sábado, 24 de junho de 2023

 

Eis uma reflexão que nos interpela sobre o passado, o presente e o futuro (?) da Democracia, lá onde ela se julga ou, se julgava consolidada.

O autor, Adriano Miranda Lima, já habituou o leitor deste “Blog” com os seus textos dotados de um certo rigor, e de uma excelente argumentação sobre os temas em que se debruça.

 

Da democracia e suas atribulações

 

Olha-se para a democracia, ou para as democracias, e não se pode deixar de reflectir sobre a sua longevidade como sistema de governo, com os modelos mais ou menos puros ou híbridos que ostentou ao longo da História, interrogando-se sobre o que ela será daqui a algum tempo com as tecnologias de informação e demais inovações que vieram alterar de uma forma sem precedentes as mundividências dos povos.

 Como é sabido, o berço da democracia remonta à Grécia Antiga, em que as decisões do governo da cidade eram sufragadas pelo voto entre os cidadãos, mas sem que o sistema configurasse um modelo de igualdade integral porque as mulheres, os estrangeiros e os escravos eram excluídos. A Revolução Francesa, com os seus três princípios basilares − Liberdade, Igualdade, Fraternidade – representou a essência de uma idealização, mas o que de concreto ela legitimou foi a ascensão e consolidação da burguesia. Logo depois, a Revolução Industrial e o primado do capital financeiro é que iriam modelar o sistema político que hoje se designa, na prática organizacional e na metodologia jurídico-institucional, por democracia, consagrando-se principalmente no chamado mundo ocidental, mas irradiando para outros quadrantes geográficos.

 Mas o curso da democracia nunca foi pacífico, e o mais provável é que nunca o será, conhecendo avanços e recuos, dúvidas, desvios, tergiversações, em torno dos possíveis modelos que melhor se entende representam a vontade popular e realizam os objectivos nacionais. Até há quem a considere um sistema imperfeito ou pouco adequado; e, sobretudo, não adaptável a todas as culturas e mentalidades, o que pode ser verdade relativa em algumas geografias humanas ou por comprovar noutras, mas não uma clara evidência científica. O facto é que a democracia, ao longo do tempo, procurou conformar-se com a natureza de cada sociedade, e por isso sofrendo nuances ou ajustamentos na sua prática procedimental. Isso era inevitável, porque a democracia é um produto da História, não da natureza. Se fosse este último caso, tratar-se-ia de uma intuição a priori fornecida pela razão, pelas aptidões inatas do ser. Mas será mais apropriado dizer que ela resulta de aquisição empírica, como diria David Hume, com laivos do racionalismo crítico de Kant, donde o mais consensual é considerar que é na síntese entre o empirismo e o racionalismo, na perspectiva do filósofo alemão, que se estrutura a sua Ética conducente ao Iluminismo, e desde logo à democracia.

 Não foi por coincidência temporal que a implosão da URSS e do seu sistema económico e o incremento do chamado neoliberalismo − adaptação do liberalismo clássico à economia globalizada – vieram, indirectamente, mas de forma evidente, propiciar situações disruptivas no modelo de democracia que antes se tinha como relativamente delineado e estabilizado. Por exemplo, antes consideravam-se as sociais-democracias dos países nórdicos europeus como das mais perfeitas realizações da democracia e do estado social. Mas as incidências do neoliberalismo iriam provocar as crises ou oscilações no sistema financeiro mundial que de um modo ou outro condicionaram as políticas nacionais, causando, inevitavelmente, injunções negativas nas próprias democracias, porque fizeram emergir tensões entre objectivos e finalidades que pela suas naturezas não se conciliam. E é neste quadro que emergiram autocracias mundiais como a China e a Rússia, pontificaram autocratas como Trump e Bolsonaro e instalaram-se outros como Erdogan e mais os que apostam seguir na mesma senda na Hungria, na Itália, na Polónia ou em Israel.

 A disseminação das redes sociais, abrindo espaço ao “trollismo”, ao anonimato e usurpação das regras de convivência no espaço internético, fez catapultar fenómenos de populismo e de afirmação identitária que não se coadunam com a democracia tradicional, e que tudo fazem para minar os seus alicerces e incitar até à sua supressão. Poderia esperar-se que a comunicação social tivesse a percepção de que lhe cabe contrabalançar os efeitos das redes sociais perniciosas para a saúde da democracia. Mas, infelizmente, tal não acontece porque a comunicação social em grande parte dos casos manda às urtigas a ética e a deontologia por que devia orientar a sua linha editorial, ao entrar de forma subtil ou encapotada na disputa político-partidária, com inclinação preferencial para as facções mais favoráveis aos interesses do capital privado que alimenta o seu negócio. Ora, a democracia não sobrevive sem uma imprensa livre e saudável, limpa e honrada. E o que irá acontecer com a expansão incontrolada das redes sociais e o incremento da inteligência artificial?

