Língua portuguesa: uns só sabem do
sonho, outros é mais inquietação, inquietação
Nuno Pacheco[i]
António
Gedeão, Manuel Freire e José Mário Branco não têm culpa nenhuma disto, mas se
tivéssemos de traduzir em música as celebrações do Dia Mundial da Língua
Portuguesa, o primeiro desde que a UNESCO fez mundial a data fixada em 2009
pela CPLP, só duas canções nos ocorrem: Pedra filosofal e Inquietação. A
insustentável leveza do sonho e o peso do que nos inquieta.
É
certo que, a esta hora, já todos viraram a página, até porque o fantasma da
recessão que paira sobre as economias relegará mais uma vez a língua para
segundo plano. Mas nas mensagens, nos discursos, nos artigos de opinião e nas
celebrações que marcaram o dia 5 há um generalizado tom ufanista que só a custo
encontra expressão prática. Dos arroubos poéticos da mensagem presidencial
(Marcelo Rebelo de Sousa elogiou no português “o génio de ser uma língua do
futuro, viva, diversa na unidade, que muda no tempo e no espaço, continuando a
ser a mesma no essencial”) à euforia de António Costa (“Na língua portuguesa
cabe o mundo inteiro. A língua portuguesa é, porventura, a nossa maior riqueza,
colectiva, de todos nós”), passando pelo ufanismo matreiro do texto para o qual
o ministro Augusto Santos Silva arregimentou três outros ministros que em
matéria de políticas da língua só são chamados quando convém, vai um largo rol
de cenários sonhadores e vacuidades. É possível escrever, como se faz neste
último texto, sem soltar de imediato uma gargalhada, que “cresce o uso [da
língua portuguesa] na economia, nas viagens, na informação”? Em que planeta
vivem?
Falantes
de português no mundo, hão-de ser 500 milhões no futuro, afiança Costa. Mas
hoje há quem fale em 265 milhões, mais de 270 milhões ou cerca de 300 milhões.
São números que só querem dizer alguma coisa se descermos à realidade dos
países onde a língua é falada ou ensinada e aí veremos que há inúmeros
problemas ocultos neste nevoeiro de sonhos. A imagem, idílica, de milhões de
estrangeiros ávidos de aprender o português (pouco importa em que variante)
esbarra na dura realidade de a língua enfrentar dificuldades no seu próprio
terreno, seja no ensino em países africanos (as queixas são públicas e
conhecidas), seja na insistência com que o português é facilmente substituído
pelo inglês em várias instâncias. A orquestra “lusófona” internacional quer ser
bonita, mas anda muito desafinada.
O
embaixador de Portugal na UNESCO, António Sampaio da Nóvoa, deu recentemente
uma entrevista à Renascença onde, a par de considerar que “temos que fazer
mais” pelo ensino da língua no estrangeiro e em Portugal (e se temos de fazer
mais é porque não fazemos ainda o suficiente),
No Dia Mundial da Língua Portuguesa
houve um generalizado tom ufanista que só a custo encontra expressão prática
acenou
com esta velha miragem: o português como língua oficial da ONU. Diz ele que
hoje “estamos mais perto” de o conseguir. Estamos? Olhe que não. O secretário
executivo da CPLP, Francisco Ribeiro Telles, também numa entrevista recente à
Deutsche Welle África, reconhece “que existe de facto uma vontade de diferentes
departamentos das Nações Unidas em poder desenvolver esforços no sentido em que
o português venha a ser uma língua oficial”, mas constata que, “para além de
uma vontade política, é necessário um enorme esforço financeiro, que obviamente
levará o seu tempo a concretizar”. Um enorme esforço financeiro, aí está. Ora a
CPLP tem um largo historial de contribuições em atraso e o nada recomendável
Instituto Internacional da Língua Portuguesa está financeiramente nu. Portanto
sim, há sonhos, planos, protocolos, promessas. Mas não há dinheiro. A isto, dá
o sonhador uma singela resposta: “A língua portuguesa é, porventura, a nossa
maior riqueza.” Ufanismo de bolsos vazios.
Como se não bastasse, há ainda o incómodo
Acordo Ortográfico. Ratificado por quatro países, que só parcialmente o aplicam
(com as incongruências a ele associadas e com uma trapalhada enorme nas datas
de ratificação, como já várias vezes aqui se escreveu), vem agora Cabo Verde
dizer que a atitude do país “é não entrar em posições fracturantes, neste
momento”, ao passo que Angola, cujo ministro das Relações Exteriores, Téte
António, diz “estar a trabalhar com vista à ratificação”, sublinha que ali o
português apresenta “particularidades discursivas, pragmáticas, sintácticas,
léxicas, morfológicas, fonológicas e prosódicas.” Concluindo: é uma variante e
quer ser como tal reconhecida. A amálgama “unificadora” actual não lhe serve.
E a Portugal muito menos. Atente-se nesta
passagem da já citada entrevista de Sampaio da Nóvoa: “O professor Adriano
Moreira, num texto recente, dizia que tínhamos que acabar com a inquietação do
Acordo Ortográfico. Julgo que é preciso, serenamente, fazer uma avaliação,
pensarmos no que nunca aconteceu ao longo destes últimos anos e décadas. Pensar
o que isso significa para as gerações mais jovens, o que significa para as
gerações menos jovens como a minha e a partir dessa avaliação encontramos
soluções de futuro. É uma resposta que lhe estou a dar a título pessoal, mas
creio que está na altura de fazermos essa avaliação e, retomando as palavras do
professor Adriano Moreira, acabar com esta inquietação.” É um ponto de partida
tardio. Mas a inquietação só terminará quando for reconhecido o logro que este
acordo é. Livremo-nos dele, que terminará a inquietação. E haverá paz
ortográfica.
[i] Jornalista.
Escreve à quinta-feira nuno.pacheco@publico.pt
Obs: A vénia devida ao autor para esta publicação do seu texto no Coral-Vermelho.
O assunto tem sido oportunamente recorrente em Nuno Pacheco e merece ser lido com atenção.
Obrigada.
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