quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

 

Para que a (co-)oficialização da língua cabo-verdiana ocorra, é necessário que ela seja considerada e assumida como parte integrante de um projecto político mais vasto”, Dulce Lush

Entrevistada por António Monteiro[i]

Colóquios, conferências, workshops, conversas abertas, encontros com estudantes e professores assinalaram um pouco por todo o país mais um Dia Internacional da Língua Materna. Em conversa com o Expresso das Ilhas, a antiga professora e autora de vários artigos sobre a problemática linguística em Cabo Verde analisa os vários discursos proferidos por experts, académicos e políticos durante estes dias para concluir que houve uma certa babelização do debate. “Enquanto cidadã, a minha percepção é que sistematicamente é-nos apresentada uma opção binária: a favor ou contra a (co-)oficialização da língua cabo-verdiana, o alfabeto cabo-verdiano, a língua cabo-verdiana como língua de ensino, etc”. Na sua opinião, um tal debate é redutor e impede-nos de levar em conta toda a complexidade da realidade linguística. “O próprio vocabulário, utilizado por entidades políticas ou académicas, mas também pelo público, é um indicador: luta ou combate”, aponta.

 

Aquando das celebrações de mais um Dia Internacional da Língua Materna, foram feitas várias declarações. Destacaria alguma delas em particular?

Autorizo-me um trocadilho para lhe responder que o que mais reteve a minha atenção foi uma certa "babelização" do debate. Enquanto cidadã, a minha percepção é que, sistematicamente, é-nos apresentada uma opção binária a favor ou contra a (co-)oficialização da língua cabo-verdiana, o alfabeto cabo-verdiano, a língua cabo-verdiana como língua de ensino, etc. 

“Eu não falaria de problemas ligados à língua materna porque esta goza de boa saúde e não tem problemas.”

Um tal debate é redutor e impede-nos de levar em conta toda a complexidade da realidade linguística. Aliás, parece que esta problemática serve, muitas vezes, de álibi para a defesa de modelos culturais não necessariamente partilhados pelo conjunto da população. O próprio vocabulário, utilizado por entidades políticas ou académicas, mas também pelo público, é um indicador: “luta” ou “combate”; referências a “raças” diferentes, que corresponderiam às línguas cabo-verdiana e portuguesa e, até, uma surpreendente e anacrónica ideia de “consolidação da independência de Cabo Verde”. Acabo por perguntar, afinal, o que é que está em discussão, realmente?

Mas pensa que a oficialização do crioulo irá resolver todos os problemas ligados à língua materna?

Eu não falaria de problemas ligados à língua materna porque esta goza de boa saúde e não tem problemas. Penso que haverá problemas ligados, sim, à co-oficialização da língua cabo-verdiana. Para que esta ocorra, é necessário que ela seja considerada e assumida como parte integrante de um projecto político mais vasto. Este, por sua vez, deve poder contar com uma expertise plural e multidisciplinar e com pontos de vista divergentes, que possam esclarecer o poder político para a tomada de decisões. Isto é importante porque a política é um espaço onde se tomam decisões a serem partilhadas por todos e não pode ser transformada num espaço onde se aplica, directamente, a ciência. Relativamente à língua materna, eu penso, ainda, na questão da escrita, ou melhor, no papel central que ela ocupa no nosso sistema político e cultural. A norma escrita é, não só o modo de comunicação privilegiado da administração pública, mas

“a Língua Cabo-verdiana é constitucionalizada, em 1999, é quando se ouvem as maiores reivindicações e denúncias de uma suposta “falta de dignificação” e da sua “inferiorização”. Quando ela não era sequer considerada juridicamente, ou seja, nos primeiros 25 anos da República, não se ouvia esse tipo de acusações. “

 também, é um dos fundamentos da república. Logo, passar de um Estado unilingue para um estado bilingue é uma transformação profunda, que diz respeito aos alicerces de todo o edifício. E o que, a meu ver, subjaz ao artigo 9º da Constituição da República: o processo tem que ser encaminhado de modo a que todos, o aparelho do Estado e os cidadãos partilhem o mesmo sistema linguístico, constituído este por duas línguas. O processo encontra-se, ainda, num estádio em que a LCV não dispõe de uma “ortografia estável”, o que não poderá deixar de ser feito.

Então, a oficialização pressupõe a padronização da língua cabo-verdiana. Esta poderá ser um factor de divisão?

