar-se-ia de vulgares ladrões que aproveitavam a oportunidade para um assalto à casa do embaixador? Os telefonemas teriam sido deles, a modo de abertura de caminho, verificando se a casa estava habitada? Logo pôs de parte essa possibilidade, por achar excessivos os perigos a que os intrusos se sujeitavam na presente situação. Que quereriam? Receoso, decidiu precaver-se. Ao raiar da manhã, se calhasse olharem para ali, poderiam ficar desconfiados com a loiça e as garrafas. Não valia a pena dar nas vistas. Resolveu deitar tudo à água, excepto a manga que destinara a almoço desse dia, e desmontou em parte a jangada que uniu à entrada do porão. Cerca das duas da manhã, exausto, rendeu-se ao sono, adormecendo sobre os aprestos ali guardados.
Quando acordou, com o enorme estrondo de uma explosão, chamas irrompiam por toda a rua, bem como na copa de algumas árvores circunvizinhas, dentro e fora do parque. Na casa, na relva, na balsa e no lago, por todo o lado, caía uma miríade de chispas. Por milagre, o fogo só se transmitiu ao renque de arbustos existente entre a casa e o parque. Soltou um suspiro de alívio, quando viu que a humidade da noite não deixava progredir as chamas na copa das árvores; e um pequeno foco na balsa foi logo apagado por ele, com a camisa que molhou na água do lago. No exterior,
ouviam-se gritos de desespero, acompanhados de ordens confusas que não entendeu. Observou o relógio e concluiu que dormira mais ou menos uma hora. Que teria sido aquilo? Um contra-ataque do EIL? Um rebentamento acidental? Do lado oposto da propriedade, na azinhaga que dava para a casa de Doña Noruega, ouvia-se um tropel de botas e mais alarido. Dir-se-ia que houvera deslocação de tropas para aquele lado, cujo objectivo seria cercar todo o quarteirão. Depois, vieram carros de bombeiros. Na montanha, a fuzilaria, que alastrara a toda a encosta, intensificou-se.
Lembrou-se então dos dois intrusos e olhou para a casa, que saía da penumbra, devido aos primeiros alvores da madrugada. O seu interesse foi recompensado, pois viu abrir-se a porta das traseiras e sair um deles. O indivíduo fez o mesmo caminho de antes, embora em sentido inverso. Quando passou junto de uma das luzes de presença, transportando uma metralhadora a tiracolo, Martinho viu-lhe de relance o perfil e julgou reconhecê-lo: se não se enganava, era Emilio Vega, jovem funcionário da reprografia da faculdade e aluno de Sociologia. Hispânico, era popular entre os estudantes de origem índia, por integrar o grupo de música tradicional El Vuelo del Pájaro, juntamente com Manolo Chato, Ramón Casas e Pepito "Sonrisa", todos alunos do adido. Dizia-se que pertenciam ao EIL e afinal isso era verdade, como se confirmava. O rapaz, que trazia algo branco nas mãos, dirigiu-se até ao muro, onde Martinho descortinou o vulto deitado do companheiro. Era quase certo que estava ferido, porque Emílio lhe enrolava ligaduras em ambos os braços. O que acontecera, realmente, durante o tempo em que dormira? Emílio arrastava agora o ferido para a casa, puxando-o lentamente pelos pés. Chegados à fiada das luzes de presença, Martinho teve nova surpresa: o segundo elemento era Ramón Casas. Mestiço, filho de um lavrador falido, descendente de espanhóis, e de uma índia de Guadalupe, trabalhava num restaurante da capital, para pagar os estudos, mas isso não o impedia de pertencer ao grupo dos alunos mais brilhantes. Martinho recordava-se dos seus trabalhos sobre artefactos pré-colombianos e costumes indígenas que revelavam erudição fora do vulgar. Propusera-lhe na altura
que fosse seu assistente mas o rapaz recusara, alegando que ainda não estava preparado para assumir tarefa desse tipo e que El Vuelo precisava dele. Martinho atribuíra a negativa a exagerada modéstia e pensava repetir mais tarde o convite. Agora percebia que aquilo que o levara a declinar a proposta era estar implicado no EIL.
A aparição de Emilio e Ramon fora providencial: estava quase certo da possibilidade de conseguir a ajuda de ambos, para pôr termo à sua desconfortável situação. Mas havia que ter cautela. Se Emilio se assustasse, poderia disparar e eliminá-lo. Era necessário decidir-se. Se os deixasse passar, decerto não voltariam ali. A luz existente permitir-lhes-ia distinguirem-no e reconhecerem-no com facilidade. Arriscou. Levantou-se pausadamente, com os braços no ar e chamou os estudantes pelos seus nomes. Emilio, surpreendido com a aparição daquele homem, largou o colega, engatilhou a arma mas não atirou. No último instante, Ramón dissera-lhe que ficasse quieto. Reconhecera o "Doctor Martiño", seu professor.
