“Para
que a (co-)oficialização da língua cabo-verdiana ocorra, é necessário que ela
seja considerada e assumida como parte integrante de um projecto político mais
vasto”, Dulce Lush
Entrevistada por António Monteiro[i]
Colóquios, conferências, workshops,
conversas abertas, encontros com estudantes e professores assinalaram um pouco
por todo o país mais um Dia Internacional da Língua Materna. Em conversa com o
Expresso das Ilhas, a antiga professora e autora de vários artigos sobre a
problemática linguística em Cabo Verde analisa os vários discursos proferidos
por experts, académicos e políticos durante estes dias para concluir que
houve uma certa babelização do debate. “Enquanto cidadã, a minha percepção é
que sistematicamente é-nos apresentada uma opção binária: a favor ou contra a
(co-)oficialização da língua cabo-verdiana, o alfabeto cabo-verdiano, a língua
cabo-verdiana como língua de ensino, etc”. Na sua opinião, um tal debate é
redutor e impede-nos de levar em conta toda a complexidade da realidade
linguística. “O próprio vocabulário, utilizado por entidades políticas ou
académicas, mas também pelo público, é um indicador: luta ou combate”, aponta.
Aquando das
celebrações de mais um Dia Internacional da Língua Materna, foram feitas várias
declarações. Destacaria alguma delas em particular?
Autorizo-me um trocadilho
para lhe responder que o que mais reteve a minha atenção foi uma certa "babelização" do debate. Enquanto cidadã, a minha percepção é que,
sistematicamente, é-nos apresentada uma opção binária a favor ou contra a (co-)oficialização
da língua cabo-verdiana, o alfabeto cabo-verdiano, a língua cabo-verdiana
“Eu não falaria de problemas ligados à língua materna
porque esta goza de boa saúde e não tem problemas.”
Um tal debate é redutor e impede-nos de levar em conta toda a complexidade
da realidade linguística. Aliás, parece que esta problemática serve, muitas
vezes, de álibi para a defesa de modelos culturais não necessariamente
partilhados pelo conjunto da população. O próprio vocabulário, utilizado por
entidades políticas ou académicas, mas também pelo público, é um indicador:
“luta” ou “combate”; referências a “raças” diferentes, que corresponderiam às
línguas cabo-verdiana e portuguesa e, até, uma surpreendente e anacrónica ideia
de “consolidação da independência de Cabo Verde”. Acabo por perguntar, afinal,
o que é que está em discussão, realmente?
Mas pensa que a
oficialização do crioulo irá resolver todos os problemas ligados à língua
materna?
Eu não falaria de
problemas ligados à língua materna porque esta goza de boa saúde e não tem problemas.
Penso que haverá problemas ligados, sim, à co-oficialização da língua
cabo-verdiana. Para que esta ocorra, é necessário que ela seja considerada e
assumida como parte integrante de um projecto político mais vasto. Este, por
sua vez, deve poder contar com uma expertise plural e multidisciplinar e com
pontos de vista divergentes, que possam esclarecer o poder político para a
tomada de decisões. Isto é importante porque a política é um espaço onde se
tomam decisões a serem partilhadas por todos e não pode ser transformada num
espaço onde se aplica, directamente, a ciência. Relativamente à língua materna,
eu penso, ainda, na questão da escrita, ou melhor, no papel central que ela
ocupa no nosso sistema político e cultural. A norma escrita é, não só o modo de
comunicação privilegiado da
“a Língua Cabo-verdiana é constitucionalizada, em 1999, é quando
se ouvem as maiores reivindicações e denúncias de uma suposta “falta de
dignificação” e da sua “inferiorização”. Quando ela não era sequer considerada
juridicamente, ou seja, nos primeiros 25 anos da República, não se ouvia esse
tipo de acusações. “
também, é um dos fundamentos da república. Logo, passar de um Estado
unilingue para um estado bilingue é uma transformação profunda, que diz
respeito aos alicerces de todo o edifício. E o que, a meu ver, subjaz ao artigo 9º da Constituição da República: o processo tem que
ser encaminhado de modo a que todos, o aparelho do Estado e os cidadãos
partilhem o mesmo sistema linguístico, constituído este por duas línguas. O
processo encontra-se, ainda, num estádio em que a LCV não dispõe de uma
“ortografia estável”, o que não poderá deixar de ser feito.
Então, a oficialização
pressupõe a padronização da língua cabo-verdiana. Esta poderá ser um factor de
divisão?
Bem, eu não vou entrar em
questões técnicas, dado que estas dispõem do seu espaço próprio. Mas vou
considerar a situação em que cada um de nós fala e continuará a falar a sua
variante própria e em que não é de todo viável que cada um escreva “como fala”.
