por Adriano Miranda Lima[i]
O
meu sentimento de homem já bem amadurecido pelo tempo e pela vida diz-me que o nosso
regime democrático corre o risco de ser desfeiteado, se não mesmo seriamente
ameaçado, por gente que lhe é visceralmente estranha. Os principais
protagonistas da actual direita radical e populista ou não tinham ainda nascido
ou apenas gatinhavam quando, em Abril de 1974, os portugueses recuperaram todas
as liberdades cívicas e construíram os fundamentos do regime democrático em que
vivemos. Em que a maioria da nação se revê, comprovando-o em cada escrutínio
eleitoral. Por isso, esses entusiastas do iliberalismo não têm uma perfeita
noção do que foi viver sob a batuta do regime autoritário e conservador que o
comum dos historiadores considera de inspiração fascista, por antiliberal e
antiparlamentarista. De facto, as gerações mais jovens não tiveram oportunidade
de o sentir na pele e na alma, em ordem a poderem alicerçar uma formação
ideológica de forma consciente e parametrizada em função de uma realidade
vivida e sentida. Contudo, com maior ou menor retoque cosmético dissimulador,
esse é o seu modelo político de eleição para a vida dos portugueses.
O
que preocupa, ou devia preocupar, é que essa gente recruta os seus adeptos e
correligionários entre os sectores mais jovens da sociedade, explorando as suas
insatisfações ou frustrações. Basta olhar para as redes sociais e os montões de
dejectos mentais que nelas são sistematicamente despejados, com os seus autores
a beneficiarem da liberdade de expressão que lhes confere o próprio regime
político da sua hostilidade. A sua estratégia consiste em explorar insucessos
pontuais da democracia e a sua impossibilidade de satisfazer no imediato todos
os anseios das gerações mais novas e das populações. Como se o regime da sua
aparente afeição pudesse alguma vez constituir alternativa séria e credível
para a resolução de todos os problemas do país. Bastar-lhes-ia olhar
simplesmente para o Portugal rural, subdesenvolvido, com as taxas de
analfabetismo das mais altas da Europa, que a revolução de Abril quis deixar
definitivamente para trás.
A
maioria absoluta sufragada nas urnas e que permitiu a constituição do actual
governo foi sem dúvida um autêntico murro no estômago de uma oposição que
almejava o poder que lhe vinha escapando. Mas se o murro pode simplesmente ter
tido um efeito terapêutico nos sectores democráticos da oposição, o mesmo não
se poderá dizer da tal direita radical e populista, cuja gritaria histriónica e
atitudes civicamente deploráveis em sede parlamentar ou fora dela, não
disfarçam a sua animosidade contra o regime democrático, em geral, e o Partido
Socialista, em particular, o seu principal fundador.
Essa
maioria absoluta, em vez de saudada por prenunciar uma desejada estabilidade
política em tempos pouco promissores no mundo em geral, foi logo alvo de
insinuações gratuitas e de uma sanha persecutória tão despropositadas que um
dia tudo merecerá ser estudado no âmbito da politologia. O problema é que foi o
próprio Presidente da República a dar o mote, a ponto de não tardar a ameaçar
com a “bomba atómica” se fosse caso disso, isto é, dissolver a Assembleia da
República, devido a pequenos incidentes de percurso, sem real relevância
política, na sua maioria insidiosamente engendrados por adversários do poder
declarados ou dissimulados. Se o Presidente da República o disse sem rodeios,
tem o cidadão comum de supor ou desconfiar que o urânio, matéria-prima da
bomba, talvez já estivesse em processo de enriquecimento. Onde e com quem é o
que importará perguntar, se bem que o cidadão mais desatento não terá
dificuldade em ajuizar e tirar as suas conclusões.
Com
efeito, a bomba estourou, vinda dos lados do Ministério Público. A questão é
saber com que motivação foi enriquecido o urânio e com que orientações
explícitas ou sibilinas. E também se deve perguntar se o concebeu com a
perfeita noção do grau de destruição e da letalidade que ia desencadear. A onda
de choque estamos a senti-la e o país vai seguramente sofrer os seus efeitos
danosos. Os sinais macro da governação eram e são claros e irrefutáveis na sua
positividade, desde o acerto das contas públicas e a redução da dívida, à
criação de condições objectivas para o investimento produtivo, dois dos quais
de indiscutível alcance estratégico.
Pelo
que foi tornado público e cujos desenvolvimentos o país aguarda, foram tidos
como procedimentos susceptíveis de ilicitude criminal conversas de toda uma
entourage relacionada com os dois referidos investimentos estratégicos. Pelo
teor das conversas telefónicas que o Ministério Público foi cirurgicamente
segmentando para os jornais, para tentar lavar a cara, em manifesta e grave
transgressão do segredo de justiça, fica uma séria dúvida sobre o que é
ilicitude criminal e o que é diligência absolutamente normal para remover
obstáculos que rodeiem a aplicação de grandes investimentos económicos. Só que
bastou ser mencionado o nome do primeiro-ministro, ao que parece por confusão
com o do ministro da economia, para que aquele se julgasse ferido na sua honra
pessoal e na sua dignidade política e pedisse demissão do cargo.
Perante
tudo o que vem acontecendo, faz todo o sentido questionar se não se está a
“judicializar” a acção política, o que isso tem de anómalo e de ameaçador para
a saúde do regime democrático. Agora, não é descabido o receio de se ter aberto
caminho para uma grave e indesejável instabilidade política,
despropositadamente espoletada neste tempo de incerteza que paira na Europa e
no mundo, tributária de condições potencialmente ruinosas para a via positiva
que o país vinha singrando.
Embora
talvez não o admita, a bomba deflagrou estrepitosamente e há cacos que
inevitavelmente jazem nas mãos do Senhor Presidente da República e o devem
incomodar e preocupar. Não se questiona a isenção do mais alto magistrado da
nação, tão-só o excesso do seu verbalismo em ocasiões que talvez recomendassem
maior reserva, recato e contenção. Quanto ao papel do Ministério Público, neste
como em outros processos, há evidências claríssimas e gritantes de que urge uma
mudança radical no seu funcionamento e nos seus procedimentos. Para que a
democracia não se ressinta de zonas sombra que possam existir na definição das
competências e atribuições de cada órgão de soberania.
Rui
Rio sabia o que dizia quando propôs a António Costa uma reorganização do
sistema judiciário, mas não foi ouvido.
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