Nota Introdutória
Tive,
em 2007, a oportunidade e o privilégio de assistir e de participar em São
Nicolau, nas celebrações do centenário daquele que muitos, onde me incluo,
consideram o maior vulto da cabo-verdianidade, o mais acabado intelectual da
sua geração e do século XX cabo-verdiano – Baltazar Lopes da Silva, – bem
definido por Leão Lopes como “O Homem Arquipélago” no seu livro homónimo e a quem um também mui ilustre homem de cultura
seu contemporâneo – Jorge Barbosa – fazendo jus à sua enorme estatura de
intelectual lhe dedicou as seguintes palavras:
“À
Baltazar Lopes:- à sua cultura vibrante, ao seu talento vivo, ao seu
cabo-verdianismo,
e para
que nos ajude a acertar a hora atrazada do relógio
cabo-verdiano.”
Quero
aproveitar para neste chamar “de volta” à ilha, do insigne Professor e Mestre Baltazar
Lopes destacar e louvar o então Presidente da Câmara Municipal da Ribeira
Brava, Amílcar Spencer Lopes, que em boa hora centralizou em São Nicolau, as
celebrações do centenário do nascimento (1907-2007) com um programa a todos os
títulos interessante, onde houve lugar por iniciativa sua, a colocação de uma
estátua de Baltazar Lopes da Silva numa destacada Praça da sua ilha de origem.
As
celebrações, repito, a que tive o privilégio de assistir e de participar, foram
marcadas por conferências e palestras conduzidas por biógrafos – de entre os
quais, destacaria o Professor Alberto de Carvalho - e estudiosos de diversas áreas da literatura,
da cultura e que discorreram com sapiência, sobre a obra imensa de Baltazar
Lopes da Silva.
Foi
assim que se assinalaram os cem anos sobre o nascimento desse portento que
orgulha todos os cabo-verdianos, porque representa o que de melhor, até agora, possui
a elite intelectual destas ilhas.
No artigo
que adiante transcrevo que repesquei dos
meus antigos escritos sobre Baltazar Lopes da Silva, gostaria de aproveitar
esta oportunidade, contextualizada pelo texto, e fazer uma pequena comparação
entre o que Málaga fez com Pablo Picasso e o que a ilha de São Nicolau poderia
fazer com Baltazar Lopes da Silva.
Assim,
há a sugestão de se aproveitar os lugares da ilha de Chiquinho – protagonista
do romance homónimo do escritor – citados na obra para se fazer um roteiro
turístico que desse a conhecer a ilha. Para além da criação de uma casa/memória
de B. Lopes da Silva no Caleijão, rincão natal do poeta, escritor, filólogo e
grande estudioso da cultura cabo-verdiana.
A
minha sugestão encontra suporte no aproveitamento feito pelos malaguenhos do
seu, quiçá, mais ilustre conterrâneo, Pablo Ruiz Picasso (1881-1973) famoso
pintor espanhol e mundialmente conhecido como um dos maiores pintores de todos
os tempos:
Picasso,
nasceu em Málaga, mas cedo deixou-a com os pais em busca de uma vida melhor.
Deixou a terra-natal ainda na adolescência e, contam os seus biógrafos, que
nunca mais lá voltou, excepto numa rápida visita que lá fez aos 19 anos.
Mas os
malaguenhos não se esqueceram desse grande filho da terra e desenvolveram
inteligentemente um turismo, um desenvolvimento da região, muito graças à
celebridade, Pablo Picasso que se constituiu num autêntico chamariz. Fundaram
um Museu Picasso; criaram um roteiro turístico com a sinalização da casa onde
nasceu Picasso, com o jardim onde ele costumava brincar e até, com a Igreja
onde foi baptizado, entre outras iniciativas para o celebrar, que levam
inúmeros turistas estrangeiros e nacionais (espanhóis) a demandar, em visita à
terra de origem do famoso Pintor.
