Eis
uma reflexão que nos interpela sobre o passado, o presente e o futuro (?) da
Democracia, lá onde ela se julga ou, se julgava consolidada.
O
autor, Adriano Miranda Lima, já habituou o leitor deste “Blog” com os seus
textos dotados de um certo rigor, e de uma excelente argumentação sobre os
temas em que se debruça.
Da
democracia e suas atribulações
Olha-se
para a democracia, ou para as democracias, e não se pode deixar de reflectir
sobre a sua longevidade como sistema de governo, com os modelos mais ou menos
puros ou híbridos que ostentou ao longo da História, interrogando-se sobre o
que ela será daqui a algum tempo com as tecnologias de informação e demais
inovações que vieram alterar de uma forma sem precedentes as mundividências dos
povos.
Como é sabido, o berço da democracia remonta à Grécia Antiga, em que as decisões do governo da cidade eram sufragadas pelo voto entre os cidadãos, mas sem que o sistema configurasse um modelo de igualdade integral porque as mulheres, os estrangeiros e os escravos eram excluídos. A Revolução Francesa, com os seus três princípios basilares − Liberdade, Igualdade, Fraternidade – representou a essência de uma idealização, mas o que de concreto ela legitimou foi a ascensão e consolidação da burguesia. Logo depois, a Revolução Industrial e o primado do capital financeiro é que iriam modelar o sistema político que hoje se designa, na prática organizacional e na metodologia jurídico-institucional, por democracia, consagrando-se principalmente no chamado mundo ocidental, mas irradiando para outros quadrantes geográficos.
Mas o curso da democracia nunca foi pacífico,
e o mais provável é que nunca o será, conhecendo avanços e recuos, dúvidas,
desvios, tergiversações, em torno dos possíveis modelos que melhor se entende
representam a vontade popular e realizam os objectivos nacionais. Até há quem a
considere um sistema imperfeito ou pouco adequado; e, sobretudo, não adaptável
a todas as culturas e mentalidades, o que pode ser verdade relativa em algumas
geografias humanas ou por comprovar noutras, mas não uma clara evidência científica.
O facto é que a democracia, ao longo do tempo, procurou conformar-se com a
natureza de cada sociedade, e por isso sofrendo nuances ou ajustamentos na sua
prática procedimental. Isso era inevitável, porque a democracia é um produto da
História, não da natureza. Se fosse este último caso, tratar-se-ia de uma
intuição a priori fornecida pela razão, pelas aptidões inatas do ser. Mas será
mais apropriado dizer que ela resulta de aquisição empírica, como diria David
Hume, com laivos do racionalismo crítico de Kant, donde o mais consensual é
considerar que é na síntese entre o empirismo e o racionalismo, na perspectiva
do filósofo alemão, que se estrutura a sua Ética conducente ao Iluminismo, e
desde logo à democracia.
Não foi por coincidência temporal que a
implosão da URSS e do seu sistema económico e o incremento do chamado
neoliberalismo − adaptação do liberalismo clássico à economia globalizada –
vieram, indirectamente, mas de forma evidente, propiciar situações disruptivas
no modelo de democracia que antes se tinha como relativamente delineado e
estabilizado. Por exemplo, antes consideravam-se as sociais-democracias dos
países nórdicos europeus como das mais perfeitas realizações da democracia e do
estado social. Mas as incidências do neoliberalismo iriam provocar as crises ou
oscilações no sistema financeiro mundial que de um modo ou outro condicionaram
as políticas nacionais, causando, inevitavelmente, injunções negativas nas
próprias democracias, porque fizeram emergir tensões entre objectivos e finalidades
que pela suas naturezas não se conciliam. E é neste quadro que emergiram
autocracias mundiais como a China e a Rússia, pontificaram autocratas como
Trump e Bolsonaro e instalaram-se outros como Erdogan e mais os que apostam
seguir na mesma senda na Hungria, na Itália, na Polónia ou em Israel.
A disseminação das redes sociais, abrindo
espaço ao “trollismo”, ao anonimato e usurpação das regras de convivência no
espaço internético, fez catapultar fenómenos de populismo e de afirmação
identitária que não se coadunam com a democracia tradicional, e que tudo fazem
para minar os seus alicerces e incitar até à sua supressão. Poderia esperar-se
que a comunicação social tivesse a percepção de que lhe cabe contrabalançar os
efeitos das redes sociais perniciosas para a saúde da democracia. Mas,
infelizmente, tal não acontece porque a comunicação social em grande parte dos
casos manda às urtigas a ética e a deontologia por que devia orientar a sua
linha editorial, ao entrar de forma subtil ou encapotada na disputa
político-partidária, com inclinação preferencial para as facções mais
favoráveis aos interesses do capital privado que alimenta o seu negócio. Ora, a
democracia não sobrevive sem uma imprensa livre e saudável, limpa e honrada. E
o que irá acontecer com a expansão incontrolada das redes sociais e o
incremento da inteligência artificial?
