Portugal é mesmo ingovernável em democracia?

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

 

Por Adriano Miranda Lima[i]

A recente queda do governo de maioria absoluta, abrindo caminho para uma inesperada e indesejável instabilidade política, obriga a que se levantem algumas interrogações.

É certo que se assiste nos tempos que vivemos a um enfraquecimento das democracias um pouco por todo o lado, em consequência de uma aparente erosão dos sistemas de controlo tradicionais − eleições livres, parlamentos e tribunais – com influência directa na eficácia das instituições. Mas não é disto que agora se trata. A formulação em título pretende ir ao fundo de uma questão já antiga e que obriga a revisitar algumas considerações sobre as nossas predisposições naturais ou tendências ancestrais para viver harmoniosamente em agregação colectiva e no cumprimento ordeiro das regras comuns. A nossa democracia está a caminho de comemorar o seu cinquentenário, tempo que alguns já considerarão suficiente para a maturação do sistema político implementado. Mas não haja ilusões. Contrariamente à ideia mais comum, não é o sistema político instituído que por si só estimula, promove e gera uma cultura política. A História demonstra que é o contrário. Quanto maior é a cultura política de um povo, mais evoluído é o seu sistema político e aperfeiçoadas as suas práticas. Isto significa que o período temporal de cinquenta anos pode não ser suficiente para a formatação e consolidação de uma cultura política, dado que esta requer o contributo de sucessivas gerações e a acumulação contínua de experiências diferentes, umas bem-sucedidas e outras não, para ela se tornar uma realidade efectiva.

Mas recusamos admitir a fatalidade interrogada no título deste artigo, porque o orgulho nacional impede-nos de aceitar que sejamos diferentes dos outros europeus por qualquer condicionalismo genético ou por contingências coercitivas da história dos últimos séculos. No entanto, Oliveira Salazar pensava o contrário, e com assumida convicção, a ponto de, perante o fracasso da I República, se ter arvorado em salvador da pátria inaugurando e dando expressão política e corporativa ao que iria ser o mais longo regime autoritário na Europa Ocidental durante o século passado. Talvez radicasse no seu espírito aquela conhecida afirmação de que “nos confins da Ibéria, existe um povo que nem se governa nem se deixa governar”, que é comum ser atribuída a Júlio César, mas que para alguns historiadores foi o general e político romano Sérgio Galba. Por sua vez, a Manuela Ferreira Leite afirmou, há alguns anos, numa entrevista ou num debate, que para introduzir reformas importantes no país teria de suspender o Parlamento.

Embora a Revolução dos Cravos nos tenha devolvido este regime democrático com que a maioria da nação se identifica, não se iluda, porém, porque há sectores da sociedade que não o reconhecem e lhe são adversos. São uma realidade, com maior ou menor diluição na sociedade, com uma notoriedade mais ou menos explícita ou encapotada nas redes sociais e em certo jornalismo, e têm assento parlamentar dois partidos da oposição mais à direita que o personificam com pompa e circunstância. Para eles, o objectivo é a reversão das mais importantes conquistas que a nação logrou, ou atacando a extensão e a natureza das liberdades cívicas, ou afrontando o papel do Estado na sustentação do sistema social que é a mais gratificante, honrosa e emblemática conquista de Abril.

O desperdício da estabilidade política que o governo de maioria absoluta do Partido Socialista garantia foi como deitar fora a água do banho e a criança. Este acontecimento obriga a que, efectivamente, se levantem interrogações incómodas que envolvem não apenas a qualidade do sistema político-partidário e os seus protagonistas, mas sobretudo a natureza do regime e as instituições que o estruturam e garantem o seu funcionamento. Se o governo de maioria absoluta fosse do PSD, teria acontecido o mesmo? A pergunta não é impertinente e se deve à percepção, não sei se errada ou obliterada por situações que podem ser extemporâneas, de que o partido do histórico Mário Soares tem vindo a ser, desde há alguns anos, visado preferencialmente pelos inimigos da democracia, talvez por ser o alvo mais justificável, dada a sua dimensão e implantação transversal na sociedade e a sua condição de importante fundador da democracia. Enfraquecer ou mesmo aniquilar a sua existência facilitaria o regresso à autocracia a que aspiram alguns políticos e uma multidão anónima que parece crescer nas redes sociais. E, paradoxalmente, esse partido fica mais exposto quando governa em maioria absoluta, porque se sujeita a ser atacado simultaneamente à direita e à esquerda, com intervenções que entre si se contradizem na substância ideológica, derrogando-se a respectiva lógica argumentativa. Por exemplo, se os partidos mais à esquerda criticam a insuficiência de aumentos salariais, os da direita pugnam pela baixa dos impostos, sem se ter em conta que os recursos financeiros não caem do céu e só podem ser gerados pela economia. Se uns criticam as falhas do Serviço Nacional de Saúde, os da bancada contrária apostam as fichas na medicina privada. E assim por diante. Não foi por acaso que com o actual governo se assistiu a uma onda reivindicativa e grevista que até fez lembrar a instabilidade de uma conturbação revolucionária. Curiosamente, pareceu instalar-se a anarquia social em vigência de um governo democrático de maioria absoluta. Desde os professores, médicos, enfermeiros, funcionários judiciais, ferroviários, ambientalistas, aos sem casa e sei lá quem mais, de repente toda a gente pretendia aumento salarial avantajado, a par de outras reivindicações, mesmo que dentro das possibilidades financeiras do país se viesse a negociar pacientemente para contemplar com racionalidade e sentido de equilíbrio o que era de justiça e comportável pelo orçamento. Crê-se que desde os governos de Guterres se instalou a crença de que com o Partido Socialista no poder as reivindicações têm maior viabilidade de sucesso, pelo carácter mais dialogante, tolerante e permissivo desse partido, e houve até quem tivesse glosado que o antigo governante e hoje secretário-geral da ONU levava consigo um “livro de cheques” sempre que saía de S. Bento para qualquer visita no país.

Em que medida e em que circunstâncias o Ministério Público contribuiu consideravelmente para espoletar a presente crise política e pode vir a tornar-se um grave problema para o regime se a democracia não corrigir os seus mecanismos institucionais? Outros desenvolvimentos seguir-se-ão em próximo texto.



[i] Nota: Para evitar mal-entendidos, esclareço que sou simplesmente um militar reformado, preocupado com o mundo, crente nas virtudes da democracia, adepto da social-democracia, e atento à realidade política do país. Sem vinculação partidária.

 

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