Os Vindos do Mar - As Visitas Temidas de Piratas às Ilhas de Cabo Verde

domingo, 26 de dezembro de 2021

 

 

Eis um assunto histórico que sempre despertou em mim uma grande curiosidade, as visitas indesejadas e temidas dos piratas, a Cabo Verde.

Mas mais, a minha curiosidade tem sido maior ao longo da vida, em  relação aos assaltos dos piratas à ilha do vulcão, as quais, como tudo indica, não foram assim tão poucas..

Acontece que cresci na Ilha do Fogo, só lá não nasci por um acaso, pois os meus pais e os meus irmãos mais velhos, tiveram de viajar do Fogo, via Mindelo, para Portugal de urgência, por motivos de saúde. E então eu nasci a bordo do vapor, em viagem para Lisboa. Embora também goste do local do meu nascimento: o mar!

Voltando aos terríveis piratas que são o foco deste escrito, sempre direi que desde miúda, pude  perceber e guardei muito bem essa memória, de que na minha ilha, uma das maiores ofensas que se podiam proferir, dirigindo-se a alguém, era o ápodo de “Pirata.” Era algo de muito grave. Era considerada uma enorme injúria, chamar-se a alguém: “Pirata!”. Ou, pior ainda:  “Filho de Pirata!”. Isso então,dava direito a brigas e a zangas sérias.

Mais tarde, com o andar dos séculos, com a passagem dos tempos, com o esquecimento do inferno  que fora sempre, a chegada dos piratas saqueadores, e com a evolução semântica do termo, “pirata”, “piratinha,” que conservou a conotação negativa - pois que justamente aplicado a ladrões, marginais e a deliquentes juvenis - o termo perdeu a pesada carga injuriosa que carreou no passado da ilha, quando então era o “trunfo” máximo de ofensa numa altercação entre vizinhos e/ou  entre outros contendores.

A então Vila de São Filipe foi várias vezes assaltada por estes "terroristas" do mar que não estavam autorizados a navegar no oceano dividido  - Tratado de Tordesilhas assinado em 1494 - entre espanhóis e portugueses e tudo isto durante séculos XV, XVI e XVII, sobretudo neste último século (XVII), os assaltos sucederam-se com maior frequência pois que já havia mais casas, mais templos construídos, igrejas e capelas, um pouco por toda a ilha. Os piratas  saqueavam  e roubavam tudo, inclusivamente casas da gente mais abastada da Vila de São Filipe.

Os Corsários e Piratas eram fundamentalmente, ingleses, franceses e holandeses.

O Historiador Christiano José de Senna Barcellos (Brava 1854 – 1915) no seu Volume I dos «Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné» Edição da BNL 2003, descreve com pormenores o que foi o saque da então Vila de São Filipe em Julho de 1655, por ele considerado dos mais violentos, operado por piratas holandeses.

O trecho que se segue, retirado do Volume I, pags. 245/246 narra-nos o seguinte:

“ Em Julho de 1655 aportou à ilha do Fogo uma nau holandesa, guiada por portugueses. Os holandeses saquearam a vila de São Filipe durante quatro dias, aprisionando mulheres, crianças e o vigário da matriz, sendo todos resgatados a troco de muitas fazendas. Quebraram e profanaram as imagens da igreja, e roubaram o oiro, pratas, ornamentos e sinos, escapando ao saque o Santissímo e o cofre que haviam sido escondidos por um beneficiado.

O Capitão-mór Francisco Lobo de Barros não estava na Vila quando se deu o saque, que foi repentino, e da mesma forma não estavam o alferes, o sargento e cabo de esquadra! Desprevenidos e enganadas as vigias e sentinelas (...)

Levaram armas e munições, deixaram a Vila de São Filipe em mísero estado.

Mais tarde, foram castigadas e despromovidas, as autoridades que não estavam nos seus postos. O Rei D. João IV, ordenou que se desse tudo o que à Igreja matriz de São Filipe, havia sido roubado pelos holandeses, ao mesmo tempo que  censurou as autoridades da ilha pela ausência da ilha e pelo abandono do seus postos. Por isso, e doravante,  passou a ser nomeado para o lugar de capitão e sargento-mór, um perfil militar que dava mais segurança na defesa e no zelo da ilha.

E como este, outros ataques de piratas se sucederam na maltratada ilha.

 Daí que fosse natural que os habitantes da ilha do Fogo, não guardassem boas memórias desses malfeitores que vinham do mar; os quais, para além de lhes roubarem tudo o que era mais valioso, violavam-lhes as mulheres, deixando algumas vezes, filhos dessa horrenda violação. Por isso, entendemos bem, a ofensa grande que era, apodar-se alguém de “filho de pirata”.

Muitas historietas e lendas se construiram à volta desses malfeitores vindos do mar, volto a repetir.

Conta-se igualmente que a determinada altura, foram escolhidos jovens que possuíam  voz potente e que avistavam do cume da serra mais alta da ilha, as velas dos barcos de piratas na linha do horizonte, e quando aconteciam esses avistamentos, gritavam algo semelhante a: “Pirata à vista!!.” O grito anunciador dava azo a que “corredores alvissareiros” fossem à Vila, avisar o padre e as autoridades da iminente chegada. Ouvia-se então, e era escutado com aflição, o rebate dos sinos da Igreja de Nª Senhora da Conceição, cujos sons, o tipo de toque, transmitiam aos moradores, a aproximação dos bandidos vindos do mar. Por vezes, e quando havia calmaria, a aproximação  dos navios do fundeadouro, levava mais tempo e tal facto, dava tempo também a que os habitantes fugissem da Vila em direcção ao sul, e ao norte da ilha levando consigo, alguns bens considerados mais valiosos. Outras vezes, os moradores e as autoridades eram apanhados de surpresa com a chegada da pirataria e tinham de largar tudo e fugir a “sete pés”.

