A Bomba Atómica

sábado, 18 de novembro de 2023

 por Adriano Miranda Lima[i]

O meu sentimento de homem já bem amadurecido pelo tempo e pela vida diz-me que o nosso regime democrático corre o risco de ser desfeiteado, se não mesmo seriamente ameaçado, por gente que lhe é visceralmente estranha. Os principais protagonistas da actual direita radical e populista ou não tinham ainda nascido ou apenas gatinhavam quando, em Abril de 1974, os portugueses recuperaram todas as liberdades cívicas e construíram os fundamentos do regime democrático em que vivemos. Em que a maioria da nação se revê, comprovando-o em cada escrutínio eleitoral. Por isso, esses entusiastas do iliberalismo não têm uma perfeita noção do que foi viver sob a batuta do regime autoritário e conservador que o comum dos historiadores considera de inspiração fascista, por antiliberal e antiparlamentarista. De facto, as gerações mais jovens não tiveram oportunidade de o sentir na pele e na alma, em ordem a poderem alicerçar uma formação ideológica de forma consciente e parametrizada em função de uma realidade vivida e sentida. Contudo, com maior ou menor retoque cosmético dissimulador, esse é o seu modelo político de eleição para a vida dos portugueses.

O que preocupa, ou devia preocupar, é que essa gente recruta os seus adeptos e correligionários entre os sectores mais jovens da sociedade, explorando as suas insatisfações ou frustrações. Basta olhar para as redes sociais e os montões de dejectos mentais que nelas são sistematicamente despejados, com os seus autores a beneficiarem da liberdade de expressão que lhes confere o próprio regime político da sua hostilidade. A sua estratégia consiste em explorar insucessos pontuais da democracia e a sua impossibilidade de satisfazer no imediato todos os anseios das gerações mais novas e das populações. Como se o regime da sua aparente afeição pudesse alguma vez constituir alternativa séria e credível para a resolução de todos os problemas do país. Bastar-lhes-ia olhar simplesmente para o Portugal rural, subdesenvolvido, com as taxas de analfabetismo das mais altas da Europa, que a revolução de Abril quis deixar definitivamente para trás.

A maioria absoluta sufragada nas urnas e que permitiu a constituição do actual governo foi sem dúvida um autêntico murro no estômago de uma oposição que almejava o poder que lhe vinha escapando. Mas se o murro pode simplesmente ter tido um efeito terapêutico nos sectores democráticos da oposição, o mesmo não se poderá dizer da tal direita radical e populista, cuja gritaria histriónica e atitudes civicamente deploráveis em sede parlamentar ou fora dela, não disfarçam a sua animosidade contra o regime democrático, em geral, e o Partido Socialista, em particular, o seu principal fundador.

Essa maioria absoluta, em vez de saudada por prenunciar uma desejada estabilidade política em tempos pouco promissores no mundo em geral, foi logo alvo de insinuações gratuitas e de uma sanha persecutória tão despropositadas que um dia tudo merecerá ser estudado no âmbito da politologia. O problema é que foi o próprio Presidente da República a dar o mote, a ponto de não tardar a ameaçar com a “bomba atómica” se fosse caso disso, isto é, dissolver a Assembleia da República, devido a pequenos incidentes de percurso, sem real relevância política, na sua maioria insidiosamente engendrados por adversários do poder declarados ou dissimulados. Se o Presidente da República o disse sem rodeios, tem o cidadão comum de supor ou desconfiar que o urânio, matéria-prima da bomba, talvez já estivesse em processo de enriquecimento. Onde e com quem é o que importará perguntar, se bem que o cidadão mais desatento não terá dificuldade em ajuizar e tirar as suas conclusões.

Com efeito, a bomba estourou, vinda dos lados do Ministério Público. A questão é saber com que motivação foi enriquecido o urânio e com que orientações explícitas ou sibilinas. E também se deve perguntar se o concebeu com a perfeita noção do grau de destruição e da letalidade que ia desencadear. A onda de choque estamos a senti-la e o país vai seguramente sofrer os seus efeitos danosos. Os sinais macro da governação eram e são claros e irrefutáveis na sua positividade, desde o acerto das contas públicas e a redução da dívida, à criação de condições objectivas para o investimento produtivo, dois dos quais de indiscutível alcance estratégico.

Pelo que foi tornado público e cujos desenvolvimentos o país aguarda, foram tidos como procedimentos susceptíveis de ilicitude criminal conversas de toda uma entourage relacionada com os dois referidos investimentos estratégicos. Pelo teor das conversas telefónicas que o Ministério Público foi cirurgicamente segmentando para os jornais, para tentar lavar a cara, em manifesta e grave transgressão do segredo de justiça, fica uma séria dúvida sobre o que é ilicitude criminal e o que é diligência absolutamente normal para remover obstáculos que rodeiem a aplicação de grandes investimentos económicos. Só que bastou ser mencionado o nome do primeiro-ministro, ao que parece por confusão com o do ministro da economia, para que aquele se julgasse ferido na sua honra pessoal e na sua dignidade política e pedisse demissão do cargo.

Perante tudo o que vem acontecendo, faz todo o sentido questionar se não se está a “judicializar” a acção política, o que isso tem de anómalo e de ameaçador para a saúde do regime democrático. Agora, não é descabido o receio de se ter aberto caminho para uma grave e indesejável instabilidade política, despropositadamente espoletada neste tempo de incerteza que paira na Europa e no mundo, tributária de condições potencialmente ruinosas para a via positiva que o país vinha singrando.

Embora talvez não o admita, a bomba deflagrou estrepitosamente e há cacos que inevitavelmente jazem nas mãos do Senhor Presidente da República e o devem incomodar e preocupar. Não se questiona a isenção do mais alto magistrado da nação, tão-só o excesso do seu verbalismo em ocasiões que talvez recomendassem maior reserva, recato e contenção. Quanto ao papel do Ministério Público, neste como em outros processos, há evidências claríssimas e gritantes de que urge uma mudança radical no seu funcionamento e nos seus procedimentos. Para que a democracia não se ressinta de zonas sombra que possam existir na definição das competências e atribuições de cada órgão de soberania.

Rui Rio sabia o que dizia quando propôs a António Costa uma reorganização do sistema judiciário, mas não foi ouvido.



[i] Escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

0 comentários:

Enviar um comentário