Vem
isto a propósito da excelente Entrevista concedida pela linguista e professora
Dulce Irene Lush Ferreira Lima, sobre a (co-) oficialização da Língua Cabo-verdiana
(LCV) ao semanário «Expresso das Ilhas» de 23/02/2022, transcrita neste “Blog”
e cuja leitura recomendo.
A entrevistada menciona, a determinada altura, o tipo de
linguagem que vem sendo utilizada quando o assunto é a LCV. Uma linguagem acentuadamente
(ou acintosamente) belicista sobre a mesma, propalada e divulgada, (ouvidas e
lidas) em várias declarações públicas e publicitadas aqui nas ilhas.
É
sobre isto que adiante falarei.
Antes de entrar propriamente no tema sugerido no título deste
escrito, queria muito brevemente recordar que aquando da institucionalização do
Crioulo, como Língua Cabo-verdiana em 1999, era eu Deputada e Primeira
Vice-Presidente da Mesa da Assembleia Nacional. Recordo-me de que o postulado
no Artigo 9º da Constituição então revista, foi votado por unanimidade, repito,
por unanimidade, – na generalidade,
na especialidade e, mais tarde, na votação final, global.
Já vivíamos em democracia desde 1991; a pluralidade instalada
no Parlamento com três bancadas distintas de Deputados.
Logo,
não houve voto algum contra, dos então representantes da Nação eleitos para a
legislatura de 1996-2000. Tudo pacífico.
Recordo-me do então Primeiro-Ministro Dr. Carlos Veiga, na
condição de Líder do saudoso MPD, acompanhado do líder parlamentar da respectiva
bancada, terem pedido a minha colaboração na revisão da redacção do texto para
o Artigo que consagrava a visibilidade constitucional da Língua Cabo-verdiana, o
que aceitei com toda a disponibilidade e agrado. Lembro-me, quase 23 anos passados
sobre o acontecimento, que a minha proposta de redacção começava assim: “ (…) A
Língua Cabo-verdiana e a Língua Portuguesa são ambas nacionais e oficiais” (…)
e a minha redacção, agora cito de cor, já se me foi da memória, mas sei que
continuava nesta linha: o Estado criaria as
condições para que fosse cumprido o desiderato pretendido em todos os
documentos e pronunciamentos públicos, fossem eles de natureza oficial ou
privada e, finalmente, para que o falante
cabo-verdiano se afirmasse realmente bilingue.
A
afirmação de princípio de que as duas Línguas eram “nacionais e oficiais” seria
na minha opinião e dada a relativa perenidade constitucional, uma base de real
paridade das nossas duas Línguas, e daria horizonte temporal para a elaboração
de uma metodologia adequada às instituições académicas, administrativas,
públicas e privadas, entre outras, que assim se preparariam para atingirem a
finalidade pretendida.
Não a aceitaram assim.
Compreendi o motivo disso. Tratava-se na altura, por um lado, de apenas se colocar
como foco central – na nova
redacção do Artigo 9º da Lei magna – a
Língua Cabo-verdiana em destaque constitucional; mas por outro lado, havia o
escolho real, que tinha a ver com a dificuldade material, pelo investimento que
se adivinhava vultuoso para esse projecto, e que, pelos vistos, continuou a ser
porque todos os governos subsequentes, até aos dias de hoje, nada acrescentaram
de significativo e de substantivo nesta matéria. Possivelmente, porque quem
está na gestão do país sabe muito bem, que outras prioridades se apresentam com
maior premência. País pobre e dependente em tudo - tanto
na sua sustentabilidade, como no seu desenvolvimento - da ajuda internacional. “Para
bom entendedor…”
É sempre
bom lembrar esses interessantes e aparentes “pequenos factos” como fez a minha
colega Dulce, na entrevista e cujo extracto a
seguir transcrevo: “ (…) Mas leio também
um paradoxo, o qual se tem manifestado de forma cada vez mais visível: a partir
do momento em que a Língua cabo-verdiana é constitucionalizada, em 1999, é
quando se ouvem as maiores reivindicações e denúncias de uma suposta “falta de
dignificação” e da sua “inferiorização”. Quando ela não era sequer considerada
juridicamente, ou seja, nos primeiros 25 anos da república não se ouvia esse
tipo de acusações.” (Fim de transcrição).
