sábado, 17 de junho de 2023

 

O assunto - a Inteligência Artificial, IA - tem estado ultimamente no centro das atenções dos pensadores e dos investigadores, como uma das grandes questões que vieram para ficar para o bem e para o mal da Humanidade.

Daí o interesse deste Artigo do Prof. Poiares Maduro, publicado no Jornal Expresso de 16/06/2023. Trata-se de um texto muito esclarecedor, e escrito numa linguagem escorreita e entendível para o Leitor.

Com a devida vénia ao autor, tomámos a liberdade de aqui o transcrever.

 

O fim ou um novo início?

Por Miguel Poiares Maduro[i]

Uns ameaçam com o fim da Humanidade. Outros celebram a nossa maior oportunidade. A única coisa que parece certa é que a inteligência artificial constitui a maior revolução na história da Humanidade depois da descoberta do fogo.

Se a revolução digital tem tido um impacto semelhante ao da invenção da impressão (promovendo numa escala exponencialmente a maior disseminação de informação e ideias, quer verdadeiras, quer falsas, quer boas, quer más), a inteligência artificial não vai mudar apenas as nossas vidas, vai, muito provavelmente, mudar o que é a Humanidade. Tem tanto de prometedor como de aterrador.

Vai-nos oferecer conhecimento com uma facilidade nunca vista, mas também vai mudar o que é o conhecimento. Vai-nos permitir ser músicos sem saber compor ou pintar sem conseguirmos desenhar, mas exigindo-nos repensar o que é afinal a arte.

Vai-nos substituir em tarefas rotineiras e aborrecidas (de responder a e-mails a fazer os nossos impostos ou contabilidade) e permitir-nos concentrar nos trabalhos mais interessantes e criativos. Seremos muito mais produtivos, mas uma percentagem significativa dos actuais empregos irão desaparecer e não sabemos ainda como lidar com as consequências redistributivas e sociais dessa transição.

Vai desburocratizar e automatizar o Estado, dos licenciamentos à contratação pública, trazendo celeridade e não sendo corruptível, mas podendo consolidar enviesamentos históricos que desfavorecem certos grupos. Tanto nos vai permitir verificar em tempo real as afirmações de um político como enganar-nos através de vídeos falsos que imitam na perfeição a voz e imagem desse político.

Vai facilitar os compromissos e consensos políticos no domínio técnico ao mesmo tempo que poderá exacerbar a componente polarizadora da política ou reforçar os instrumentos de controlo social num regime autoritário.

Vai melhorar e democratizar o acesso à saúde permitindo diagnósticos automáticos ou à distância, mas também pode reforçar a perda de empatia emocional no tratamento dos doentes.

No meio disto tudo, as certezas são poucas. Será profundamente disruptivo. Vamos precisar de novas ferramentas mentais e sociais. Mais do que reter conhecimento, vamos ter de aprender a questionar de forma diferente (nos modelos de linguagem da IA a mais-valia que retiramos deles depende sobretudo da qualidade das perguntas que fizermos).

Não passaremos a ser obsoletos no processo de conhecimento, mas teremos de ser diferentes. As dimensões criativa e social da nossa Humanidade serão ainda mais importantes.

Não vamos conseguir controlar tudo, mas temos de regular o possível. Diminuir os enviesamentos históricos que a inteligência artificial tende a reproduzir (a inteligência artificial “cria-se” de acordo com o histórico da informação e decisões que a alimentam; se esse histórico é dominado por certas discriminações, a IA, por si só, tenderá a perpetuá-las). Exigir transparência, desde os algoritmos à possibilidade de sabermos se estamos a interagir com humanos ou com a IA ou a ver ou ler algo criado por IA. Temos de decidir o que queremos continuar a decidir e o que queremos delegar na IA.

Muito do futuro da IA já aí está. Mas o risco de um sistema de IA que assume consciência humana e nos substitua está longe. O grande risco, no entanto, não é o de uma inteligência artificial que se sente humana. O grande risco é termos uma sociedade controlada por IA sem a emoção que distingue os humanos. Temos mais tempo para lidar com isto do que alguns ameaçam, mas menos do que aquele que parecemos presumir ter. Estamos atrasados.