Um exemplo simples: qual é a forma correcta de escrever o nome dos numerais 2, 3
ou 24". Ora, não produzimos os mesmos sons quando pronunciamos tais
palavras
“A norma escrita é, não só o modo de comunicação privilegiado da
administração pública, mas também é um dos fundamentos da república.”
resultado será uma grande diversidade de formas. Pode-se
imaginar que as crianças aprendam a escrever conforme a variante utilizada? Ou que a declaração de impostos seja escrita de formas diferentes, conforme a
variante que o contribuinte utiliza?
Trata-se de uma
fraqueza do alfabeto fonológico?
Não propriamente do
alfabeto fonológico, mas uma fraqueza, creio, da forma como o processo tem
decorrido. Faltam esclarecimentos e pedagogia. É indispensável saber o que se
vai fazer e como se vai fazer; com que meios; quais os objectivos e que
resultados se podem esperar. Penso que existe um desfasamento entre a retórica
e as decisões políticas, o que acaba por confundir as pessoas. E o que me leva
a questionar se o problema não tem que ver com a incapacidade das instituições
em responder às demandas da sociedade e às exigências de uma sociedade mais
harmoniosa.
O ministro da Cultura
considerou que a problemática das variantes do crioulo é uma falsa questão. Podia
comentar?
A partir do momento em
que a população tem dúvidas sobre o que está a ser feito e carece de
esclarecimentos, parece-me que que se trata de uma verdadeira questão. Aliás, é
o próprio Ministério da Cultura que publica um texto com a seguinte afirmação nu
tem nove variantes pa nove ilhas pamodi sima nu ta papia na nôs ilha é si ki nu
ta skrebi. Deve-se compreender que é a variante do Ministério da Cultura e
das Indústrias Criativas a utilizada na redacção? A pergunta que se seguirá,
provavelmente, será “Então, e a variante da minha ilha?" Temos, aqui, a
demonstração de como se alimentam dúvidas e tensões no seio da população.
O Presidente da
República numa entrevista a esta Jornal, na semana passada, refere-se,
repetidamente, às “nossas duas línguas nacionais´. Que sinais estará a emitir?
Interpreto a afirmação do
Presidente da República como uma tomada de posição, tanto mais importante que
ela não é condicente com a Constituição da República, a qual determina que “É
língua oficial o Português”. Ora, a não-coincidência entre o que defende o
Presidente da República e a Constituição da República, na melhor das hipóteses,
causa perplexidade. Mas leio também um paradoxo, o qual se tem manifestado de
forma cada vez mais visível: a partir do momento em que a Língua Cabo-verdiana
é constitucionalizada, em 1999, é quando se ouvem as maiores reivindicações e
denúncias de uma suposta “falta de dignificação” e da sua
“A não coincidência entre o que defende o Presidente da
República e a Constituição da República, na melhor das hipóteses, causa
perplexidade.”
“inferiorização”. Quando
ela não era sequer considerada juridicamente, ou seja, nos primeiros 25 anos da
República, não se ouvia esse tipo de acusações. Talvez seja o sentido da
declaração que o PR fez em Novembro, quando disse que estará “na linha da
frente no combate para a língua materna” (cito de memória). Creio que os
contornos desse “combate" deveriam ser melhor definidos, pois, é um desafio
democrático, o de partilharmos os mesmos princípios e valores fundadores da
Nação. Aqui, eu recordaria que, em 1985, por altura da mesa-redonda “Identidade
Cultural Cabo-verdiana”, o então ministro da Educação e Cultura, Corsino
Tolentino, defendia a utilização do “instrumento (a língua portuguesa) que temos
e que é tão nosso como o crioulo”. Por altura do 10° aniversario da
independência, e quando ainda se podia esperar uma maior necessidade de afirmação
cultural, a questão parecia resolvida, com o mesmo ministro a admitir “a
existência de uma identidade cultural sem se fazer
“Acabo por perguntar, afinal, o que é que está em discussão,
realmente"
língua exclusiva”. Que, hoje, voltemos a essas questões, levam-me a perguntar em que
momento nos desviamos do caminho e se não se impõe uma “recaboverdianização dos
espíritos”, como forma de superar essa tensão que se quer instalar. Quanto à
ideia de “o crioulo ser a forma de expressarmos melhor os nossos afectos”
defendida pelo PR, eu concluiria parafraseando a cantora Diva, pois cada um
sabe como há-de dizer I love you, sem que tal determine o grau de
cabo-verdianidade das pessoas.
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