V
Martinho saiu da ilha no bote de borracha tripulado por Emilio. Ficou na borda do lago, até que este colocou o companheiro na casa. Depois, foi a vez de ele ser ajudado. Amparando-se no estudante, dentro em pouco estava na cozinha do palacete. Os rapazes contaram-lhe então a sua odisseia. No início dos combates, estavam na montanha, junto do EIL. A ofensiva governamental fora uma surpresa e, a breve trecho, as munições de armas pesadas esgotaram-se – as explosões dos dois carros da Guarda Nacional que Martinho vira estourar ao fim da manhã de sábado tinham sido produzidas praticamente com as últimas. Tornava-se por isso urgente um reabastecimento. Como o principal acesso à cidade ficava no quarteirão da residência do embaixador português, área ocupada por três dezenas de homens da Guarda, Emilio e Ramón receberam ordens para ali fazerem um rebentamento de diversão, de molde a numa rua paralela poder passar a carrinha de hortaliça de Alejandro Peña com munições para os morteiros e bazucas. Pegaram nuns paus de dinamite e meteram-se a caminho. Escolheram a casa do embaixador, não só porque Ramón conhecia o parque, por ali ter ido levar trabalhos a Martinho, como também por ter acesso directo ao sítio onde os soldados estavam estacionados. O rebentamento que acordara Martinho e o consequente incêndio, devera-se à explosão da dinamite, associada a explosivos encostados ao muro. A deflagração fora tão rápida e violenta que as chamas irromperam logo, queimando, embora sem gravidade, os braços de Ramón. Aparentemente, apesar do reforço da Guarda nas ruas adjacentes, os militares não haviam percebido a origem próxima do rebentamento. Caso contrário, não se teriam inibido de pelo menos espreitar para dentro do parque...
Esclarecido, Martinho pensou no que era necessário fazer a seguir. Primeiro, foi ao armário de medicamentos e tomou uma cápsula de antibiótico e trouxe pomada para as queimaduras de Ramón, ao qual tirou as ligaduras, besuntando-o com o remédio, em toda a extensão da pele
ardida. Do frigorífico retirou leite, queijo e fruta, que dividiu com os seus salvadores. Aplacada a fome, chegou a vez de pensar na maneira de os impedir de caírem nas garras da tropa, sem se comprometer ou aos serviços portugueses. Os seus documentos estavam em ordem. Na garagem, ficara o carro da embaixatriz, de matrícula diplomática. Emilio e Ramón seguiriam com ele, escondidos na mala, de manhã. Se acaso lhe perguntassem por que motivo queria sair, diria apenas que necessitava de ir aos correios recolher correspondência urgente para a embaixada. Era altura de telefonar a Carmen e ao embaixador. Como imaginara, aquela fora confrontada com as barreiras militares e o embaixador ficara-se junto dos compatriotas. Os telefonemas de ambos e do pessoal da embaixada, para ali e para o apartamento, tinham esbarrado com as férias de Martinho na ilha.
Os combates terminaram quarta-feira mas as aulas só foram retomadas na semana seguinte. Emilio e Ramón escaparam à onda de prisões que levaram muitos dos seus colegas para os calabouços de La Intendencia, a prisão do ministério do Interior. Martinho recompôs-se da ferida mas o embaixador, a quem só foi contado o indispensável da história, ficou a julgar que ele tinha saído da balsa pelos próprios meios. No final do ano lectivo, dois meses depois, Martinho e Carmen casaram-se, na catedral de Nuestra Señora del Martirio, como planeado. Quando, após a cerimónia, voltaram para o exterior, havia umas dezenas estudantes da faculdade sentados junto ao apostolado e nos degraus da escadaria. Dentre eles, destacavam-se os rapazes de El Vuelo del Pájaro que puxaram das suas guitarras e flautas e principiaram um canto lento e suave, onde se falava de "el indio solitario de la Isla de la Libertad y sus dos pajaritos". Martinho, Carmen e os convidados passaram por entre os estudantes e todos seguiram para os automóveis que os esperavam. O escasso grupo de amigos que constituía a comitiva ficou algo surpreendido com aquela inesperada efusão académica mas os recém-casados, fingindo alheamento, entraram no carro. Porém, lá de dentro, sorriram para os estudantes...

1 comentários:

valdemar pereira disse...

Por razões diversas apreciamos os escritos do amigo e professor Joaquim Saial. Hoje vivemos a estôria com alguma angustia pois respeitamos o isolamento (até quando?)

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