E histórias há que narram que alguns moradores, mais ricos, levavam caixas com ouro e prata e que as escondiam em buracos cavados na terra, em determinados sítios e que, passada a tormenta, iam à procura delas. Acontecia que na aflição, alguns se esquecessem do sítio onde haviam enterrado, as caixas com jóias e com objectos de valor. Então ficavam aí enterradas “ad eternum”, configurando-se à volta disso, lendas e historietas locais, e algum anedotário que daí  também se originou. 

Outras vezes enganavam-se – na pressa da fuga -  no baú ou, na caixa a levar. Ao invés de carregarem a caixa com objectos de valor, levavam  a caixa com roupas, ou com objectos sem qualquer valor,  deixando - literalmente - o “ouro ao bandido.”

Todos sabemos que estas ilhas foram assoladas e saqueadas, não poucas vezes, por piratas e corsários holandeses, franceses e ingleses. Sabemos dos assaltos e dos saques à Cidade Velha, antiga capital da sua quase destruição feita por piratas, e que por isso, se transferiu a capital de Cabo Verde, para a Praia.

Nomes há que se sobressairam no meio dos piratas e dos corsários saqueadores violentos das ilhas e, particularmente da Cidade Velha, o inglês Francis Drake, o francês Jacques Cassard, entre outros, e tristemente célebres destruidores de vilas e da cidade destas pobres ilhas.

Piratas e corsários que matavam, que saqueavam, tudo que encontravam pela frente e que violavam  mulheres.  Daí terem deixado em algumas ilhas, alguma descendência. Filhos – que do pai nunca haveriam de ouvir falar, pois o desconhecimento seria total e para sempre.

Desta forma, podemos compreender o quão injurioso e acintoso era chamar-se a alguém: “Filho de Pirata!”

Não admira pois, a ira e a aversão secular que na ilha do Fogo, se nutriu pelos piratas.

E pensar que as viagens dos corsários com a finalidade  de pilharem não só as naus portuguesas e espanholas, mas também de saquearem vilas e cidades, foram realizadas com a benção e o beneplácito régio dos respectivos países.

Nos dias de hoje na cidade de São Filipe ainda existem vestígios (simbólicos) da  passagem de piratas e que são reveladores da tal ira secular que os sanfilipenses, nutriram pelos bandidos vindos do mar.

 Para exemplo, quando alguém quer mostrar a sua contrariedade, a sua forte  oposição a algo feito, ou pela Câmara Municipal ou, pelo Governo, coloca à janela uma bandeira de pirata (com fundo preto, a caveira com o lenço vermelho e as duas espadas traçadas) para simbolizar que está em total desacordo com o que se fez ou, com o que se pretende fazer e com isso demonstrar também, algum  desprezo por tal situação.

Voltando ao título deste escrito, coloco uma questão: quando é que algum Historiador nosso, se abalançará para nos narrar com factos e datas investigadas, os muitos assaltos de piratas e de corsários nestas ilhas? No fundo, uma História específica da pirataria em Cabo Verde.

Afinal, a história da Pirataria em Cabo Verde, é parte e faz parte integrante da História já bem antiga deste Arquipélago cujo percurso se iniciou nos idos do século XV(1460).

Até ao momento que escrevo estas linhas não conheço e nem tive notícia de alguma obra histórica recente –refiro-me a livro - a este respeito e aqui dada à estampa. Salvo, claro! A grande obra (vários volumes) escrito por Christiano Senna Barcellos, já aqui referido, bravense de origem e meticuloso investigador da História destas ilhas. 

Nesta linha de escritos sobre piratas, devo mencionar também a escritora e cronista da ilha do Fogo, Gilda Marta Vieira de Vasconcelo Barbosa, que publicou um texto - (ou mais do que um...) –  no Jornal Terra Nova de Abril de 2006, exactamente sobre das atrocidades e as pilhagens cometidas por piratas, que invadiam a ilha, com particular incidência em São Filipe.

E bom seria também, que o assunto fosse hoje seriamente investigado, para que o tivessemos como objecto de ensaios e/ou de teses no país.

Assim chego ao fim desta minha tentativa, que reconheço muito, muito modesta, de trazer ao leitor deste “Blog,” uma parte milimétrica da nossa História, embora nada agradável, ela é também e se calhar, estruturante/desestruturante, porque os assaltos de piratas, provocaram significativas alterações na vida dos habitantes e na organização administrativa, do nosso Arquipélago.

 

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Felicito a Amiga Dr.ª Ondina Ferreira por abordar este tema pouco conhecido dos cabo-verdianos. As informações prestadas são interessantes e confesso que não as conhecia, pelo que se justifica, como propõe a autora, que se investigue mais profundamente sobre este tema. E pensar que piratas do género que víamos nos filmes do Eden Park assolavam as nossas ilhas.

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