Amílcar Cabral e a "Despartidarização" do seu Legado

domingo, 23 de junho de 2024

Li, num jornal digital que me foi enviado por um amigo, para a partilha da notícia, que o Dr. Ulisses Correia e Silva – não sei se na condição de primeiro-ministro ou de presidente do MpD – afirmou que, cito: “O maior tributo a prestar a Cabral é não partidarizar a sua figura e o seu legado". Fiquei verdadeiramente surpreendido que tal afirmação tenha saído da boca ou da pena ou mesmo da mente – de um tão experimentado político cabo-verdiano, dirigente de um partido de democracia liberal – o MpD; assim dito, parece violar o espírito e a essência do pensamento de Cabral em o querer afastar da sua obra mais emblemática o PAIGC.  Porventura o autor dessa frase tenciona ignorar a história contemporânea de Cabo Verde? Ou será que quer legitimar uma narrativa que pretende atribuir a Amílcar Cabral (AC) o estatuto de “fundador” da cabo-verdianidade, ficando deste modo acima dos partidos e dando assim aos seus correligionários – sobretudo os vindos de Conacri – a legitimidade “histórica” que vêm procurando e de que “habilidosamente” têm vindo a fazer gala? Ou, por último, será que “ignora” ou desconhece o conceito de partido, estruturado, organizado e defendido por Amílcar Cabral?

Dissociar Amílcar Cabral do PAIGC, – só assim se conseguiria despartidarizá-lo – ou vice-versa, constitui uma autêntica quadratura do círculo. É impossível, porque são absoluta e estruturalmente indissociáveis!

Hoje, numa análise cuidada da guerra para a independência na Guiné-Bissau levantam-se-me dúvidas sobre se foi AC que engrandeceu o PAIGC ou, entenda-se(!), se foi este que o notabilizou – tal é o imbricamento! – e o tornou conhecido através do brilhantismo dos seus operacionais nas matas da Guiné, verdadeiros comandantes forjados na luta e não fabricados administrativamente num gabinete ministerial para efeitos de status e enquadramento na Administração Pública, para justificação de altas remunerações e consequentes mordomias; e, pour cause,  chorudas pensões de reforma.

O PAIGC de Amílcar Cabral, na realidade nunca foi um partido e ele sabia-o bem.

Tal como as suas congéneres MPLA e FRELIMO, de Angola e Moçambique, é um “movimento armado” e, como tal nunca teve uma linha de pensamento definido, assumido e consolidado para todas as situações e circunstâncias, mas sim, uma união à volta de um objectivo único, o de derrube do colonialismo e conquista do poder. Não me vou debruçar, por agora, neste aspecto, eventualmente, polémico – haverá tempo para o fazer – mas apenas lembrar que a atitude de AC e as suas “conversas” de sedução perante os diferentes líderes políticos mundiais – há registos – são bem elucidativas. Ele é social-democrata perante Olof Palme na Suécia, comunista com Leonid Brezhnev em Moscovo, anticolonialista e democrata liberal (vide carta a Oliveira Salazar) para os portugueses, comunista maoista na China, socialista/revolucionário internacionalista com Fidel em Cuba e, internamente, um exímio e acabado discípulo de Lenine, seguidor convicto do marxismo-leninismo e, consequentemente, praticante laborioso do centralismo democrático e da democracia nacional revolucionária, base em que se assenta todo o edifício do PAIGC, e assim por diante. Não é tempo de falar das suas múltiplas “ideologias” políticas conforme as circunstâncias que, de certa forma até se compreende, porque se enquadram no afã de “conquistar” o interlocutor e obter ajudas à sua causa imediata que é a destituição do poder colonial e sua substituição.

A transformação do “movimento armado” num “partido político” é um desígnio a que abnegada e artificiosamente Amílcar Cabral se propôs alcançar na procura de instrumentos cada vez mais eficazes de manipulação duradoura da sociedade e de conquista e consolidação de poder pessoal dada a sua concepção de partido – monolítico e elitista. Duma forma clara e inequívoca, ele deixa entender que é defensor de partido único e, consequentemente, de partido-Estado e que nele só devem tomar parte “os melhores filhos”. É ele próprio que no-lo diz in “Arma da Teoria” que passo a citar:

1.         1. «Não é por acaso, não é porque gostamos do nome partido. É com um sentido claro para hoje e para amanhã. Movimento é uma coisa muito vaga (…) O nosso Partido, talvez seja, hoje, na realidade, um movimento, mas o nosso trabalho tem que ser transformá-lo em Partido cada dia mais (…) Desde o começo demos-lhe o nome de Partido para que todos entendam que temos ideias bem claras sobre o caminho que estamos a seguir (…). (o negrito é meu)

2.            2. «[o] partido é o instrumento de transformação da nossa sociedade, primeiro para expulsar da nossa terra o colonialismo, em segundo lugar, para construir o progresso do nosso país» (o negrito é meu)

3.         3. «Partido é o representante legítimo do nosso povo»(o negrito é meu)

4.            4.[PAIGC] é «o poder organizado na nossa terra, é o nosso Estado»[1]

É este o principal legado político que Cabral nos deixou – o PAIGC – e que os primeiros 15 anos da independência política mostraram bem o que representa – ditadura, partido único, autoritarismo, repressão, censura, prisões arbitrárias, ausência de liberdade, polícia política, torturas, mortes, impunidade…

Um outro legado, não menos trágico, foi a “Unidade Guiné-Cabo Verde” de triste memória – doente e moribundo aquando da morte de Cabral (início de debandada de cabo-verdianos); ressuscitado e estimulado no 25 d’Abril (toque a reunir) – que ao mais pequeno abanão (14 de Novembro) se desmoronou completamente, contrariando os desígnios de Cabral, mas manifestamente desejado, porque aplaudido – o desmoronamento – pelas populações das partes envolvidas.

Poderia ainda citar um terceiro legado, apesar de tudo, o único conseguido mas este não nos diz directamente respeito: é a Independência política da Guiné-Bissau. A económica foi igualmente, por ele, AC, projectada e programada, mas tudo leva a crer que é, ou desastrosa ou está adiada sine die.

Para terminar esta brevíssima reflexão, pergunto: De que legado se trata?  E preservar o quê?

Na verdade, toda a doutrina de Cabral foi testada, durante pelo menos década e meia, na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, pela fina-flor do PAIGC – aqueles que foram dele, os companheiros mais chegados, que se privaram com ele de forma continuada desde o primeiro momento – e os impactos e os resultados foram, infelizmente, os que bem conhecemos e que atrás, muito sintecticamente, já foi referido. Pode-se até afirmar que, se algum legado pudesse ter existido ele foi autofagicamente deglutido pelo próprio PAIGC. Não precisou de intervenções, nem de inimigos nem de adversários.

O seu pensamento, as suas ideias, o seu conceito de partido e da sua intervenção na sociedade e no Estado estão hoje nos antípodas de uma democracia liberal e de uma economia de mercado em que hoje vivemos. Logo, pouco, muito pouco, resta para preservar. Contudo, isto, não belisca a imagem de um homem inteligente, culto, exímio geo-estratega político, combativo e determinado até à morte na defesa dos seus objectivos, merecendo por isso a nossa consideração e o nosso respeito. Estamos, obviamente, a falar de Amílcar Cabral.

A.    Ferreira

 



[1] - PAIGC – Apontamentos das Aulas em Política. Centro de Aperfeiçoamento dos Professores, Conacri, Julho/Setembro, 1966.

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