Assim, a preocupação é restaurar uma relação
de saudável compromisso entre as democracias e os interesses da economia de
mercado, que é onde está a raiz do problema. A resposta imediata é que só a
melhoria das políticas sociais e económicas será capaz de desmobilizar os
populismos de que se alimentam os extremos do espectro político. Contudo, se a
resposta é óbvia, mais difícil é passar da intenção à prática. Porquê? Porque
as soluções dos problemas não se encontram ao virar da esquina, por um simples
estado de alma ou por momentânea inspiração de um presumido iluminado, mormente
hoje com a influência mais preponderante do fenómeno da globalização e do
sistema financeiro internacional sobre as políticas nacionais.
Além
disso, a conflitualidade política instala-se por vezes mais como um espectáculo
circense do que por necessidade. Critica-se sistemática e gratuitamente quem
está na governação, mas poucas vezes se tem uma alternativa válida. Nunca ou
muito raramente uma medida desperta concordância ou aprovação. A ideia que fica
é que só quem está fora do círculo do poder se julga detentor de atributos de
lucidez e sapiência − que supostamente abandonaram os que ousaram sentar-se na
cadeira do poder. Isto passa-se naturalmente com opositores políticos, mas
sobretudo, e cada vez mais, com comentadores ou analistas. Claro que tudo isso
seria esperançoso sintoma de energia cívica e de vitalidade democrática, caso
se apresentassem propostas de solução viáveis, fundamentadas e devidamente
enquadradas com a realidade, e caso os seus autores fossem cidadãos com provas
sobejas dadas na política ou com experiência de vida vivida, e não apenas
actores de uma circunstancial cena mediática. Actores que, julgando-se
provavelmente possuídos de um qualquer estado de graça, devem sentir-se felizes
por afagar o seu ego nem que seja só pelo tempo do protagonismo frente às
câmaras ou nas páginas dos jornais.
Efectivamente, não são poucos os casos em que
um habitual comentador assume um cargo de governação em área de que foi
acérrimo crítico e acaba por ficar muito aquém das expectativas que alimentou
com a escorreiteza do seu verbo ou a arte da sua escrita. Muitas vezes já me
perguntei, por exemplo, a razão por que um muito conhecido jornalista da área
da economia num dos nossos canais de televisão nunca foi chamado para a pasta
das finanças ou da economia, ele que é tão seguro, tão convicto e tão assertivo
sobre as soluções para a governação do país nessas áreas. Mas quem diz dele
dirá de tantos outros que diariamente nos entram em casa pelos ecrãs dos
televisores. Porque é que não são convidados para a governação? O país está a
desprezar a nata do seu intelecto e sabedoria?
Enfim, não se prevê que a democracia venha a ter vida tranquila nos tempos próximos. É em Portugal como na Europa e noutros países, suscitando especial preocupação quando se olha para o poderoso EUA e os sinais de instabilidade que emite devido ao populismo quase demencial de um ex-presidente. É puramente ideológica e destituída de credibilidade a tese amplamente difundida de que o desenvolvimento económico e social iria ampliar e fortalecer as classes médias e que estas alavancariam o desenvolvimento do regime democrático. Porque é a história que demonstra que as classes médias não são garantia absoluta para a saúde da democracia e que, pelo contrário, costumam impulsionar mudanças políticas diferentes e por vezes surpreendentes. Temos o recente exemplo da Itália.
Por tudo isto, alguns autores vêm falando numa “pós-democracia”, que
entendem já ensaia o seu curso desde há algum tempo e pode vir a consolidar-se
como um novo modelo do regime democrático. Será o que se entende por uma
democracia possível ou aferida às contingências do tempo em que vivemos,
rompendo com as práticas anteriores? Seja o que for, há razões para apreensão,
porque se ao longo dos cerca de 80 anos de democracia na Europa a guerra foi
esconjurada, há autocracias que estão a levantar a cabeça e a ditar sentenças,
com tambores de guerra a soar em território europeu como não se via desde a
Segunda Guerra Mundial.
Escrevo
de acordo com a anterior ortografia.
Adriano
Miranda Lima
2 comentários:
Agradeço à Amiga Ondina, pela honra que me concede de publicar este meu artigo no seu blogue.
Obrigada pelo artigo sobre democracia, de que gostei de ler. Gostava de acrescentar o meu comentário. De origem suíça, é neste país que conheci e participei da democracia directa. A Suíça que desde o Pacto Federal de 1291, o mais antigo texto constitucional, se rege por um sistema político onde o povo, os cidadãos, tomam as decisões, a nível nacional, federal, cantonal e comunal ou municipal. Marco da Identidade Suíça, da estabilidade institucional e da aceitação das diferenças. Neste sentido, gostava de ver mais vezes referenciado o exemplo suíço quando se fala democracia.
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