Por Adriano Miranda
Lima[i]
A
recente queda do governo de maioria absoluta, abrindo caminho para uma
inesperada e indesejável instabilidade política, obriga a que se levantem
algumas interrogações.
É
certo que se assiste nos tempos que vivemos a um enfraquecimento das
democracias um pouco por todo o lado, em consequência de uma aparente erosão
dos sistemas de controlo tradicionais − eleições livres, parlamentos e
tribunais – com influência directa na eficácia das instituições. Mas não é
disto que agora se trata. A formulação em título pretende ir ao fundo de uma
questão já antiga e que obriga a revisitar algumas considerações sobre as
nossas predisposições naturais ou tendências ancestrais para viver harmoniosamente
em agregação colectiva e no cumprimento ordeiro das regras comuns. A nossa
democracia está a caminho de comemorar o seu cinquentenário, tempo que alguns
já considerarão suficiente para a maturação do sistema político implementado.
Mas não haja ilusões. Contrariamente à ideia mais comum, não é o sistema
político instituído que por si só estimula, promove e gera uma cultura
política. A História demonstra que é o contrário. Quanto maior é a cultura
política de um povo, mais evoluído é o seu sistema político e aperfeiçoadas as
suas práticas. Isto significa que o período temporal de cinquenta anos pode não
ser suficiente para a formatação e consolidação de uma cultura política, dado
que esta requer o contributo de sucessivas gerações e a acumulação contínua de
experiências diferentes, umas bem-sucedidas e outras não, para ela se tornar
uma realidade efectiva.
Mas
recusamos admitir a fatalidade interrogada no título deste artigo, porque o
orgulho nacional impede-nos de aceitar que sejamos diferentes dos outros
europeus por qualquer condicionalismo genético ou por contingências coercitivas
da história dos últimos séculos. No entanto, Oliveira Salazar pensava o
contrário, e com assumida convicção, a ponto de, perante o fracasso da I
República, se ter arvorado em salvador da pátria inaugurando e dando expressão
política e corporativa ao que iria ser o mais longo regime autoritário na
Europa Ocidental durante o século passado. Talvez radicasse no seu espírito
aquela conhecida afirmação de que “nos confins da Ibéria, existe um povo que
nem se governa nem se deixa governar”, que é comum ser atribuída a Júlio César,
mas que para alguns historiadores foi o general e político romano Sérgio Galba.
Por sua vez, a Manuela Ferreira Leite afirmou, há alguns anos, numa entrevista
ou num debate, que para introduzir reformas importantes no país teria de
suspender o Parlamento.
Embora
a Revolução dos Cravos nos tenha devolvido este regime democrático com que a
maioria da nação se identifica, não se iluda, porém, porque há sectores da
sociedade que não o reconhecem e lhe são adversos. São uma realidade, com maior
ou menor diluição na sociedade, com uma notoriedade mais ou menos explícita ou
encapotada nas redes sociais e em certo jornalismo, e têm assento parlamentar
dois partidos da oposição mais à direita que o personificam com pompa e
circunstância. Para eles, o objectivo é a reversão das mais importantes
conquistas que a nação logrou, ou atacando a extensão e a natureza das
liberdades cívicas, ou afrontando o papel do Estado na sustentação do sistema
social que é a mais gratificante, honrosa e emblemática conquista de Abril.
O
desperdício da estabilidade política que o governo de maioria absoluta do
Partido Socialista garantia foi como deitar fora a água do banho e a criança.
Este acontecimento obriga a que, efectivamente, se levantem interrogações
incómodas que envolvem não apenas a qualidade do sistema político-partidário e
os seus protagonistas, mas sobretudo a natureza do regime e as instituições que
o estruturam e garantem o seu funcionamento. Se o governo de maioria absoluta
fosse do PSD, teria acontecido o mesmo? A pergunta não é impertinente e se deve
à percepção, não sei se errada ou obliterada por situações que podem ser
extemporâneas, de que o partido do histórico Mário Soares tem vindo a ser,
desde há alguns anos, visado preferencialmente pelos inimigos da democracia,
talvez por ser o alvo mais justificável, dada a sua dimensão e implantação
transversal na sociedade e a sua condição de importante fundador da democracia.
Enfraquecer ou mesmo aniquilar a sua existência facilitaria o regresso à
autocracia a que aspiram alguns políticos e uma multidão anónima que parece
crescer nas redes sociais. E, paradoxalmente, esse partido fica mais exposto
quando governa em maioria absoluta, porque se sujeita a ser atacado
simultaneamente à direita e à esquerda, com intervenções que entre si se
contradizem na substância ideológica, derrogando-se a respectiva lógica
argumentativa. Por exemplo, se os partidos mais à esquerda criticam a
insuficiência de aumentos salariais, os da direita pugnam pela baixa dos
impostos, sem se ter em conta que os recursos financeiros não caem do céu e só
podem ser gerados pela economia. Se uns criticam as falhas do Serviço Nacional
de Saúde, os da bancada contrária apostam as fichas na medicina privada. E
assim por diante. Não foi por acaso que com o actual governo se assistiu a uma
onda reivindicativa e grevista que até fez lembrar a instabilidade de uma
conturbação revolucionária. Curiosamente, pareceu instalar-se a anarquia social
em vigência de um governo democrático de maioria absoluta. Desde os
professores, médicos, enfermeiros, funcionários judiciais, ferroviários,
ambientalistas, aos sem casa e sei lá quem mais, de repente toda a gente
pretendia aumento salarial avantajado, a par de outras reivindicações, mesmo
que dentro das possibilidades financeiras do país se viesse a negociar
pacientemente para contemplar com racionalidade e sentido de equilíbrio o que
era de justiça e comportável pelo orçamento. Crê-se que desde os governos de
Guterres se instalou a crença de que com o Partido Socialista no poder as
reivindicações têm maior viabilidade de sucesso, pelo carácter mais dialogante,
tolerante e permissivo desse partido, e houve até quem tivesse glosado que o
antigo governante e hoje secretário-geral da ONU levava consigo um “livro de
cheques” sempre que saía de S. Bento para qualquer visita no país.
Em
que medida e em que circunstâncias o Ministério Público contribuiu
consideravelmente para espoletar a presente crise política e pode vir a
tornar-se um grave problema para o regime se a democracia não corrigir os seus
mecanismos institucionais? Outros desenvolvimentos seguir-se-ão em próximo
texto.
[i]
Nota: Para
evitar mal-entendidos, esclareço que sou simplesmente um militar reformado,
preocupado com o mundo, crente nas virtudes da democracia, adepto da
social-democracia, e atento à realidade política do país. Sem vinculação
partidária.
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