Li,
num jornal digital que me foi enviado por um amigo, para a partilha da notícia,
que o Dr. Ulisses Correia e Silva – não sei se na condição de primeiro-ministro
ou de presidente do MpD – afirmou que, cito: “O maior tributo a prestar a Cabral é não partidarizar a sua figura e o seu
legado". Fiquei verdadeiramente surpreendido
que tal afirmação tenha saído da boca – ou da pena ou mesmo da mente –
de um tão experimentado político cabo-verdiano, dirigente de um partido de
democracia liberal – o MpD; assim dito, parece violar o espírito e a essência
do pensamento de Cabral em o querer afastar da sua obra mais emblemática –
o PAIGC. Porventura o autor dessa frase tenciona
ignorar a história contemporânea de Cabo Verde? Ou será que quer legitimar uma
narrativa que pretende atribuir a Amílcar Cabral (AC) o estatuto de “fundador”
da cabo-verdianidade, ficando deste modo acima dos partidos e dando assim aos seus
correligionários – sobretudo os vindos de Conacri – a legitimidade “histórica” que
vêm procurando e de que “habilidosamente” têm vindo a fazer gala? Ou, por
último, será que “ignora” ou desconhece o conceito de partido, estruturado,
organizado e defendido por Amílcar Cabral?
Dissociar
Amílcar Cabral do PAIGC, – só assim se conseguiria despartidarizá-lo – ou
vice-versa, constitui uma autêntica quadratura do círculo. É impossível, porque
são absoluta e estruturalmente indissociáveis!
Hoje,
numa análise cuidada da guerra para a independência na Guiné-Bissau levantam-se-me
dúvidas sobre se foi AC que engrandeceu o PAIGC ou, entenda-se(!), se foi este
que o notabilizou – tal é o imbricamento! – e o tornou conhecido através do
brilhantismo dos seus operacionais nas matas da Guiné, verdadeiros comandantes
forjados na luta e não fabricados administrativamente num gabinete ministerial para
efeitos de status e enquadramento na Administração Pública, para
justificação de altas remunerações e consequentes mordomias; e, pour cause,
chorudas pensões de reforma.
O
PAIGC de Amílcar Cabral, na realidade nunca foi um partido e ele sabia-o bem.
Tal
como as suas congéneres MPLA e FRELIMO, de Angola e Moçambique, é um “movimento
armado” e, como tal nunca teve uma linha de pensamento definido, assumido e
consolidado para todas as situações e circunstâncias, mas sim, uma união à
volta de um objectivo único, o de derrube do colonialismo e conquista do poder.
Não me vou debruçar, por agora, neste aspecto, eventualmente, polémico – haverá
tempo para o fazer – mas apenas lembrar que a atitude de AC e as suas “conversas”
de sedução perante os diferentes líderes políticos mundiais – há registos – são
bem elucidativas. Ele é social-democrata perante Olof Palme na Suécia,
comunista com Leonid Brezhnev em Moscovo, anticolonialista e democrata liberal (vide
carta a Oliveira Salazar) para os portugueses, comunista maoista na China, socialista/revolucionário
internacionalista com Fidel em Cuba e, internamente, um exímio e acabado discípulo
de Lenine, seguidor convicto do marxismo-leninismo e, consequentemente,
praticante laborioso do centralismo democrático e da democracia nacional
revolucionária, base em que se assenta todo o edifício do PAIGC, e assim por
diante. Não é tempo de falar das suas múltiplas “ideologias” políticas conforme
as circunstâncias que, de certa forma até se compreende, porque se enquadram no
afã de “conquistar” o interlocutor e obter ajudas à sua causa imediata que é a destituição
do poder colonial e sua substituição.
A
transformação do “movimento armado” num “partido político” é um desígnio a que abnegada
e artificiosamente Amílcar Cabral se propôs alcançar na procura de instrumentos
cada vez mais eficazes de manipulação duradoura da sociedade e de conquista e consolidação
de poder pessoal dada a sua concepção de partido – monolítico e elitista.