Ora
bem, “mutatis, mutandi” com as devidas diferenças, dimensão e condicionalismos,
seria a mesma abordagem, ou similar, que os sãonicolauenses deviam fazer e
tirar partido (no bom sentido da expressão) com essa figura máxima da
intelectualidade cabo-verdiana que é sem dúvida, Baltazar Lopes da Silva.
(1907-1989).
A Ilha de S. Nicolau
na Escrita de Baltasar Lopes da Silva
Começaria por introduzir
neste texto uma informação que acho curiosa e que talvez balize, com algum
fundamento, tudo o que virá a seguir. Trata-se do seguinte:
Havia uma frase, com que invariavelmente,
o Dr. Baltasar Lopes da Silva iniciava as suas intervenções, quando em situação
de exemplificar casos e tópicos que tivessem a ver com questões antropológicas
e culturais de Cabo Verde. Afirmava ele: “Bem, eu falo da minha ilha, a ilha
de S. Nicolau, que é a que melhor conheço”.
Baltasar Lopes da Silva
nunca omitiu, antes pelo contrário, registou-a na sua escrita e na sua
oralidade, esta espécie de gratidão que ele tinha com “…a paisagem, (a
terra) que o recebeu quando abriu os olhos para o entendimento” como ele
próprio afirmou num dos seus muitos escritos.
Com efeito, a ilha natal,
mereceu-lhe sempre – quer nos ensaios escritos, quer nas intervenções orais,
nas palestras, quer ainda na narrativa ficcionista e na sua poética – lugar
afectivamente destacado e historicamente fundamentado, em relação a qualquer
das ilhas irmãs. Daí a naturalidade e o à-vontade, com que se lhe refere nos
seus ensaios. De tal modo assim é, que a ilha berço é presença constante nas
suas análises. O autor vai geralmente buscá-la para caso-estudo porque a
conhece bem e ela serve-lhe para exemplificar e ilustrar os quadros sociais, os
hábitos, os usos e os costumes da terra e das gentes. Foi assim, nas suas
muitas intervenções e, algumas, soberbas.
Veja-se para exemplo, as
intervenções por ele feitas a quando da realização em Mindelo, em 1956, da
«Mesa Redonda sobre o Homem cabo-verdiano».
Pode-se afirmar, com
muita verdade e sem correr muito risco do exagero, que a ilha de S. Nicolau é
focada de forma continuada e persistente em quase todo o tipo de textos deste
autor. Ora como espaço protagonista na sua escrita, ora como pano de fundo, o
perfeito cenário, de onde ele parte, para abarcar, compreender, comparando e
aproximando, os casos sanicolauenses aos das restantes ilhas.
É certo que espaços como
os das ilhas de S. Vicente e de Santo Antão estão também presentes, mas o de S.
Nicolau impregna-se num quase absoluto na obra deste autor.
Interessante também o
facto do poeta, Osvaldo Alcântara, pseudónimo de Baltasar Lopes, quando coloca,
nos seus versos, por exemplo, a palavra: Vila, sem mais explicitar, apenas
vila, o leitor pode e deve situá-la e descodificá-la, com muita margem de segurança,
como sendo a Vila Ribeira Brava a referida naturalmente pelo poeta. Está neste
caso o poema «Nocturno» em que todo o cenário em que se desenrola numa espécie
de encantamento romântico e mágico, de silêncio e da serenata; para além dos
medos e de outros pressentimentos que a noite propicia. Ora, o cenário de tudo
isto é a Vila Ribeira Brava.
Registe-se aqui um
excerto ilustrativo, do poema referido:
“Arcadas soluçantes no
lirismo ingénuo da serenata; Passos nas vielas nostálgicas da vila antiga ao
luar. //Romantismos de moças à janela /na ansiedade amorosa do luar. //A noite
vai perdendo o peso; /os fios do luar dobam / um vestido branco /para Nossa Senhora.
