A política e os seus actores e mentores

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Por  Adriano Miranda Lima[i]

Embora a arte da comunicação seja um instrumento importante para a conquista e preservação do poder nas sociedades democráticas, torna-se cada vez mais evidente que a política se transformou num espectáculo mediático deslocado do seu lugar legítimo. O parlamento deixou de ser o palco por excelência para a visibilidade da política desde que as televisões a transformaram num espectáculo e num dos principais produtos da sua agenda comercial. Tudo seria razoavelmente tolerado se não houvesse uma relação incestuosa entre a televisão e o sistema político. Ora, os canais de televisão contratam para o comentário político antigos líderes e figuras de relevo dos aparelhos partidários, enquanto promovem os seus próprios comentadores internos criando condições para a sua futura ascensão ao mundo da política. E, neste contexto, era inevitável que as escolhas dos canais televisivos se identificassem criteriosamente com as ideologias mais favoráveis à lógica do negócio privado, vinculando-se a interesses e lobbies que pouco ou nada têm a ver com o primado do bem público.

Temos assim a redução da vida política à expressão televisiva partidária, num círculo vicioso em que a televisão se torna feudo do comentário partidarizado e os políticos e os partidos ficam reféns da televisão para poderem ter visibilidade. E é nestas circunstâncias que a valorização da televisão como palco da política tem como contraponto a desvalorização da acção política parlamentar. A mais evidente constatação deste fenómeno se oferece quando os debates parlamentares são frequentemente sobrepostos pelas intervenções dos comentadores televisivos, que interrompem ou truncam as emissões em directo a seu bel-prazer e em função de um critério partidário, pelo que ao espectador o que chega é uma visão partidariamente influenciada do que se passa no parlamento. É por isso que desde há muito utilizo o canal próprio do Parlamento para assistir aos debates políticos, pois assim são recebidos na sua integridade, sem qualquer manipulação de um agente exterior.

A verdade é que a política tem um lado que é tributário da representação e da teatralidade, da retórica balofa e sem conteúdo substantivo, do histrionismo e da gesticulação próprios dos chamados vendedores de banha de cobra; digamos que é a política na sua versão mais indigente, terreno privilegiado de simples actores da cena política em detrimento de mentores da realidade política no que ela tem de nobre e edificante. Os actores da política são fáceis de identificar e infelizmente tendem a sobrepor-se quantitativamente e cada vez mais aos mentores da política. A diferença entre os actores e os mentores é que os primeiros são de cultura fácil e primam pela aparência e pelo estilo, ao passo que os segundos possuem a ciência e o saber concretos e indispensáveis à realização da política no seu sentido aristotélico (associada à moral e à promoção da virtude tendo em vista o bem da comunidade), mesmo que não dominem a técnica da retórica e a arte da representação. O termo “mentor” vem do grego e refere-se à figura mítica de Mentor, amigo e conselheiro de Telémaco, que o apoiou enquanto o pai esteve ausente na guerra de Tróia. Foi assim que o termo “mentor” se tornou sinónimo de alguém que possui sabedoria, experiência e conhecimento e se predispõe a partilhá-los com outrem ou a colocá-los ao serviço da colectividade.

As recentes eleições europeias revelaram dois casos que considero paradigmáticos de uma tendência que se desenha na cena política e da comunicação e que devia merecer uma atitude crítica ao cidadão comum. O caso mais recente, e bem flagrante, da promoção de um candidato ao mister da política é o do comentador da CNN Sebastião Bugalho, cabeça de lista que foi da AD para as eleições europeias. No pólo oposto, o caso do embaixador António Tânger Correia, que foi cabeça de lista do Chega para as mesmas eleições. As diferenças entre um e outro são abismais, como passo a explicar numa análise completamente desligada de uma visão partidária. O Sebastião Bugalho foi considerado pelos comentadores das televisões uma escolha partidária promissora, num juízo subordinado mais aos seus talentos comunicacionais do que a qualquer evidência dos seus méritos políticos. De facto, para lá dos atributos que já demonstrou como comentador, a sua pouca idade não lhe permitiu ainda qualquer prova real de capacidade na área política ou em qualquer outra. O seu único trunfo é a habilidade retórica e o discurso fluente. Pelo contrário, o embaixador Tânger Correia foi considerado pelos mesmos comentadores televisivos um erro de “casting” cometido pelo Chega e o provável responsável pela queda eleitoral do seu partido. Fiquei perplexo ao ouvir semelhante explicação, mas perfeitamente ciente da lógica que subliminarmente a sustenta.

Está visto que estamos perante um actor e um mentor da política.

É natural que os comentadores televisivos, fazendo jus à lealdade corporativa, enalteçam um dos seus que transita do cenáculo televisivo para o mundo da política. Nada lhes diz um embaixador de 72 anos, com provas dadas ao longo de toda uma vida diplomática variada e intensa, mas que é desprovido de talentos comunicacionais, como ficou patente nos debates eleitorais, em que se lhe notou uma aparente despreocupação com a retórica e o palavreado supérfluo, prescindindo até dos habituais malabarismos verbais para minimizar ou anular o seu interlocutor. No entanto, tudo indica que ele poderá ser de uma utilidade efectiva nas funções para que foi eleito, só lamentando que tenha posto a sua experiência ao serviço de um partido de ideologia radical e populista e inimigo do nosso sistema político.

Que sirva esta análise para nos ajudar a reflectir sobre as inconveniências do espectáculo em que se converteu a política, com os meios de comunicação social a promoverem a teatralização e o sensacionalismo à volta do fenómeno político, mais interessados em atrair audiências ou leitores do que em informar com isenção, rigor e objectividade, tendo em vista o interesse público. O leitor ajuizará se isto terá alguma coisa a ver com o crescente desinteresse dos cidadãos para com a política



[i]  Escreve conforme a ortografia anterior ao AO 90. (Em 24/6/2024)

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