Posto
isto, passo a discorrer um pouco –
relevem-me a tentativa irónica, mas só apoiada nesta
figura de estilo, conseguirei escrever – sobre a linguagem e a adjectivação belicista
que os participantes desta “batalha campal” têm trazido à liça.
Com
efeito, trata-se de uma autêntica “guerra civil,” a tal ponto, que uma notícia
sobre as celebrações do Dia da Língua Materna trazia o seguinte cabeçalho: “A
Guerra das Línguas.” Elucidativo, não é?
De
facto, uma autêntica “peleja declarada” em palavras, aquela que tem acompanhado
os audazes e autoproclamados “guerreiros e soldados” da LCV, quer nas redes
socias, quer nos pronunciamentos públicos, até, por entidades alegadamente responsáveis.
Uma luta feroz na “linha da frente de combate” contra a “raça diferente”
(…raça? Mas que raça? Ouviram bem? oriunda
possivelmente de Marte (?) E que povoou no século XXI as nossas ilhas (?). Não
querem ver o desplante(!) dessa raça de avantesmas marcianos?
Estamos
sem dúvida numa “guerra sem quartel,” numa “batalha” contra os cabo-verdianos
para “a consolidação da nossa independência,” contra “o colonialismo”
cabo-verdiano. Tudo isto e muito mais, são
expressões utilizadas em 2022?
Aonde
queremos chegar com este tipo de discurso que cria anticorpos nos pacíficos falantes
e amantes da LCV? Que a usam, que a falam, que a
escrevem, que a cantam, cada um na sua variante, com afecto, sem guerras
desnecessárias, sem guerreiros, sem combatentes, apenas, e tão simplesmente:
“com amor genuíno e nunca desmentido” como escreveu em 1922, Augusto Casimiro, escritor
português e bravense de coração, que, ao lado de Eugénio Tavares, se referia ao
afecto que o falante e o poeta cabo-verdiano tinham para com a sua língua
materna.
E mais, sem alusão ao “colonialismo,”
à “raça,” (já agora que tal a “religião” e a “orientação sexual”? também fazem
parte deste léxico actual, aguerrido e folclórico?).
Mas, enfim, tudo serve para puxar à guerra verbal: a “independência,”
a “linha da frente do combate,” aos que “atacam o Alupec”. Eu sei lá!...
Mas, digam-me, meus senhores, para quê esta incursão bélica, ao
falante cabo-verdiano? Como verbalizou um dos famosos combatentes, da causa da Língua
Cabo-verdiana “com baioneta apontada e espingarda ao ombro”?
“Baioneta apontada”? A quem? Ao irmão cabo-verdiano? E para
quê?
São capazes de me explicar tanta e tão tamanha violência?
Vamos
lá mas é abaixar a baioneta e guardar a espingarda, se faz favor!
Ganhemos
todos serenidade. A bem da nossa sanidade intelectual.
Volto
a perguntar, para quê este “arsenal” de palavras embebidas em armas de guerra?
Para quê tudo isto?
“Não
havia necessidade”! …“Não havia necessidade!” Já dizia um cómico bem conhecido.
As
redes sociais estão aí, a “ferro e fogo,” numa cruzada quase ”terrorista,” visando quem ouse ter opinião diferente da que eles
proferem nesta matéria.
Deus
meu! Para quê tanto agravo?
Sociologicamente analisados, mais parecem “fundamentalistas”
vingativos, ou “novos-ricos” deslumbrados com a descoberta de “armas
vocabulares” para “combater” e “bombardear” o pobre falante cabo-verdiano, indefeso,
“entrincheirado em facções,” sitiado em “bunkers,” sentindo-se intimidado, amedrontado
e espantado com a ferocidade destes patrícios valentões!…
O que se ganhará com esta autêntica guerra fratricida? Dividir
a sociedade cabo-verdiana? De um lado os “bons”, e do outro, os “maus”? Ou de
um lado os “nacionalistas” e do outro os “colonialistas”?
Ora,
e se ganhássemos bom senso? E se parássemos esta guerra – de palavras bélicas – absolutamente desnecessária?
E que tal se fôssemos mais pedagógicos? A laia de um professor
que ensina com sabedoria e assertividade a matéria, sem descurar o afecto para
com os seus discípulos… e, no caso, seus patrícios?