//Os coqueiros velam esgalgadamente /a ansiedade do mar na boca da
ribeira…//Nas casas de colmo a Pobreza nina /o sono dos filhos dos
trabalhadores /que sonham com a varinha de condão / que lhes deu sua madrinha
Mai-da-Lua. // O busto do Dr. Júlio advinha pensativamente/as rezas adormecidas
na Igreja da-Sé. /Nas encruzilhadas paradas /há suspeitas de fantasmas /que
passeiam esbranquiçadamente / entre as sombras das casas, /…lobisomens andam a
chupar /o sangue das crianças…/os gongons piam da rocha a presença nocturna do
medo… // A serenata calou-se /há gritos diluídos /no lago transparente do
silêncio. //As montanhas em volta, postadas em tutela, /dormem largamente o
sono sereno dos gigantes. // (…)
E como este, há mais
exemplos na poética de Osvaldo Alcântara. Igualmente, por vezes, nos textos do
autor, surgem pequenos indícios, não nomeados explicitamente, de lugares, de
sítios, de comportamento e de reacção de personagens, que nos remetem para referentes
reais da ilha natal do escritor.
A ilha de S. Nicolau
situa-se na escrita de Baltasar Lopes da Silva, sobretudo a ensaística, sempre
como termo de referência e de comparação para ele chegar à tese pretendida. Num
dos números do ano de 1957, do antigo periódico, o Boletim «Cabo Verde» foi
transcrito um texto do Dr. Baltasar, que terá sido lido aos microfones da
antiga Rádio Barlavento, integrado no programa radiofónico: “Arco-íris” sob
epígrafe: «Cabo Verde visto por cabo-verdianos». A ele coube S. Nicolau. É
deste texto que vou transcrever, algumas passagens que me parecem ser bem
ilustrativas da ligação, do afecto e do conhecimento que Dr. Baltasar detinha
da terra e das suas gentes.
Passo a citar:
«(…) Na evocação da ilha berço, uma imagem
se fixa logo, como baliza de toda uma paisagem: a do Homem – rural nas raízes
mais profundas. (…) Creio estar certo ao falar da ligação, dir-se-ia que
placentária do Homem à ilha. E continua mais adiante: “Onde quer que ele
esteja, as preocupações para a construção ou consolidação da concha não calam a
voz, baixa, mas persistente. É a mulinha de jornada, os casais de terra a
comprar, a boa casa a levantar, os filhos a mandar para a escola-do-Rei (…)
Outra raiz da ilha parece ser a religiosidade. Nutrida secularmente da vida
religiosa do arquipélago, a ilha aferra-se às práticas católicas, não com ardor
místico, mas com a tranquilidade de alma de pessoa por quem nunca roçou a asa
da dúvida (…)
O ensaio continua, pleno
de informações das peculiaridades que caracterizam e individualizam o
sanicolauense. O retrato chega a ser minucioso. Há um traço, uma atitude que o
enforma e que o autor muito bem observou. Dizia ele, continuo a citar: Por
outro lado, o Homem (de S. Nicolau) ainda crê na “prenda,” isto
é, para sua concepção pragmática de valores, ele crê na virtude da
aristocratização intelectual. Este dualismo (o culto terrunho e a ambição
intelectual) é uma característica muito sua.”
Outrossim, é na sua ilha
que o romancista e o contista Baltasar Lopes coloca por excelência, o “habitat”
ficcional de toda a sua narrativa. Temos o caso que é disso paradigmático, a
sua obra maior: o romance “Chiquinho”. O narrador/protagonista, as personagens
e a acção, partem do Caleijão, o foco mais importante, pois que casa paterna e
lugar sagrado por que território da infância e da adolescência de Chiquinho. Do
Caleijão vão a Fajã, Fajã de Baixo, Assomada do Mancebo, Fragatinha, Praia
Branca, Covoadinha, Canal da Fragata o refúgio do “tio Joca”; passam pela Vila,
Chã de Marcela, Campo, Chamiço, Campo da Preguiça, (o percurso “dos pateados,
dos encantados que tinham pacto com Aquele Homem”): Prainha, Ladeira do
Cachaço, Cintinha, passam também pelo Campo da Preguiça, Galhana, Praia dos
Garfos, (sítios de pasto, de gado e de agricultura); continuando por: Estância,
Ribeira dos Calhaus, Lajinha, Boca da Ribeira, Ribeira da Prata, Assomada do
Matinho, Ponta da Vermelharia, Àgua do Canal, Trás de Picos; indo até, Cruzeta,
Morro Bissau, Salto, Morro Brás, Juncalinho, Combota, Fontainhas, Alto da
Cancela, Coima, Ladeira da Lapa, Chã.