[i] In Expresso de 16.06.2023

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Este artigo é muito bom e adverte para um problema real. No passado, pode ter sido ficção, mas hoje obriga, de facto, a uma profunda reflexão sobre as implicações que poderão resultar de uma inteligência artificial deixada livre e solta, sem controlo humano. Aliás, muitas especulações se abrem e são permitidas. Por exemplo, questionar se a inteligência artificial pode, efectivamente, adquirir consciência e, por essa via, a condição de alma. O que consideramos alma habita um organismo biológico que tem uma duração temporal limitada, após o que é do domínio da metafísica saber se ela, a alma, sobrevive para lá do corpo ou se só existe na estrita dimensão e limite da existência deste. Ninguém sabe e não há qualquer evidência científica do que quer que seja.
No caso de algoritmos que venham a configurar formas de inteligência equiparáveis às dos humanos, caberá também especular se num qualquer quadro evolutivo do futuro, elas não terão também o seu direito de adquirir a condição de alma. Será num tempo futuro em que a condição humana já será, por seu turno, uma simples alma, uma entidade liberta das servidões inúteis e transitórias do corpo? E, portanto, subsumida naquela dimensão superior que a colocará mais próxima do conhecimento do universo? Bem, então, por analogia, porque não admitir que a inteligência universal subsumida em alma não será uma natural concorrente da alma proveniente da criatura biológica? Qual seria o destino de ambas? Conviver no universo, em cooperação ou disputa, certamente já para lá do nosso planeta ou mesmo do sistema solar, numa situação em que talvez não importará saber qual é a entidade original - se a alma
descendente do humano ou se aquela que resultou da sua
criação?

Adriano Miranda Lima disse...


Este tema da Inteligência Artificial é dos tais que dariam azo a muita discussão e conversa, inesgotáveis mesmo, caso houvesse disposição para isso. Ou aparecessem simplesmente comentadores.
Para não derivar para questões mais complexas em relação às quais não há resposta e só se pode especular (metafísica), detenhamo-nos por agora na simples e seguinte constatação.
Pode-se considerar que vimos beneficiando de algum modo da Inteligência Artificial desde há bastantes anos. Foram as “auto-estradas da informação”, conforme foram então designadas, que a Internet nos veio proporcionar. Há por aí quase uns 30 anos, eu perdia imenso tempo na biblioteca municipal da cidade onde vivo, a pesquisar informação bibliográfica sobre qualquer tema. Actualmente, temos a vida extremamente facilitada, e praticamente não precisamos sair de casa, a não ser que se trate de matéria muito específica e só disponível em arquivos históricos.
Ora, por aquilo que vai sendo anunciado, com a Inteligência Artificial praticamente não precisamos fazer nada se quisermos escrever, por exemplo, uma tese de mestrado ou doutoramento ou um tratado sobre qualquer tema. Um governante não precisará de recorrer a um assessor para lhe escrever um discurso. Introduzindo os algoritmos adequados, consegue obter variantes de discurso em número que quiser. Depois, é só escolher.
Mas agora, entro de novo no terreno da especulação. É dado adquirido que a actividade intelectual é produto da mente – o cérebro em funcionamento – em resultado dos processos bioquímicos que lá ocorrem, conforme nos explica a neurociência. O trabalho intelectual estimula a actividade neuronal, desenvolvendo, expandindo e introduzindo cada vez mais novas conexões. Por isso é que o Adriano Moreira e o Eduardo Lourenço, em Portugal, ou o Edgar Morin, em França, mantiveram uma notável lucidez e impressionante longevidade mental. Pelo contrário, a senilidade tende a apoderar-se de quem desactiva a actividade mental, por vezes até sem atingir-se grande idade.
Então, cabe perguntar o que acontecerá ao nosso cérebro se, com a inteligência Artificial, o passamos a ter desligado ou em baixíssima rotação. O fenómeno poderá não ser perceptível senão ao cabo dos anos – decénios ou séculos – que forem decorrendo. Por exemplo, qual será a real capacidade técnica e científica de alguém que, daqui a 30 anos, se licenciou com a ajuda do robot que é a Inteligência Artificial? Será nessa altura que o humano é verdadeiramente dispensado porque quem, de facto, opera e decide na actividade humana é o algoritmo? E como será, com o longo tempo transcorrido, e do ponto de vista biológico, o cérebro que se desligou da corrente? O Homo sapiens irá passar à história, deixando de merecer esse classificativo de espécie – Sapiens?
No entanto, se a condição Sapiens advém de um cérebro que evoluiu biologicamente ao longo de centenas de milhares de anos (não se sabe exactamente quantos, se não for mesmo de milhões), é possível que a sua possível regressão (por falta de uso adequado) requeira um tempo equivalente, sem contar com outras derivações do processo
evolutivo que estão fora do alcance das nossas previsões e
estimativas.

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