As Línguas: ser colonizado ou mudar?[i]

terça-feira, 21 de novembro de 2023

 

Por se tratar de um texto interessante - eventualmente polémico - numa perspectiva das vicissitudes por que vai passando a nossa Língua, tomámos a liberdade, com a devida vénia ao seu autor, de o publicar aqui, recomendando a sua leitura ao visitante do «Coral Vermelho».

Por: Raúl Proença Mesquita[ii]

Já há tempos tinha pensado em trazer este assunto à baila. É para mim um assunto da maior importância: a língua. Esta exprime um tipo de pensamento ou vice-versa, o pensamento exprime-se por uma sintaxe e por uma morfologia particulares.

Ora vejamos. “I am going to go home”, à letra, “eu vou indo para ir para casa”, ou seja, “eu vou andando para casa”. O “eu vou indo para ir para casa”, mentalmente, não é o mesmo do que eu vou para casa. Significam o mesmo, mas não são o mesmo. O que quero dizer com isto? Quero simplesmente dizer que o processo mental de um falante da língua inglesa é diferente do da língua dos portugueses e dos PALOP.

No Brasil a coisa é outra. O português deste país está oficialmente colonizado pelo inglês dos EUA. Mas o encadeamento não acaba aqui.  Com a invasão de telenovelas brasileiras, mas especialmente com a massa imigratória de brasileiros para o nosso país, sem fazer qualquer comentário sociopolítico, até porque sou por uma sociedade cosmopolita, a língua portuguesa degradou-se ao ponto de a mente se deteriorar no raciocínio, tal como a britânica pela colonização linguística americana, por exemplo, nas exclamações tais como “cool!”, “awesome!”, etc.

Claro que vou dar mais exemplos (mas não “darei exemplos”). “Sente aqui, relaxe.” O que é isto? Primeiro: Sente aqui uma dor? Não sinto. Está bem. Em português diz-se sente-se aqui. Segundo: Relaxe não é português, é inglês, relax. Em português usa-se o verbo descontrair – descontraia-se. Como veem em inglês não há praticamente verbos reflexos, excepto quando se usa o yourself mas em português há muitos.

Dir-me-ão que as línguas mudam. Sim, é verdade. A língua portuguesa, por exemplo, mudou muito no século XVI, a francesa, no princípio do século XVIII, por exemplo, na pronúncia de Roi (rei) Rué, para Ruá, mas a estrutura mental, não. Tirar a reflexão a um verbo é como retirar os espelhos a uma sociedade inteira. Isso não mudará a mentalidade de um povo?

As mudanças que referimos em Portugal foram de ordem gráfica e de pronúncia, relativas a um lógico afastamento da tradição galega. De bēstia para besta, por exemplo. Mas actualmente são muito graves.

Aqueles que advogam acordos ortográficos que, curiosamente, não o são só, são muito mais, tornam-se em acordos ideológicos em que se serve de bandeja a língua de vários países (Portugal e PALOP) a um que se estipulou ser o mais importante, que será, do ponto de vista económico.

A Europa abdicou de lutar pela sua cultura, ou seja, pela sua maneira de pensar, pelas suas estruturas mentais, entregando-se ao facilitismo de um pensamento primário que serve para o dia-a-dia, mas nunca para um pensamento crítico que, aliás, infelizmente, não convém ao status quo.

Tudo isto acompanhado pelas aspas em mímica com os dedos indicador e médio de ambas as mãos em jeito de teatro de Robertos, onde pode ter graça, mais o constante OK americano que invadiu a cultura britânica e agora o mundo (em Portugal, o bonito Ókay) e o wau, aqui, uau, completam um cocktail de asneirada apropriado para os tempos actuais. Mas não ficamos por aqui.

Que tal o “avariou”? Mas avariou o quê? É um verbo transitivo, pede complemento directo. Desculpem, mas tem de haver gramática, o tal pensamento de que falei. Exemplo: Ele avariou todas as trotinetes do Alfeite. Ou então: O meu carro avariou-se. Já sabemos de onde vem o erro. Mas os portugueses mesmo os dos meios universitários dão-no. Grave, hein! E não posso deixar de assinalar, antes do fecho, dois advérbios que andam na boca das gentes: basicamente e obviamente. Bem, existem no léxico português mas são palavras anglo saxónicas. Por que não, no primeiro caso, no fundo… e no segundo, é claro ou é evidente…?

Falar bem, ou seja, com simplicidade, sem arrebiques, será actualmente uma utopia tal como Shangri-La? Depois do exposto fica-se perplexo.

“To be, or not to be”, Hamlet, Shakespeare. A pergunta metafísica par excellence no contexto da decadência da linguagem leva a quem se preocupa a perguntar: decadência contínua inevitável ou esperança numa travagem? Acredito na segunda hipótese.  Será difícil. À primeira vista parece impossível, lembremos a República de Platão, mas então por que escrevo?

In: "Jornal Económico" de 14 de Novembro de 2023.



[i] Escreve de acordo com a antiga ortografia

[ii] Professor reformado, escritor. 

 


1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Li com muito interesse este artigo, que devia dar que pensar aos especialistas na matéria. É quase obscena a forma como se tem vindo a poluir o português com vocábulos ou expressões do inglês (americano), prática que é mais comum entre aqueles que deviam ter a responsabilidade de preservar e defender a sua identidade e pureza: pessoas com formação académica superior. É lamentável que o façam convencidos de que estão a dar um toque de classe à expressão do seu pensamento.
E como se não bastasse, o novo acordo ortográfico veio agravar tudo.

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