Enfim, há ao longo do
romance, um mapa geo-social da ilha que sobressai valorizado na pena do insigne
romancista.
Creio que a narrativa do
autor, desenhou um interessante itinerário, registou e fixou um mapa toponímico
da ilha que valeria a pena conhecer ou reconhecer, até em percurso turístico e
cultural.
Não é por acaso que a
ilha de S. Nicolau tem um segundo nome já bem popularizado: a ilha de
“Chiquinho.” Já dizia Camões: “Transforma-se o amador na coisa amada”.
Abro aqui um pequeno
parêntesis para estabelecer um paralelismo entre alguma escrita de Baltasar
Lopes e alguma escrita também de Miguel Torga poeta, contista e uma das figuras
cimeiras da cultura portuguesa do século XX. Ambos grandes intelectuais, ambos
oriundos de espaços rurais, que por livre escolha ou, por forças das
circunstâncias, se transpuseram para meios urbanos, para aí exercerem a vida
profissional. Baltasar Lopes de S. Nicolau para Mindelo e Miguel Torga de
Trás-os-Montes para Coimbra.
Ora bem, ambos
mantiveram, tomando de empréstimo o que sobre Miguel Torga disse um dos seus
biógrafos, José Augusto Cardoso Bernardes “Uma linha de fidelidade aos espaços
maternos e daí uma busca íntima…e uma forte relação que o autor mantém com a
terra natal.” Vale dizer que esta “busca íntima e a forte relação com a terra
natal” são bem expressas por ambos quer na lírica, quer na prosa narrativa.
Fecho o parêntesis.
Aliás, Baltasar Lopes da
Silva, naquilo que configurava o seu perfil de intelectual intrépido e
indomável, da sua capacidade de resistir a “ventos contrários”, de uma
frontalidade até manifestada por vezes sob forma, de uma aparente “rudeza” que
não esconde, ao mesmo tempo, uma enorme solidariedade para com o próximo, mais
não foi do que uma perfeita e fiel aliança paritária, que o grande homem do
saber fez na sua escrita, da modernidade urbana com a forte ruralidade
ancestral. Esta última, ele vai buscá-la às suas raízes, à ilha de S. Nicolau.
Como já me referi, a ilha
de S. Nicolau não é apenas «habitat» das personagens, cenário dos enredos, das
intrigas, das histórias, e espaço das acções da ficção de Baltasar Lopes. Esta
ilha é também e quase sempre, ponto de partida para os ensaios do autor, não só
sobre a fenomenologia do Homem cabo-verdiano, mas também, a ilha natal é
igualmente local para inúmeras aprendizagens, de Baltasar Lopes da Silva, como
ele deixa transparecer no seu legado escrito. Ou seja, ela, a ilha, testemunhou
e foi parte importante da sua socialização, da sua educação caseira e do seu
“abrir os olhos ao entendimento” porque uma fase de vida intensa importante,
nela passou: a infância e a adolescência.
Para finalizar direi que,
para além do mais, Baltasar Lopes da Silva tinha de S. Nicolau um indisfarçável
orgulho, de entre muitas e boas razões, avulta o facto – que ele volta e meia
evocava – de ser esta ilha a que propiciou a primeira e ainda hoje prestigiada
intelectualidade cabo-verdiana, a saída da memorável instituição religiosa e
académica, o Seminário – Liceu da ilha.
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