Bem, eu não vou entrar em questões técnicas, dado que estas dispõem do seu espaço próprio. Mas vou considerar a situação em que cada um de nós fala e continuará a falar a sua variante própria e em que não é de todo viável que cada um escreva “como fala”. Um exemplo simples: qual é a forma correcta de escrever o nome dos numerais 2, 3 ou 24". Ora, não produzimos os mesmos sons quando pronunciamos tais palavras e se escrevermos como pronunciamos, o

“A norma escrita é, não só o modo de comunicação privilegiado da administração pública, mas também é um dos fundamentos da república.”

 resultado será uma grande diversidade de formas. Pode-se imaginar que as crianças aprendam a escrever conforme a variante utilizada? Ou que a declaração de impostos seja escrita de formas diferentes, conforme a variante que o contribuinte utiliza?

Trata-se de uma fraqueza do alfabeto fonológico?

Não propriamente do alfabeto fonológico, mas uma fraqueza, creio, da forma como o processo tem decorrido. Faltam esclarecimentos e pedagogia. É indispensável saber o que se vai fazer e como se vai fazer; com que meios; quais os objectivos e que resultados se podem esperar. Penso que existe um desfasamento entre a retórica e as decisões políticas, o que acaba por confundir as pessoas. E o que me leva a questionar se o problema não tem que ver com a incapacidade das instituições em responder às demandas da sociedade e às exigências de uma sociedade mais harmoniosa.

O ministro da Cultura considerou que a problemática das variantes do crioulo é uma falsa questão. Podia comentar?

A partir do momento em que a população tem dúvidas sobre o que está a ser feito e carece de esclarecimentos, parece-me que que se trata de uma verdadeira questão. Aliás, é o próprio Ministério da Cultura que publica um texto com a seguinte afirmação nu tem nove variantes pa nove ilhas pamodi sima nu ta papia na nôs ilha é si ki nu ta skrebi. Deve-se compreender que é a variante do Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas a utilizada na redacção? A pergunta que se seguirá, provavelmente, será “Então, e a variante da minha ilha?" Temos, aqui, a demonstração de como se alimentam dúvidas e tensões no seio da população.

O Presidente da República numa entrevista a esta Jornal, na semana passada, refere-se, repetidamente, às “nossas duas línguas nacionais´. Que sinais estará a emitir?

Interpreto a afirmação do Presidente da República como uma tomada de posição, tanto mais importante que ela não é condicente com a Constituição da República, a qual determina que “É língua oficial o Português”. Ora, a não-coincidência entre o que defende o Presidente da República e a Constituição da República, na melhor das hipóteses, causa perplexidade. Mas leio também um paradoxo, o qual se tem manifestado de forma cada vez mais visível: a partir do momento em que a Língua Cabo-verdiana é constitucionalizada, em 1999, é quando se ouvem as maiores reivindicações e denúncias de uma suposta “falta de dignificação” e da sua

“A não coincidência entre o que defende o Presidente da República e a Constituição da República, na melhor das hipóteses, causa perplexidade.”

“inferiorização”. Quando ela não era sequer considerada juridicamente, ou seja, nos primeiros 25 anos da República, não se ouvia esse tipo de acusações. Talvez seja o sentido da declaração que o PR fez em Novembro, quando disse que estará “na linha da frente no combate para a língua materna” (cito de memória). Creio que os contornos desse “combate" deveriam ser melhor definidos, pois, é um desafio democrático, o de partilharmos os mesmos princípios e valores fundadores da Nação. Aqui, eu recordaria que, em 1985, por altura da mesa-redonda “Identidade Cultural Cabo-verdiana”, o então ministro da Educação e Cultura, Corsino Tolentino, defendia a utilização do “instrumento (a língua portuguesa) que temos e que é tão nosso como o crioulo”. Por altura do 10° aniversario da independência, e quando ainda se podia esperar uma maior necessidade de afirmação cultural, a questão parecia resolvida, com o mesmo ministro a admitir “a existência de uma identidade cultural sem se fazer uso de uma 

“Acabo por perguntar, afinal, o que é que está em discussão, realmente"

língua exclusiva”. Que, hoje, voltemos a essas questões, levam-me a perguntar em que momento nos desviamos do caminho e se não se impõe uma “recaboverdianização dos espíritos”, como forma de superar essa tensão que se quer instalar. Quanto à ideia de “o crioulo ser a forma de expressarmos melhor os nossos afectos” defendida pelo PR, eu concluiria parafraseando a cantora Diva, pois cada um sabe como há-de dizer I love you, sem que tal determine o grau de cabo-verdianidade das pessoas.



[i] In Expresso das Ilhas de 23.02.22

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