Adriano Miranda Lima, ensaísta, poeta e contista, traz desta vez ao leitor do "Blog," um Conto que tem como temática a Festa dos Tabuleiros de Tomar. Muito interessante e cuja leitura se recomenda.
De repente, a Joana, sabe-se lá porquê, sentiu
um profundo remorso por sempre se ter recusado a participar com o marido,
Alberto, no desfile da Festa dos Tabuleiros, incorporando a representação da
sua freguesia. Esta sensação incómoda começou a assaltá-la quando faltava pouco
mais de um ano para a próxima festa. Mas agora era tarde, porque enviuvara há
três anos. − É como a saúde ou outras coisas boas da vida. Só damos pela sua
importância quando deixamos de as ter. Ah, como teria dado os meus últimos anos
de vida para ir levar um tabuleiro com o meu Alberto! – pensou ela com os seus
botões. No dia seguinte, a regar a horta nas traseiras da sua casinha dos
arredores da cidade, tomou repentinamente uma firme resolução: − Desta vez,
vou, sim senhora, levar um tabuleiro. Custe o que custar. É assunto da minha
inteira conta e não preciso comunicar à freguesia. Par já tenho. E vou
construir o tabuleiro com os produtos da minha própria lavra. E assim decidiu
semear o próprio trigo com que cozeria os 30 pães no forno do seu quintal. As
canas para enfiar os pães iria colhê-las junto ao ribeiro e o vime para a
confecção do cesto, base do tabuleiro, também não era problema nenhum. Ela
própria construiria o cesto com as suas mãos, assim como arranjaria o metal
para moldar a Coroa com a Cruz de Cristo. As flores iria colhê-las, claro, no
seu pequeno canteiro do quintal. Teria apenas de se preparar convenientemente e
passar decididamente à obra. A Joana não teve dificuldades em aprontar os
elementos necessários para o seu tabuleiro. Igualmente, nada lhe custou a sua
confecção, tendo sido a tarefa mais meticulosa, a que emprestou especial
desvelo, o bordado do pano de linho com que ia cobrir o cesto de vime. Como
manda a tradição, o tabuleiro foi montado para que medisse exactamente a sua
altura, 1, 65 metros. Faltava costurar o traje, composto pela blusa, a saia
comprida e os respectivos enfeites, mas a seu tempo disso se encarregou com as
próprias mãos na sua velha máquina Singer. Com tudo preparado, em inícios de
Junho, começou os ensaios nas imediações da sua casa, normalmente ao fim da
tarde, fazendo pequenos percursos com o tabuleiro à cabeça, entre as poucas
casas próximas. Intrigados, os vizinhos observavam de longe os ensaios, porque
ninguém ignorava que a Joana sempre se mostrara avessa a participar no cortejo
com o marido, talvez por não se sentir fisicamente capaz ou por simples
timidez… sabe-se lá? Agora que as pernas já lhe pesam aos seus 60 anos é que se
vai meter num empreendimento deste? E depois quem seria o seu par? Ninguém
sabe, porque se a Joana foi sempre senhora do seu nariz, passou a isolar-se
muito depois da morte do Alberto. Estas eram as interrogações silenciosas dos
vizinhos, que, no entanto, foram acompanhando com crescente curiosidade as
deambulações diárias da Joana por entre as casas. O par que ela tinha em mente
para o desfile é que era uma verdadeira incógnita. Chegou o Dia dos Tabuleiros.
Estava um dia normal de Julho, quente e luminoso, mas com uma leve brisa a
amenizar de quando em quando a temperatura do ar. Os tabuleiros da freguesia
tinham sido na véspera transportados para o espaço habitual da sua concentração
– a Mata dos Sete Montes – de onde sai o cortejo. Mas não há notícia de o
tabuleiro da Joana ter ido integrado no conjunto, porque nem mesmo o presidente
da junta de freguesia teve conhecimento das suas intenções, embora lhe tenham
chegado uns rumores aos ouvidos. Por isso, a seguir à hora do almoço, olhos
curiosos foram às janelas espreitar quando viram passar uma pequena carrinha de
caixa aberta com o tabuleiro da Joana e esta no banco ao lado do condutor, que
logo se desconfiou pudesse ser o par masculino. À hora prevista, o estalejar
dos foguetes e as bandas de música anunciaram a saída do cortejo da Mata dos
Sete Montes. As avenidas e as ruas estavam pejadas das multidões de centenas de
milhares de visitantes que encheram a cidade. O longo cortejo de tabuleiros,
com as representações das freguesias e os seus pendões, foi escoando
gradualmente ao som da música das várias bandas, sob os aplausos vibrantes das
multidões. Passaram os tabuleiros de todas as freguesias, e no fim do
respectivo cortejo, a cerca de dez metros de distância, surpreendentemente,
desfilava uma senhora já de certa idade com um tabuleiro à cabeça, sozinha, sem
par. Os assistentes olhavam-na com especial curiosidade e não faltou quem
sentisse o impulso natural de avançar para a ajudar, ao aperceber-se de que ela
não levava o habitual par. O gesto voluntário iria contra o protocolo do
desfile, mas seria uma ajuda, nem que fosse por alguns metros de percurso. De
resto, era visível que ela já não tinha o vigor físico do comum das raparigas
que desfilavam mais à frente. De súbito, alguém a deve ter identificado, porque
entre os assistentes junto à Ponte Nova se ouviu gritar, em meio a aplausos
sonoros que logo se multiplicaram: − Joana!!! Joana!!! Mas esta, se ouviu, não
teve qualquer reacção ou não se deu por isso. Apesar da sua notória dificuldade
em cumprir a promessa solene que fizera a si mesma, a Joana, com o rosto perlado
de suor e as pernas parecendo por vezes quererem vacilar, lá foi desfilando com
o seu tabuleiro ao longo das ruas e avenidas, enigmática figura aparentemente
autonomizada no gigantesco cortejo. Bem ela jurara a si própria que haveria de
desfilar por conta própria. O cortejo chegou finalmente ao seu termo, com os
conjuntos dos tabuleiros das freguesias recolhendo às suas zonas de reunião
para a posterior desconcentração. Só que a Joana não interrompeu o seu
percurso, porque ela o idealizara intérmino e sagrado, como algo imerso no
espaço e para lá do tempo. Continuou a caminhar, em passo lento, mas resoluto,
rumando em direcção ao sol poente. O tabuleiro já não lhe pesava e as pernas se
lhe tornaram penas de ave. Alguém caminhava silenciosamente ao seu lado e ambos
levitavam sobre uma estrada de luz.
Escrevo de acordo com a antiga ortografia.
Tomar,
25 de Junho de 2023
Adriano
Miranda Lima
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