Duma forma clara e inequívoca, ele deixa entender que é defensor de partido
único e, consequentemente, de partido-Estado e que nele só devem tomar parte
“os melhores filhos”. É ele próprio que no-lo diz in “Arma da Teoria”
que passo a citar:
1. 1. «Não é por acaso, não é porque gostamos do
nome partido. É com um sentido claro para hoje e para amanhã. Movimento é
uma coisa muito vaga (…) O nosso
Partido, talvez seja, hoje,
na realidade, um movimento, mas o nosso trabalho tem que ser transformá-lo em
Partido cada dia mais (…) Desde o começo demos-lhe o nome
de Partido para que todos entendam que temos ideias bem claras sobre o caminho
que estamos a seguir (…). (o negrito é meu)
2. 2. «[o] partido é o instrumento de
transformação da nossa sociedade, primeiro para expulsar da nossa terra o
colonialismo, em segundo lugar, para construir o progresso do nosso país» (o
negrito é meu)
3.
3. «Partido é o representante
legítimo do nosso povo»(o negrito é meu)
4.
4.. [PAIGC] é «o poder organizado
na nossa terra, é o nosso Estado»[1]
É este o principal
legado político que Cabral nos deixou – o PAIGC – e que os primeiros 15 anos da
independência política mostraram bem o que representa – ditadura, partido único, autoritarismo, repressão, censura, prisões arbitrárias, ausência
de liberdade, polícia política, torturas, mortes, impunidade…
Um outro legado,
não menos trágico, foi a “Unidade Guiné-Cabo Verde” de triste memória – doente
e moribundo aquando da morte de Cabral (início de debandada de cabo-verdianos);
ressuscitado e estimulado no 25 d’Abril (toque a reunir) – que ao mais pequeno
abanão (14 de Novembro) se desmoronou completamente, contrariando os desígnios
de Cabral, mas manifestamente desejado, porque aplaudido – o desmoronamento –
pelas populações das partes envolvidas.
Poderia ainda
citar um terceiro legado, – apesar de tudo, o único conseguido – mas este não nos
diz directamente respeito: é a Independência política da Guiné-Bissau. A
económica foi igualmente, por ele, AC, projectada e programada, mas tudo leva a
crer que é, ou desastrosa ou está adiada sine die.
Para terminar esta
brevíssima reflexão, pergunto: De que legado se trata? E preservar o quê?
Na verdade, toda a
doutrina de Cabral foi testada, durante pelo menos década e meia, na Guiné-Bissau
e em Cabo Verde, pela fina-flor do PAIGC – aqueles que foram dele, os
companheiros mais chegados, que se privaram com ele de forma continuada desde o
primeiro momento – e os impactos e os resultados foram, infelizmente, os que bem
conhecemos e que atrás, muito sintecticamente, já foi referido. Pode-se até
afirmar que, se algum legado pudesse ter existido ele foi autofagicamente
deglutido pelo próprio PAIGC. Não precisou de intervenções, nem de inimigos nem
de adversários.
O seu pensamento,
as suas ideias, o seu conceito de partido e da sua intervenção na sociedade e
no Estado estão hoje nos antípodas de uma democracia liberal e de uma economia
de mercado em que hoje vivemos. Logo, pouco, muito pouco, resta para preservar.
Contudo, isto, não belisca a imagem de um homem inteligente, culto, exímio geo-estratega
político, combativo e determinado até à morte na defesa dos seus objectivos,
merecendo por isso a nossa consideração e o nosso respeito. Estamos, obviamente,
a falar de Amílcar Cabral.
A.
Ferreira
[1] - PAIGC – Apontamentos das Aulas em Política.
Centro de Aperfeiçoamento dos Professores, Conacri, Julho/Setembro, 1966.
0 comentários:
Enviar um comentário