Com a devida
vénia ao seu autor, Nuno Pacheco, transcrevo e recomendo vivamente a leitura deste excelente
artigo sobre os malefícios que vem fazendo à nossa bela Língua, o estranho e esquisito “Acordo Ortográfico”.
Enquanto
combatemos o novo coronavírus, o velho “ortogravírus” não pára
Nuno Pacheco*
Sabem o que é o “impato” da pandemia? Ou a
propriedade “inteletual”? Ou os “artefatos” que a PJ encontrou? Ou a “seção” do
talho? Ou o “fato de não irem” sabe-se lá onde? Ou alguém ter ficado
“estupefato” com alguma coisa? Se não sabem, deviam saber. São alguns dos
recentes efeitos de um vírus que se instalou na escrita portuguesa (mas também
na fala: esta semana, na televisão, alguém falou em “adetos” de um clube) e não
há maneira de ser erradicado. Está um pouco por todo o lado, desde o oficialíssimo
Diário da República aos jornais e à televisão.
E continua assim por sucessivas razões. Quando se
fala nos malefícios do acordo ortográfico, há sempre qualquer urgência que adia
a discussão: eleições, remodelações, temas candentes no Parlamento (aborto,
eutanásia, Orçamento), crises, um imenso rol. Mas como a língua, falada ou
escrita, é coisa de todos os dias e transversal a todas as actividades, da mais
pequena etiqueta de vestuário ou bula farmacêutica até aos decretos
governamentais, o caos ortográfico é desde há muito um dado adquirido nessa
imensa torrente de palavras. Bem pior em Portugal do que no universo mais vasto
da língua portuguesa, onde tal vírus só fracamente se propagou.
Um exemplo, actualíssimo. Quando o ministro Tiago
Brandão Rodrigues anunciou, nesta quarta-feira, as maravilhas da nova telescola
pela “caixinha mágica” (palavras dele) da RTP, no rodapé era anunciado um
aumento do “número de infetados” (sic) com o novo coronavírus. Por cá, tudo o
que se relaciona com infecções foi amputado de uma letra pelo velho vírus
ortográfico (ou “ortogravírus”, como queiram) e passou a infetado, infetada,
infecioso, infeção, infeções, infetou, infetar, desinfeção. Pois bem, já que o
acordo ortográfico de 1990 é para o universo da língua portuguesa, supunha-se
que tal grafia seria comum a todos os países. Mas não. No Brasil, como já aqui
se referiu, a norma desta família de palavras não se alterou (está, aliás,
igual à que Portugal praticava antes do acordo): infectado, infectada,
infectados, infecção, infecções, infecciosas, infectologista, desinfecção. E
numa ronda mais recente pela imprensa brasileira (no dia 12 de Abril) confirma-se
tal conclusão. Folha de S. Paulo: “Ele [Jair Bolsonaro] negou ter sido
infectado, mas não mostrou o resultado dos exames até agora.” Correio
Braziliense: “Após 16 dias de infecção, um novo exame e o resultado negativo.”
Estadão: “A missão dos governos será retomar a atividade econômica sem
desencadear uma segunda onda de infecções.” Jornal do Brasil: “No Ceará, são
1582 infectados e 67 óbitos.” Veja: “Acompanhe as últimas notícias sobre a
infecção no Brasil e no mundo.” Chega?
Não, não chega. Vejamos Cabo Verde. A Semana
(12/4): “infectados” e “infecção”; Expresso das Ilhas (11/4): “infectada”,
“infectou”. Agora São Tomé e Príncipe. Jornal Transparência (26/3): “infecção”
e “infectou”; Téla Nón (8/4): “infecção” e “infectados”; Jornal Tropical
(25/3): “infecção”. Convém sublinhar que nestes jornais (dos únicos países que
até agora aderiram ao AO90) continua a aplicar-se a grafia de 1945, excepto nos
artigos importados de Portugal, via agência Lusa. Mas prossigamos a viagem, com
Angola. O Novo Jornal (9/4) fala em “casos de infecção” e o Jornal de Angola
(11/4) em “casos infectados”. Em Moçambique, idem: “Infectadas” n’O País (5/4)
e “infectados” na Verdade (11/4). Tal como em Timor-Leste: “A cidadã infectada
esteve em Portugal para uma acção de formação” (Tornado, 23/3). Só na
Guiné-Bissau se verifica uma miscelânea. O comunicado do Ministério da
Administração Territorial e Poder Local (11/4) fala em “pessoas infectadas”,
mas grafa “atividade” sem C. Nos jornais O Democrata ou Rispito também podem
encontrar-se “infeção” e “infetados”.
Portanto, “infetados” só mesmo em Portugal e
algures em Bissau. No resto do mundo, só há “infectados”. Mas pode dizer-se que
Portugal seguiu exemplos de simplificação ortográfica existentes noutros
países? Veja-se como se escreve infecção noutras línguas que usam o nosso
alfabeto. Mantendo o dígrafo CT da língua matriz, o latim (infectione), temos
infection (inglês, francês) e infectie (holandês e romeno, este com uma cedilha
no t); com o dígrafo CC, temos infección (espanhol, galego) e infecció
(catalão); com o dígrafo KT, há infektion (alemão, dinamarquês, sueco),
infektioun (luxemburguês), infektio (finlandês), infekto (esperanto) e
infektsiya (uzbeque); com o dígrafo KC, registam-se infekcija (bósnio, croata,
lituano, letão), infekcja (polaco), infekcie (eslovaco) e infekce (checo); com
KS, há infeksi (indonésio), infèksi (javanês), inféksi (sudanês), infeksie
(africâner), ynfeksje (frísio), infeksiya (azerbaijano), infeksion (albanês),
infeksjon (norueguês), enfeksiyon (turco) e enfeksyon (crioulo haitiano); com
KZ há infekzio (basco); e com ZZ infezzjoni (maltês, corso). Com uma só letra,
o Z, há o infezione italiano. Que se lê com “e” aberto, ao contrário da infeção
acordista, em que o “e” se apaga como em infecundo, infeliz ou inferior. O
ministro da Educação devia acordar para isto, quando sugere um interesse por
“línguas estrangeiras” nestes tempos de difusão telescolar.
Jornalista in Público de 16.04.2020
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