A
bem da Língua cabo-verdiana e da paz nestas ilhas, vamos declarar tréguas a
este vocabulário de guerra inútil, e sentarmo-nos todos à volta de uma mesa
para um diálogo pacífico e frutífero!
Concordam?
Se sim, bem-vindos ao Clube para a Paz e para a concórdia linguística nacional!
1 comentários:
Venho com atraso a este post, mas não posso deixar de o comentar porque apreciei imenso a crónica e porque se trata de um tema sempre em aberto e que acredito assim prosseguirá pelo tempo fora. Tive de ler a entrevista a que se refere a crónica, a da Dr.ª Ferreira Lima, e, para começar, merece ser sublinhado o paradoxo que é denunciado, a saber: “ a partir do momento em que a Língua cabo-verdiana é constitucionalizada, em 1999, é quando se ouvem as maiores reivindicações e denúncias de uma suposta ‘falta de dignificação’ e da sua ‘inferiorização’. Quando ela não era sequer considerada juridicamente, ou seja, nos primeiros 25 anos da república não se ouvia esse tipo de acusações.”
Isto é simplesmente espantoso! E o paradoxo nunca se resolverá porque tem por trás um problema bicudo e que só por falsidade e hipocrisia é ignorado pelos tais “nacionalistas”. Fingem que não lobrigam a realidade, mas dá-lhes jeito ter sempre à mão o problema porque, digamos assim, alimenta o desejo de ressarcimento de algo que nem os próprios identificam ou clarificam com um mínimo de seriedade intelectual.
Vejamos então porquê. Como, quando e com que meios resolver os seguintes problemas básicos que a oficialização do crioulo suscita? A saber:
- uniformizar o idioma e criar uma escrita padronizada que seja unanimemente aceite;
- Traduzir para o tal crioulo padronizado toda a documentação do Estado, incluindo a Constituição e todo o corpo legislativo. O mesmo para os manuais escolares, do ensino primário ao universitário. Os custos não serão de pouca monta e a sua eficácia é duvidosa, dado que o mais certo é tudo resultar num “portucrioulo”, por empréstimo forçado ao português da maior parte da linguagem técnica e jurídica;
- De permeio, conseguir que as representações diplomáticas prefiram o crioulo ao português na sua relação com o Estado, sendo que uma coisa é o estrangeiro sentir-se motivado para aprender uma língua falada por uma comunidade de 280 milhões de almas e outra bem diferente é o caso de uma língua restrita a algumas centenas de milhares;
- Convencer os criadores literários a escrever para um público reduzido, quando mais motivante, e literariamente mais sedutor, é saber que se está a publicar para uma comunidade de 280 milhões de almas;
- O mesmo problema se colocará em relação à comunicação social. Se para a televisão e a rádio não haverá dificuldade de ordem comunicacional (salvo o problema da uniformização do idioma), para os jornais a questão será mais delicada e o recurso ao “portucrioulo” será certamente inevitável;
Por outro lado, e finalmente, será uma incógnita saber o que efectivamente resultará da eficácia do ensino e da consequente aprendizagem de duas línguas dotadas de instrumento gramatical e em que uma delas, filha da outra, se serve de grande parte do léxico da mãezinha, mormente se o conteúdo da expressão é de domínio técnico, jurídico, literário ou filosófico. É que sempre pensei que o efeito será tão pernicioso, dada a confusão e promiscuidade relacional, que o mais certo será um entrave ainda maior à aprendizagem do português e sem que, em contrapartida, se consiga valorizar o tal crioulo oficial que os “nacionalistas” reclamam como magno imperativo.
Eu e os da minha geração já não estaremos neste mundo e é muito provável que os nossos bisnetos, trinetos ou tetranetos ainda estarão com esta falsa batata quente na mão. Ou talvez não, desde que o nacionalismo ridículo e patético já tenha estourado todos os cartuchos, rendido à evidência de que a identidade do cabo-verdiano não tem no crioulo o seu único ancoradouro. E no entanto acredito que o crioulo sobreviverá se o deixarem entregue à sua própria natureza selvagem.
Parabéns à Dr.ª Ondina Ferreira e à Dr.ª Dulce Irene Lush Ferreira Lima pelo seu contributo.
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