 Assim, a preocupação é restaurar uma relação de saudável compromisso entre as democracias e os interesses da economia de mercado, que é onde está a raiz do problema. A resposta imediata é que só a melhoria das políticas sociais e económicas será capaz de desmobilizar os populismos de que se alimentam os extremos do espectro político. Contudo, se a resposta é óbvia, mais difícil é passar da intenção à prática. Porquê? Porque as soluções dos problemas não se encontram ao virar da esquina, por um simples estado de alma ou por momentânea inspiração de um presumido iluminado, mormente hoje com a influência mais preponderante do fenómeno da globalização e do sistema financeiro internacional sobre as políticas nacionais.

Além disso, a conflitualidade política instala-se por vezes mais como um espectáculo circense do que por necessidade. Critica-se sistemática e gratuitamente quem está na governação, mas poucas vezes se tem uma alternativa válida. Nunca ou muito raramente uma medida desperta concordância ou aprovação. A ideia que fica é que só quem está fora do círculo do poder se julga detentor de atributos de lucidez e sapiência − que supostamente abandonaram os que ousaram sentar-se na cadeira do poder. Isto passa-se naturalmente com opositores políticos, mas sobretudo, e cada vez mais, com comentadores ou analistas. Claro que tudo isso seria esperançoso sintoma de energia cívica e de vitalidade democrática, caso se apresentassem propostas de solução viáveis, fundamentadas e devidamente enquadradas com a realidade, e caso os seus autores fossem cidadãos com provas sobejas dadas na política ou com experiência de vida vivida, e não apenas actores de uma circunstancial cena mediática. Actores que, julgando-se provavelmente possuídos de um qualquer estado de graça, devem sentir-se felizes por afagar o seu ego nem que seja só pelo tempo do protagonismo frente às câmaras ou nas páginas dos jornais.

 Efectivamente, não são poucos os casos em que um habitual comentador assume um cargo de governação em área de que foi acérrimo crítico e acaba por ficar muito aquém das expectativas que alimentou com a escorreiteza do seu verbo ou a arte da sua escrita. Muitas vezes já me perguntei, por exemplo, a razão por que um muito conhecido jornalista da área da economia num dos nossos canais de televisão nunca foi chamado para a pasta das finanças ou da economia, ele que é tão seguro, tão convicto e tão assertivo sobre as soluções para a governação do país nessas áreas. Mas quem diz dele dirá de tantos outros que diariamente nos entram em casa pelos ecrãs dos televisores. Porque é que não são convidados para a governação? O país está a desprezar a nata do seu intelecto e sabedoria?

Enfim, não se prevê que a democracia venha a ter vida tranquila nos tempos próximos. É em Portugal como na Europa e noutros países, suscitando especial preocupação quando se olha para o poderoso EUA e os sinais de instabilidade que emite devido ao populismo quase demencial de um ex-presidente. É puramente ideológica e destituída de credibilidade a tese amplamente difundida de que o desenvolvimento económico e social iria ampliar e fortalecer as classes médias e que estas alavancariam o desenvolvimento do regime democrático. Porque é a história que demonstra que as classes médias não são garantia absoluta para a saúde da democracia e que, pelo contrário, costumam impulsionar mudanças políticas diferentes e por vezes surpreendentes. Temos o recente exemplo da Itália.

 Por tudo isto, alguns autores vêm falando numa “pós-democracia”, que entendem já ensaia o seu curso desde há algum tempo e pode vir a consolidar-se como um novo modelo do regime democrático. Será o que se entende por uma democracia possível ou aferida às contingências do tempo em que vivemos, rompendo com as práticas anteriores? Seja o que for, há razões para apreensão, porque se ao longo dos cerca de 80 anos de democracia na Europa a guerra foi esconjurada, há autocracias que estão a levantar a cabeça e a ditar sentenças, com tambores de guerra a soar em território europeu como não se via desde a Segunda Guerra Mundial.

Escrevo de acordo com a anterior ortografia.

 

Adriano Miranda Lima

 

 

2 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Agradeço à Amiga Ondina, pela honra que me concede de publicar este meu artigo no seu blogue.

MW disse...

Obrigada pelo artigo sobre democracia, de que gostei de ler. Gostava de acrescentar o meu comentário. De origem suíça, é neste país que conheci e participei da democracia directa. A Suíça que desde o Pacto Federal de 1291, o mais antigo texto constitucional, se rege por um sistema político onde o povo, os cidadãos, tomam as decisões, a nível nacional, federal, cantonal e comunal ou municipal. Marco da Identidade Suíça, da estabilidade institucional e da aceitação das diferenças. Neste sentido, gostava de ver mais vezes referenciado o exemplo suíço quando se fala democracia.

Enviar um comentário